Estamos às vésperas de um grande acontecimento na vida do PCdoB, que é a realização da 1ª Conferência Nacional Sobre a Questão da Mulher. Não deixa de ter certo simbolismo o fato de que ela ocorrerá no momento em que o nosso Partido comemorará seus 85 anos de vida.

No entanto, tenho lá minhas dúvidas se os militantes comunistas compreenderam que este acontecimento representará uma verdadeira revolução em nosso meio. Agora não se trata mais de um informe num congresso, mas sim de uma Conferência Nacional na qual os comunistas, homens e mulheres, discutirão o papel essencial da luta pela emancipação feminina no interior do processo mais geral de luta pela emancipação humana. Portanto, esta questão adquire um novo status dentro do Partido Comunista.

O próprio documento apresentado ao debate é um dos melhores já elaborados sobre o tema. Mas ele não foi um raio em céu sereno, como podem pensar alguns. Ele foi o resultado do amadurecimento teórico e político dos quadros partidários femininos – e de alguns poucos quadros masculinos – ao longo dessas últimas décadas. Um processo que teve como marcos importantes o informe de Jô Moraes ao VII Congresso (1988) e os de Liége Rocha aos IX e X congressos, respectivamente em 1997 e 2001.

Este debate foi alimentado ao longo dos últimos 20 anos pela Presença de Mulher – a melhor revista feminista brasileira. Destaco aqui, também, as contribuições das camaradas Ana Rocha, Loreta Valadares, Olívia Rangel, Sara Sorrentino, Clara Araújo entre outras. Podemos dizer, com segurança, que poucos partidos elaboraram tanto – e tão bem – sobre os problemas da emancipação da mulher quanto o PCdoB. Portanto, não estamos desarmados no debate ora em curso.

A atuação política das comunistas no movimento de mulheres se deu paralelamente a este desenvolvimento teórico – um se alimentou do outro, numa relação dialética. Grande foi a participação das comunistas na luta pela anistia e no movimento contra a carestia. Neste último foi marcante a presença feminina, especialmente operária e popular. Como resultados dessas lutas, no início da década de 1980, constituíram-se as chamadas “uniões de mulheres” que tiveram um grande papel na aglutinação das mulheres para a luta social e política, sob direção do Partido Comunista. Muitas entraram para a luta e para o PCdoB através dessas uniões.

Em 1988, auge da luta social no país, foi criada a União Brasileira de Mulheres (UBM). Segundo a dirigente comunista Liége Rocha, ela surgiu da necessidade de articular as várias uniões já existentes “na perspectiva de se constituir numa entidade de amplas massas, defendendo a concepção, do que costuma se chamar de feminismo emancipacionista”. Os dois primeiros congressos massivos refletiram esta perspectiva de uma UBM como entidade de massas e ao mesmo tempo como uma corrente de opinião socialista e revolucionária no movimento mais amplo de mulheres.

Mas, sem dúvida, este processo não foi retilíneo. Conheceu avanços e recuos. A década de 1990 foi um desses momentos de recuo das lutas libertadoras e afetou em cheio o movimento feminista mais avançado. O refluxo teve impacto na subjetividade dos militantes socialistas e isto ocasionou um rebaixamento na nossa agenda política, teórica e ideológica. O PCdoB ainda tentou reagir e disto são provas, entre outras, os informes especiais dados nos diversos congressos e já citados acima.

Os documentos, embora importantes, não puderam camuflar o fato de que houve um recuo na discussão sobre a “questão das mulheres” no interior da sociedade e do Partido. As mulheres perderam espaço. Uma tendência que começou a ser revertida no XI congresso, com a aprovação dos novos estatutos. A Conferência Sobre a Questão das Mulheres, um dos resultados daquele conclave, será uma oportunidade ímpar para recuperarmos nosso atraso relativo e nos constituirmos na vanguarda da luta das mulheres por sua libertação.

O primeiro – e na, minha opinião, o principal – desafio a se enfrentar, como diz o próprio documento, é o da “subestimação do sentido estratégico da luta contra a desigualdade” entre os sexos. Uma subestimação que está presente na militância do Partido, inclusive na sua direção.

