De Augusto Buonicore

O PCB na Constituinte

A bancada comunista teve destacada atuação no processo constituinte. Logo no primeiro dia já causou celeuma quando denunciou a presença do ministro do Superior Tribunal Eleitoral – Waldemar Falcão – na presidência da primeira sessão da Assembléia Nacional Constituinte. Protesta justamente em nome da soberania do poder constituinte que representava.

Diante da postura altiva assumida pelos deputados comunistas, o jornal liberal-conservador O Estado de São Paulo afirmou: “Os comunistas, já no primeiro dia, se salientaram como elementos perturbadores da marcha dos trabalhos. Na realidade o que demonstram é a incompatibilidade de seus próprios métodos e ideologia com a prática da democracia e o respeito que se deve ao Parlamento”.

A primeira grande polêmica foi em torno da questão da manutenção ou não da Constituição estadonovista de 1937, enquanto transcorressem os trabalhos constituintes. A bancada comunista defendeu que desde que se instalara a Constituinte, a antiga Carta de 37 deixava de existir. Essa tese foi derrotada por uma maioria composta pelo PSD, em aliança com o PTB e outros pequenos partidos conservadores.

A maioria governista, conservadora, aprovou no Regimento Interno o preceito de que durante as sessões os deputados constituintes não poderiam tratar de outro assunto senão das materiais exclusivamente que diziam respeito à nova constituição. Isto limitava o poder do parlamento e dava carta branca para o presidente-general continuar legislando através de decretos-leis. Dia a dia a assembléia constituinte se subordinava passivamente aos ditames do poder executivo, encabeçado pelo general-presidente Eurico Gaspar Dutra.

Logo nos primeiros dias de trabalho foi constituída uma comissão que teria por função apresentar uma proposta de projeto constitucional. A sua composição e o resultado apresentado refletiam bem a correlação de força existente na assembléia, amplamente favorável aos grupos conservadores. Os deputados PCB foram obrigados a votar contra o anteprojeto.

Afirmou Prestes: “Votamos contra o projeto por ser no seu todo e na maioria dos seus capítulos a negação daquilo por que prometemos lutar. É extenso porque multiplica exceções e, inúmeras vezes, se põe a limitar, senão a negar, direitos, preceitos e afirmações do próprio projeto (…) Não se diz nada de prático sobre a reforma agrária, sobre a maneira de acabar com os restos feudais na agricultura, sobre a necessidade do ensino gratuito, sobre a gratuidade indispensável da justiça, sobre as medidas práticas que assegurem o progresso do Brasil”. Os comunistas tentaram, sem muito sucesso, alterar o projeto conservador através da apresentação de centenas de emendas, a quase totalidade indeferida ou rejeitada. Partiram então para organizações de grandes mobilizações populares em defesa de uma constituição democrática. Mas, o governo proibiu todas as manifestações.

A bancada do PCB se colocou contra o presidencialismo e propôs um sistema misto com um parlamento forte, pelo qual o próprio presidente deveria ser eleito pelo Congresso. Afirmavam os comunistas: “o que julgamos sumamente perigoso é insistir no presidencialismo na maneira como o foi no projeto. Cometeríamos um crime insistindo em estabelecer novamente a ditadura de fato do executivo, porque assim agindo estamos apontando com a Revolução para todos aqueles que querem o progresso do Brasil e não se conformam com a morte da democracia em nossa Pátria”.

Após a aprovação do presidencialismo forte, os comunistas protestaram: “Aqui em nossa pátria, a verdade é que o presidencialismo tem sido a ditadura, sempre ditadura; benéfica ou maléfica, mas sempre ditadura; o contrário, portanto, da democracia. O projeto que temos em mãos agrava-a ainda mais e os poderes, nas mãos do Presidente da República, são os mesmos das constituições anteriores, mas aumentados”. Todas emendas matizando o presidencialismo foram rejeitadas.
Os comunistas defenderam a extinção do Senado e a redução do tempo dos mandatos dos deputados de 4 para 2 anos. Defenderam a extensão do direito ao voto aos analfabetos, marinheiros, soldados, cabos e sargentos. Na defesa desse projeto se destacou o deputado pernambucano Gregório Bezerra.

“Não é possível, afirmava Bezerra, na época moderna que atravessamos, que cerca de trinta milhões de brasileiros fiquem privados do direito de cidadania, da faculdade de escolher os candidatos de sua preferência para representar, nesta assembléia, seus interesses, seus direitos e suas reivindicações”.
Outra grande batalha travada contra as correntes antidemocrática foi na defesa da autonomia dos municípios. O anteprojeto, impregnado pelo espírito centralista e autoritário, estabelecia que os prefeitos do Distrito Federal e das capitais deveriam ser indicados pelo Presidente da República e pelos governadores de Estado. Estabelecia que os balneários, cidades portuária e nas quais existissem unidades militares importantes não haveria eleições para o executivo municipal. Esse era um casuísmo visando impedir que a oposição, especialmente o PCB, pudesse vencer nas cidades mais importantes do país. Novamente a tese conservadora foi vencedora.

