Resoluções congressuais publicadas na Revista Problemas

No dia sete de novembro de 1954, em meio às comemorações de mais um aniversário da revolução russa, teve inicio o IV Congresso do Partido Comunista do Brasil. Foi o primeiro realizado depois da cassação do registro e dos mandatos de seus parlamentares. Durante o governo Dutra (1945-1950) os comunistas foram alvo de uma dura repressão, que ocasionou centenas de prisões e dezenas de mortos. A retomada das lutas operárias e a liberalização política, promovida no período Vargas, permitiram que os comunistas aumentassem sua organização e retomassem com maior vigor seu trabalho junto às massas populares. O IV Congresso foi um marco nesse processo e deu ao partido o seu primeiro programa político.

Um Programa para milhões

Em dezembro de 1953 foi convocado o IV Congresso do partido e lançado o projeto de programa e de estatuto. Estes foram amplamente divulgados. Maurício Grabois, no seu informe ao congresso, afirmou que foram editados quatro milhões de exemplares do “projeto do programa”. Mas, esse esforço ainda teria sido insuficiente para um país de 57 milhões de habitantes. Escreveu ele: “Não nos podemos contentar com as irrisórias edições do Comitê Regional de Pernambuco, de 75 mil exemplares, para uma população de 3 milhões e 400 mil pessoas. Tampouco satisfaz o trabalho do Comitê Regional do Rio Grande do Sul, com a publicação de 550 mil exemplares para serem distribuídos entre uma população de cerca de 5 milhões de habitantes”. Em São Paulo a proposta de programa foi distribuída em todas as fábricas com mais de 500 operários.

O Partido inteiro se mobilizou para discutir a proposta de programa e estatuto. O jornal comunista Voz Operária criou um caderno especial intitulado Tribuna do IV Congresso para que os militantes expressassem suas opiniões. O congresso foi precedido, ainda, de um amplo processo de formação militante. No primeiro semestre de 1954 mais de 700 comunistas participaram de um curso especial sobre programa.

No entanto, muitos criticaram a forma em que se deram a discussão e a eleição dos delegados. O dirigente comunista pernambucano, Gregório Bezerra, foi um deles. Nas suas memórias afirmou que os delegados eleitos no seu estado, inclusive ele, não puderam participar. A justificativa da direção foi a necessidade de manter a segurança do evento. Leôncio Basbaum, por sua vez, escreveu: “os delegados não foram eleitos pelas bases, mas escolhidos a dedo pelos dirigentes do Comitê Nacional”.

Finalmente em novembro de 1954 teve início o tão esperado congresso. Ele durou cinco dias e foi realizado clandestinamente em São Paulo. Dele participaram mais de 60 delegados e representantes dos partidos comunistas da Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. A abertura solene do evento coube ao mais antigo dirigente, Astrojildo Pereira. Emocionado afirmou: “Devo recordar, nesta hora, aqueles que tombaram no seu posto de luta, os nossos heróis e mártires, cujos nomes guardamos como inspiração e incentivo ao prosseguimento da obra revolucionária que eles souberam honrar com a sua bravura e o seu sacrifício (…) São homens e mulheres que enfrentaram corajosamente as armas assassinas e as torturas bestiais da reação nos cárceres, nas greves e lutas operárias, na luta de camponeses, nas ações e demonstrações de rua”.

Da Ordem do dia constava a apresentação e discussão de três informes: 1º) O Balanço do Comitê Central, informe de Luís Carlos Prestes; 2º) Sobre o Programa, informe de Diógenes Arruda; 3º) Sobre os Estatutos, informe de João Amazonas. Ocorreram ainda inúmeras intervenções especiais abarcando todas as áreas de atuação do partido. Destacam-se os informes de Maurício Grabois sobre o trabalho de agitação e propaganda e de Carlos Marighela sobre a campanha eleitoral.

Uma curiosidade: os documentos do Partido dizem que o informe sobre o novo estatuto do Partido foi elaborado por João Amazonas, que era membro do secretariado do CC. Mas, na verdade ele não estava no Brasil e sim na URSS. Amazonas era o responsável pela segunda turma de comunistas brasileiros que faziam um curso de aprofundamento do marxismo-leninismo naquele país. Por razões de segurança, essa participação devia ser revestida do mais completo sigilo. Portanto, o informe sobre o estatuto não foi elaborado e nem apresentado por ele. Pela importância do documento deve ter sido elaborado sob a supervisão direta de Diógenes Arruda e do próprio Prestes – os dois principais dirigentes partidários na ocasião. Embora não participando do conclave, Amazonas concordou integralmente com as resoluções ali aprovadas e foi reconduzido ao Comitê Central e ao presidium do Partido.

