70 anos da batalha antifascista da Praça da Sé
Há 70 anos, dia 7 de outubro de 1934, ocorria em São Paulo o episódio conhecido como Batalha da Praça da Sé, quando o povo pôs os fascistas para correr*
O Integralismo: o ovo da serpente no Brasil
Na cabeça dos militantes antifascistas brasileiros ainda estavam vivas as lembranças de dois sombrios acontecimentos ocorridos na Europa alguns anos antes. O primeiro foi a grande marcha que os fascistas italianos realizaram sobre Roma em outubro de 1922, depois da qual Benito Mussolini foi chamado pelo rei Victor Emmanuel III para formar o novo gabinete italiano. Emergia assim o primeiro governo tipicamente fascista da Europa Ocidental. Aquela marcha havia sido precedida por inúmeros atentados contra organizações operárias e populares. Em muitas regiões estas já haviam sido destroçadas pelos temidos “camisas negras”. Alguns anos depois, em janeiro de 1933, Hitler foi chamado pelo presidente Hindenburg para formar o novo governo alemão. A vitória nazista foi precedida e sucedida por grandes marchas a luz de tochas.
Nos dois casos a ascensão do fascismo ao poder se deu através da conquista das ruas e da intimidação e destruição das organizações democráticas e socialistas. A ousadia fascista e as grandes manifestações encantaram a pequena-burguesia temerosa do possível avanço do comunismo. Os nazi-fascistas demonstraram, na prática, que podiam impor ordem à “anarquia operária”. A grande burguesia e os latifundiários também agradeceram os serviços (sujos) prestados por eles na Itália e na Alemanha. Outro fator que contribuiu para o rápido sucesso das forças reacionárias foi a profunda divisão existente entre as forças de esquerda, especialmente entre os comunistas e social-democratas.
Tudo isto veio à tona quando chegou a notícia de que os integralistas, uma versão tupiniquim dos nazi-fascistas italianos e alemães, pretendiam realizar uma grande demonstração no centro da cidade de São Paulo em sete de outubro de 1934. Diante da instabilidade política que vivia o país, ela não deixava de representar um perigo a frágil democracia. Muitos membros do governo Vargas, particularmente na cúpula das forças armadas, não escondiam suas simpatias pelo regime de Mussolini.
Portanto, era preciso impedir a marcha integralista. Os antifascistas sabiam que o próximo passo seria o ataque às sedes e militantes do movimento democrático e socialista, com apoio das forças de repressão do Estado. Isto, inclusive, já havia ocorrido em algumas ocasiões, nas quais a polícia e os integralistas se juntaram para desbaratar atividades promovidas pela esquerda.
A Ação Integralista Brasileira (AIB) havia sido criada num ato realizado no Teatro Municipal de São Paulo em 7 de outubro de 1932. Nasceu a partir da unificação de várias organizações fascistas regionais e passou a ser dirigida por Plínio Salgado. Foi, justamente, para comemorar os dois anos de sua fundação que planejou-se realizar uma grande manifestação envolvendo dez mil de seus adeptos na capital paulista. Os símbolos do movimento eram o sigma e a camisa verde – por isto seus integrantes eram ironicamente chamados de “galinhas verdes”. Calculava-se que o movimento no seu auge possuía cerca de 180 mil membros, a maioria concentrada nos Estados no sul.
A resistência antifascista em São Paulo
Depois da ascensão de Hitler ao poder foi formado, com o apoio da Internacional Comunista, o Comitê Mundial de Luta Contra o Fascismo, a Reação e as Guerras Imperialistas. Entre os seus dirigentes estavam Máximo Gorki, Romain Rolland e Henri Barbusse. Rapidamente se criou uma ramificação deste movimento no Brasil. Formaram-se comitês nas escolas e sindicatos. Os comunistas passaram a ser os grandes animadores desta idéia.
Conforme crescia a repulsa popular ao fascismo criavam-se as condições para construir movimentos de frente-única antifascistas. Pouco a pouco, e não sem dificuldades, quebravam-se as desconfianças existentes entre comunistas, trotskistas, socialistas e anarquistas. As primeiras reuniões para discutir a organização de atos unitários foram marcadas pelo sectarismo que ainda impregnava todas as tendências da esquerda mundial e, por conseguinte, a brasileira.
Um dos mais ativos participantes daquele movimento o comunista Eduardo Maffei, narrou como foram aquelas primeiras reuniões. “Desde a primeira reunião, escreveu ele, atritaram-se stalinistas e trotskistas. Saccheta sempre chegava com um catatau, cheio de chavões, sempre do mesmo padrão, condenando menos os integralistas que os trotskistas. Estes não deixavam por menos. Fúlvio Abramo e Mário Pedrosa, impassíveis, ficavam mirando o arengueiro. Depois retrucavam (…) Esse bate-boca extemporâneo e vazio continuou perturbando todas as reuniões, causando um mal-estar geral (…) Durante uma disputa irritante entre líderes comunistas e trotskistas, Carmelo Crispino (…) pediu a expulsão dos camaradas de Stálin e Trotsky para que se pudesse combater o fascismo (…) Ristori emendou (…) enquanto os integralistas preparavam a ocupação das ruas, nós, os antifascistas, estávamos perdendo em pendências nem sequer ideológicas”. Suspenderam-se, assim, as pendengas e partiram para discussão da contra-manifestação em São Paulo.