No entanto, foi na defesa dos direitos dos trabalhadores que a bancada comunista mais se distinguiu, diferenciando-se de todas as outras. Os comunistas defenderam intransigentemente o direito de greve e a livre organização dos trabalhadores contra a maioria conservadora e mais uma vez seriam derrotados em grande parte de suas proposituras.

Em relação ao direito de greve os comunistas propuseram uma emenda que simplesmente dizia: “É reconhecido o direito de greve”. Eles afirmaram em sua justificativa que o “direito de greve é um dos direitos fundamentais do homem e por isso não pode admitir limitações que na prática possam torná-lo insubsistente. Não se pode admitir as restrições do projeto, pois levariam fatalmente à eliminação do direito de greve. Por que condicionam esse direito às ‘limitações impostas pelo bem público”? Qual o juiz dessas limitações? A polícia, o Ministro do Trabalho, o da Justiça, o Presidente da República?”

Nesse artigo da Constituição, como em diversos outros, ficava estampada a ambigüidade das constituições burguesas em relação ao proletariado. Afirmava-se um direito em um parágrafo para depois negá-lo em outro. É aprovado um parágrafo que reconhecia o direito de greve, mas, contraditoriamente, afirmaria logo em seguida que uma lei ordinária deveria regulamentar esse direito. Dutra já o havia regulamentado com um decreto-lei antigreve alguns meses antes. Esse decreto vigorará durante décadas, impedindo, de fato, o livre direito de greve no país.

Em relação ao direito de associação sindical, a proposta de emenda dos comunistas afirmava simplesmente: “são garantidas a liberdade e a autonomia sindicais. A lei assegurará a representação sindical dos trabalhadores nas empresas”. Outra emenda era ainda mais telegráfica: “A associação sindical é livre”. Em sua justificativa a bancada comunista expressou qual era a sua visão sobre a liberdade sindical: “O que se compreende por liberdade sindical é o direito assegurado ao trabalhador de constituir, ele mesmo, sua própria organização, independente de qualquer regulamento do governo, dentro de suas possibilidades e conhecimentos. É o próprio proletário que deve escolher formas e métodos a usar na organização sindical, a maneira de dirigi-las, respeitadas apenas as exigências legais, para o seu reconhecimento como sociedade civil. Portanto, vemos assim quanto há de perigoso na fórmula usada pelo Projeto constitucional, deixando à lei ordinária a faculdade de regular constituição dos sindicatos, princípio esse que é, na prática, a negação da própria liberdade sindical que ela procura assegurar”.

Mas, a redação aprovada pelo plenário afirmaria que “é livre a associação profissional e sindical”, para, em seguida, complementar que essa seria “regulada por lei a forma de sua constituição, a sua representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público”. Como no caso anterior, caberia a uma lei regulamentar a forma de organização dos trabalhadores. Como a lei já existia, era a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, tudo continuaria como antes. O ministério manteria seu poder de intervir nas entidades sindicais.

Quanto à questão do direito à propriedade os comunistas procuraram relativizá-lo e subordiná-lo a outros direitos e interesses. A emenda dos comunistas afirmava: “É garantido o direito de propriedade, desde que não seja exercido contra o interesse social ou coletivo, ou quando não anule, na prática, as liberdades individuais proclamadas nesta Constituição ou ameace a segurança nacional”. Os comunistas chegaram a afirmar que esta redação permitiria que “empresas de serviço público em ritmo mais ou menos acelerado, poderiam passar para as mãos do Estado”.

A bancada do PCB se colocou também contra o artigo que previa o pagamento prévio em dinheiro e pelo justo valor das propriedades desapropriadas por utilidade pública e interesse social. Esta condição, segundo os comunistas, inviabilizaria qualquer tentativa legal de realizar a reforma agrária e urbana no Brasil.

Em setembro de 1946, os comunistas votaram favoravelmente. Apesar de tudo, ela representava um avanço democrático quando comparada às anteriores. Mas havia um problema: o próprio presidente não se mostrava disposto a cumpri-la. Nas suas disposições transitórias ela determinava a realização de eleições para as constituintes estaduais num prazo de 120 dias. Os comunistas se prepararam então para mais essa grande batalha de caráter nacional.

As eleições de 1947

Em 6 de dezembro de 1946, instalou-se um pleno do Comitê Nacional do PCB. Os comunistas aprovaram a proposta de concorrer com listas próprias nas eleições para as assembléias legislativas estaduais que ocorreriam em janeiro de 1947. Quanto às eleições para os governos dos Estados e para as vagas suplementares na Câmara Federal, a posição dos comunistas foi de compor com outras forças no sentido de “levar a tais posições os homens que nos derem maior garantias democráticas e os representantes de correntes e partidos políticos que melhor se definam em defesa da Constituição”. Os comunistas se lançaram na campanha eleitoral com o objetivo ousado de obter 1 milhão de votos.