Contra o imperialismo americano… e Vargas

O informe principal foi o de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do partido, que fazia um balanço da atuação do Comitê Central. O texto criticava a tática adotada entre 1948 e 1952, considerada esquerdista. Afirma ele: “ao corrigirmos os erros de direita, fomos unilaterais e caímos em posições sectárias e esquerdistas, expressados em nossos documentos da época, desde o Manifesto de Janeiro de 1948 até o Manifesto de Agosto de 1950, bem como na atividade prática do Partido, abstencionismo eleitoral em outubro de 1950, na tendência a abandonar a luta pelas reivindicações imediatas dos trabalhadores, no emprego de uma fraseologia ultra-revolucionária etc”.

No IV Congresso ocorreu não somente uma retificação da tática, mas também da própria estratégia dos comunistas brasileiros. Se, de um lado o informe de Prestes e o Programa proposto mantinham a idéia-mestra da necessidade de derrubada revolucionária do regime e da existência de duas etapas distintas na revolução brasileira: uma antifeudal e antiimperialista (ou democrático-burguesa) e outra socialista.

Por outro, ao contrário do que diziam documentos anteriores e predicava Lênin, essas etapas não seriam vistas como parte de um único e mesmo processo e sim como duas etapas mais ou menos estanques, nitidamente separadas no tempo. Como conseqüência dessa alteração da visão estratégica, o partido viu-se obrigado a mudar também a sua posição em relação ao papel a ser desempenhado pela burguesia brasileira na primeira etapa da revolução. Sua participação adquiriu maior vulto.

Escreveu Prestes: “Lutamos pela destruição do atual regime dominante no Brasil. Sem destruir as bases do atual regime de latifundiários e grandes capitalistas não é possível libertar o Brasil do jugo imperialista, livrar as massas trabalhadoras da exploração crescente e garantir o desenvolvimento independente da economia nacional (…) Por ser um país semicolonial e semifeudal, as atuais relações de produção no Brasil opõem-se violentamente ao desenvolvimento das forças produtivas”. Ele, então, defendeu a formação de uma “frente democrática de libertação nacional”, cuja base seria constituída “pela força indestrutível da aliança operária e camponesa”. Desta frente além dos setores populares participariam uma “parte dos grandes industriais e comerciantes, que também sentem a concorrência dos imperialistas norte-americanos e sofrem os efeitos da política econômica e financeira do governo de latifundiários e grandes capitalistas”.

“No que concerne às relações com a burguesia nacional, afirmou ele, o Programa do Partido não só não ameaça seus interesses como defende suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvimento da indústria nacional (…) As necessidades já maduras do desenvolvimento da sociedade brasileira, que exigem solução imediata, são exclusivamente as de caráter antiimperialista e antifeudal. A burguesia nacional não é, portanto, inimiga; por determinado período pode apoiar o movimento revolucionário contra o imperialismo e contra o latifúndio e os restos feudais”. A essência de classe do novo regime democrático-popular seria “a ditadura das forças revolucionárias antifeudais e antiimperialistas”. Por isso mesmo este seria efetivamente “o poder do povo”, um poder que representaria “os operários, camponeses, pequena burguesia e burguesia nacional – sob direção da classe operária e do seu Partido Comunista”.

Apesar da crítica ao esquerdismo presente na tática do período imediatamente anterior, o programa proposto continuava subestimando o papel das eleições: “Embora as eleições devam ser aproveitadas pelo povo em sua luta, elas não passam, nestas condições, de uma farsa para tentar esconder o caráter despótico do atual regime”. Para os comunistas a constituição de 1946 seria “no essencial um código de opressão contra o povo”.

O programa refletia a conjuntura internacional de acirramento do conflito entre Estados Unidos e URSS. Ele, praticamente, se resumia ao ataque aos interesses políticos e econômicos do imperialismo norte-americano no país. Afirmava Prestes: “se bem que o Brasil seja um país semicolonial, submetido a exploração de diversos grupos imperialistas, o Programa do Partido dirige seu gume contra o imperialismo norte-americano, exigindo o confisco de todos os capitais e empresas pertencentes aos monopólios norte-americanos que operam no Brasil, a anulação da dívida externa do Brasil para com o governo dos Estados Unidos e dos bancos norte-americanos, a expulsão do Brasil de todas as missões militares, culturais, econômicas e técnicas norte-americanas”.

Os comunistas pretendiam utilizar, assim, as possíveis contradições existentes entre os países imperialistas, abrindo “para os demais monopólios imperialistas a perspectiva de acordo”. Defender um ataque contra os interesses do conjunto das nações imperialistas “concorreria para ampliar desnecessariamente o campo dos inimigos externos mais imediatos da revolução brasileira”.