Daquelas reuniões preparatórias participaram, entre outros, os comunistas Joaquim Câmara Ferreira, Armando Pedroso d’Horta, Hermínio Sachetta, Miguel Costa Jr., Noé Gertel, Eneida e Eduardo Maffei; os trotskistas, Mário Pedrosa e Fúlvio Abramo; os socialistas Francisco Giralde Filho, Zoroastro Gouvêa e João Cabanas, e os anarquistas Edgard Leuenroth e Pedro Catalo. Nunca algo assim tinha acontecido na história do movimento socialista brasileiro.
Foram formadas duas comissões: uma de mobilização popular e outra militar. Da segunda a faziam parte o líder tenentista João Cabanas, o ex-comandante Roberto Sisson e Euclydes Krebs, representando o PCB. Ela organizou a estratégia para o ataque a manifestação integralista. Cada área da Praça da Sé, onde deveria culminar a marcha fascista, deveria ser guarnecida por uma das organizações participantes do movimento.
Foi elaborada também uma convocação conjunta para o ato. Assinavam além dos grupos acima citados, a Coligação dos Sindicatos Proletários e dezenas de sindicatos e organizações antifascistas. Os jornais A Classe Operária, O Homem Livre, A Manha, A Plebe, A Platéia passaram a divulgar o evento. No dia 4 de outubro A Platéia estampava na primeira página: “O PCB convida todos os partidos da esquerda e sindicatos operários para uma Frente Única anti-fascista”. No dia 6 a manchete era: “Pela primeira vez, em São Paulo, um comício monstro contra o fascismo”.
A marcha dos “camisas verdes” foi protegida pela polícia e chegou a tomar quase dois quilômetros da Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Quando se iniciavam a palavras-de-ordem fascistas, os militantes de esquerda iniciavam o coro de “abaixo o integralismo!”. Estas primeiras manifestações de protestos foram reprimidas violentamente.
Uma rajada de metralhara foi efetuada para limpar a Praça da Sé dos manifestantes que a ocupavam. Mas, isto apenas acirrou os ânimos. Quando se reiniciou a contramanifestação estourou um novo tiroteio entre as forças de segurança, ao lado dos integralistas, e os antifascistas. Realizaram-se, então, minicomícios em cada canto da praça. Neles falaram Fúlvio Abramo, Hermínio Sachetta, entre outros. O grosso dos militantes integralistas fugiu logo no início do conflito. Uma testemunha descreveu a cena: “Despiam as camisas mesmo correndo. Naquela capital do inferno em que se transformara a Praça da Sé, desabusada e corajosamente, rindo, um antifascista, Vitalino, carroceiro, dono de um ferro-velho, divertia-se, ajudando-os a despi-las. Tempos depois vangloriava-se de possuir, como recordação, em sua casa, mais de uma dúzia delas, guardadas como troféus de um momento histórico”. Diante desta fuga desorganizada, ironizou o humorista comunista Barão de Itararé: “Um integralista não corre, voa”.
Mas as coisas não foram tão fáceis. Um grupo de choque integralista, com apoio da polícia, sustentou cerca de quatro horas de pesado tiroteio. Entre os militantes que resistiam de armas nas mãos estavam as jovens Lélia Abramo, trotskista e Luisa Marcelino Branco, comunista. O saldo do dia foi: seis mortos e 34 feridos, a maioria à bala. Entre os mortos estava o jovem comunista Décio Pinto de Oliveira, que foi alvejado na cabeça quando discursava. Ele passou a ser o símbolo do movimento antifascista brasileiro daqueles anos. No conflito também foram feridos Cipriano Cruz e Mário Pedrosa. Este último foi atingido quando ajudava um militante comunista atingido. Protestando corajosamente em meio ao tiroteio estava o histórico militante anarquista Edgard Leuenroth. Como afirmou Eduardo Maffei: “Nesse momento, de mãos dadas, trabalhadores, intelectuais e estudantes, stalinistas e trotskistas, só objetivavam o inimigo principal”.
O acontecimento histórico ocorrido na Praça da Sé naquela tarde de domingo serviu de exemplo para todo o país. Os conflitos se multiplicaram e as forças democráticas e populares não permitiram que os fascistas brasileiros assaltassem as ruas das grandes cidades e intimidassem o proletariado. Não permitiriam que acontecesse aqui o que aconteceu na Itália e na Alemanha. A Batalha da Praça da Sé foi também o momento inicial da constituição da ampla Frente Antifascista no Brasil e que teria sua principal expressão na Aliança Nacional Libertadora, fundada no ano seguinte.
* Este artigo utilizou com fonte privilegiada o livro “A Batalha da Praça da Sé”, escrito pelo veterano militante comunista Eduardo Maffei e publicado em 1984 pela Editora Philobiblion – RJ.
**Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)