Ainda no final de 1946 os comunistas brasileiros defenderam a tese sobre a possibilidade da conquista, através de meios pacíficos e legais, de uma “democracia progressista capaz de assegurar a solução progressista dos mais sérios problemas do nosso povo”, E fizeram uma curiosa relação entre a democracia progressista e a “democracia popular” que vinha sendo implantada no leste europeu. Para justificar sua tese reformista, de negação da revolução e da ditadura do proletariado, utilizaram-se de uma famosa – e polêmica – afirmação de Dimitrov: “A vantagem dessa democracia popular é que a passagem ao socialismo torna-se possível sem ditadura do proletariado. Cada país passará ao socialismo pelo seu próprio caminho”.

Continuava o informe de Prestes: “E aos que não compreenderam, ainda que vivemos em novos dias, em condições históricas completamente diferentes daquelas anteriores à guerra contra o nazismo e que, em nome do marxismo, tomado como dogma morto e frio, protestam contra esta possibilidade de passagem pacífica para o socialismo, respondem os fatos e Thorez, quando mostra a diferença entre os que os que do marxismo guardam as cinzas, e nós que o alçamos em nossas mãos, e mantemos sempre viva e crepitante, a chama luminosa do verdadeiro marxismo-leninismo-stalinismo”. Essas teses retornariam com força após 1956.

Nas eleições para as assembléias estaduais os comunistas elegeram 46 deputados em quinze Estados e no Distrito Federal. Nas eleições suplementares para a Câmara Federal, realizadas em São Paulo, foram eleitos Pedro Pomar e Diógenes Arruda, sob a legenda do Partido Social Trabalhista.
Em 22 de fevereiro de 1947 instalou-se o pleno ampliado do Comitê Nacional do PCB que decidiu pela convocação do IV Congresso do Partido. A cassação do registro do Partido ocorrida em maio de 1947 e dos mandatos em janeiro de 1948 inviabilizou a realização do Congresso que só Pôde se realizar cerca de sete anos mais tarde.

O fechamento do partido

Uma das justificativas para o fechamento do Partido foi a resposta dada por Luís Carlos Prestes à uma pergunta provocativa feita por um jornalista. Diante da questão: “Qual seria a posição dos comunistas caso o Brasil entrasse em guerra contra URSS?”, Prestes afirmou: “Faríamos como o povo da resistência francesa, o povo italiano, que se ergueram contra Petain e Mussolini. Combateríamos uma guerra imperialista contra a URSS e empunharíamos armas para fazer resistência em nossa Pátria”. E ratificou essa mesma opinião no parlamento.

A resposta de Prestes fez levantar-se uma onda de protestos dos setores conservadores. Essa para eles seria uma prova de que o PCB não era um partido nacional, mas sim um satélite soviético. Em março de 1946 já haviam entrado com um pedido de cassação do registro partidário. Num primeiro momento ninguém deu muita atenção àquela solicitação tão despropositada.

Meses mais tarde, em uma diligência policial, foi encontrada uma cópia do projeto de reforma dos estatutos. Surgiu, então, a acusação de que o PCB tinha dois estatutos, um registrado no cartório e outro ilegal que, de fato, regeria a vida dos militantes. A partir desse material o Ministério Público apresentou as insólitas acusações de que o “partido era comunista e era do Brasil, não brasileiro” e era “representado pelo seu secretário-geral, que pressupunha autoridade superior”. Com esses frágeis pretextos solicitou formalmente a cassação do registro do partido.

Os comunistas responderam ironicamente: “Não pode o partido ser acoimado de antidemocrático por intitular-se ‘do Brasil’, como os Estados Unidos do Brasil, a Estrada de Ferro Central do Brasil, nem procede a estranheza de ser dirigido por um secretário-geral em vez de presidente, pois há vários organismos sociais e religiosos sem tal dirigente”.

E em sete de maio de 1947 o TSE decidiu pela cassação do registro do PCB e suas sedes foram fechadas. Ele foi considerado uma organização a serviço de uma potência estrangeira, que recebia recursos e orientação da URSS. O marxismo-leninismo foi considerado uma ideologia exótica que feria o espírito democrático da Constituição brasileira. Conseguida a ilegalidade do Partido, cabia, então, cassar seus parlamentares. A direita não perdeu tempo e em 10 de janeiro de 1948 conseguiu aprovar o projeto que cassava os mandatos comunistas. Os seus principais dirigentes foram obrigados a voltar à clandestinidade. Iniciou-se, assim, uma nova fase na vida do Partido Comunistas do Brasil.

Augusto C. Buonicore é Historiador, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)