O Programa chegou mesmo a defender o ingresso do capital estrangeiro – não-americano – para o desenvolvimento da economia nacional. O governo democrático-popular, nascido da revolução, afirmava o documento procurará “atrair a colaboração de governos e de capitalistas estrangeiros, cujos capitais possam ser úteis ao desenvolvimento independente da economia nacional, sirvam à industrialização e se submetam às leis brasileiras”. Muitos antigos militantes afirmaram que Diógenes Arruda, então secretário nacional da organização, gostava de dizer que esta proposta de programa havia sido aprovada pelo próprio Stálin, o que dava a ela o status de algo inalterável.

O caso Fernando de Lacerda

Durante o processo de preparação do congresso surgiu a crise com o antigo dirigente comunista Fernando de Lacerda. Este escreveu vários artigos para a Tribuna de Debates nos quais fazia alguns reparos ao projeto de programa, que segundo ele teria “falhas e formulações que não ajudavam o Partido a cumprir suas exigências”. Os três artigos mais importantes foram “Nenhuma guinada para a esquerda no Programa do Partido”, “Nenhuma guinada para a direita no Programa do Partido” e “Esclarecendo dúvidas em torno dos meus artigos”.

Fernando de Lacerda, nos seus artigos, se colocava contra a diretiva de derrubada do governo. Quando foi escrito o projeto de programa quem governava o Brasil era Vargas – que estava sob violento ataque da direita liberal e do imperialismo norte-americano. Em seus artigos escreveu ele: “Se, pois, lançamos como diretiva de ação imediata a palavra de ordem de ‘derrubar Vargas’, nós não alimentamos apenas as tendências e ilusões putchistas de certos democratas e patriotas (…) nós faremos também o jogo dos lacaios ianques, de Carlos toalha (referia-se a Carlos Lacerda) e comparsas e do próprio Vargas”. Por outro lado, criticava as ilusões presentes no projeto em relação a grande burguesia: “essa burguesia conciliadora brasileira dificilmente poderia fazer parte (…) da Frente Nacional a que se refere ao programa”. Duas constatações bastante pertinentes.

A resposta foi dura. Um artigo de Quintino de Carvalho, intitulado “Fernando de Lacerda faz o jogo do imperialismo”, acusou-o de tentar criar “pretensas contradições entre o governo Vargas e o imperialismo ianque” e com isto “preservar o governo Vargas contra o golpe do imperialismo que seria o ‘mal maior'”.

O próprio Prestes propôs a exclusão do nome de Lacerda da lista de candidatos a membros do Comitê Central, que deveria ser apresentada e aprovada no congresso, e que seu “caso” foi remetido para Comissão Central de Controle – organismo que julga os militantes por descumprimento dos estatutos e princípios partidários.

Afirmou Prestes: “Devemos agora decidir se é admissível que permaneça como candidato a membro do organismo dirigente máximo do Partido e que (…) participe do IV Congresso quem professa e predica idéias contrárias as defendidas pelo Partido de que é militante”. Continuou: “Fernando Lacerda (…) quis aproveitar-se do debate para combater o programa do Partido e (…) utilizar a imprensa do Partido para difundir as suas opiniões antipartido (…) e propõe pura e simplesmente que se elimine do Programa do Partido a exigência de derrubada do governo Vargas”. Estranhamente este artigo do dirigente máximo do PCB foi publicado na revista Problemas de setembro de 1954, quando Vargas já havia sido alvo de um golpe de Estado pró-imperialista e se suicidara.

As argumentações de Preste eram infundadas, pois Fernando de Lacerda estava se colocando não contra o programa do Partido, mas contra um projeto que deveria justamente ser objeto de discussão e aprovação na instância máxima da organização comunista: o congresso nacional. Além disso ele, corretamente, se posicionava através de um órgão especialmente criado para este fim: a Tribuna de debates. Isso evidenciava o espírito pouco democrático reinante na direção do Partido naquela época, para a qual qualquer divergência era encarada como um perigoso ato antipartidário. Muitas das preocupações de Lacerda comprovaram ser justas. Os aspectos esquerdistas presentes no projeto de programa, criticados por ele, tiveram que ser retificados poucos meses depois, especialmente depois do impacto do suicídio de Vargas. A visão estanque sobre as etapas da revolução brasileira e a superestimação do papel da burguesia brasileira nesse processo precisaria de mais alguns anos para serem superadas.

* Este artigo foi publicado com algumas alterações em A Classe Operária, em novembro de 2004.