Seguindo a trilha do bom marxismo – que abomina o economicismo – o documento-base afirma que “o surgimento da opressão de sexo coincide historicamente com a opressão de classe (…) Mas a primeira não é mero resultante da segunda, nem se resolve automaticamente com o fim da exploração de classe”. Este processo é mais complexo e sofre inúmeras outras mediações.

A conquista do socialismo é uma das condições para emancipação da mulher, mas ela não é ainda suficiente. Sem negar o avanço das conquistas das mulheres nas sociedades pós-revolucionárias, o documento propõe “uma avaliação crítica da construção do socialismo e de seus reflexos na situação da mulher”, pois ali “não se conseguiu alterar significativamente o papel das mulheres nas relações familiares. Manteve-se, em boa medida, a divisão sexual do trabalho herdada das sociedades anteriores”.

Ele, em seguida, enumera os fatores que levaram a esta situação. Um deles foi o baixo desenvolvimento das forças produtivas – foram, em geral, revoluções em países (econômica, política e culturalmente) atrasados. Outro fator, não menos importante, foi de caráter subjetivo, expresso na falta de uma consciência de vanguarda em relação a necessidade de um avanço maior “no campo das transformações dos costumes, tradições e modo de vida,” Por fim, existiria um outro fator de ordem política que eram as “limitações relativas ao regime político que dificultaram medidas visando à transformação de valores e práticas dominantes nas relações de gênero”.

Em outras palavras podemos dizer que houve subestimação do papel central da luta pela emancipação das mulheres também no processo de construção do socialismo durante o século XX. Um fenômeno negativo do qual não está imune as atuais e futuras experiências.

A emancipação das mulheres exige uma dura e prolongada luta de idéias no interior do Partido e da sociedade, inclusive após a revolução socialista. A emancipação, portanto, não será o resultado automático – mais ou menos natural – do processo de expropriação dos principais meios de produção das mãos da burguesia. Muitas vezes é mais fácil vencer exércitos fortemente armados do que abater costumes, tradições e modos de vida arcaicos fortemente enraizados na consciência dos homens e mulheres. É justamente neste campo que podem ser vencidas ou derrotadas as grandes revoluções do nosso tempo. Esta foi, por sinal, uma das lições da crise do socialismo no final do século XX.

II

Segundo Engels, um dos fundadores do socialismo científico, a primeira grande divisão do trabalho no interior da sociedade humana foi a que separou homens e mulheres. Naquilo que chamou de “divisão natural do trabalho”, através da qual coube ao homem a caça e às mulheres a agricultura e a criação de animais em pequenas escalas.

Nestas sociedades ditas primitivas o trabalho exercido pelas mulheres tinha um papel muito importante. Era, por exemplo, o responsável pela maior parte dos alimentos que era consumida. Por isso poderia, em alguns casos, caber a mulher a direção da família e da comunidade. Engels, baseado no que havia de mais avançado na época, chegou mesmo a supor a existência do matriarcado naquelas sociedades.

Com o desenvolvimento da caça, da lavoura e da criação de gado em maior escala – graças ao desenvolvimento das ferramentas – e sua monopolização pelos homens, as mulheres foram perdendo sua posição de destaque no interior da sociedade. As condições para opressão surgiram e se consolidaram quando as mulheres foram confinadas a um espaço doméstico cada vez mais desvalorizado socialmente. A família se tornou patriarcal e a monogamia feminina foi imposta a ferro e fogo.

Não foi sem motivo que Marx e Engels colocaram como primeira – e não a única ou derradeira – condição para emancipação das mulheres à sua re-inclusão no trabalho socialmente produtivo. Era preciso, em primeiro lugar, libertá-las das cadeias representadas pelo lar e pela família patriarcal.

Coube ao capitalismo dinamizar este trabalho libertador, ainda que de maneira bárbara. Ele arrancou milhões de mulheres pobres de seus lares e atirou-as nas fábricas insalubres, onde eram obrigadas a trabalhar longas jornadas e receberem menos que os homens. É bom lembrar que a classe operária inglesa no início do século XIX era, em grande parte, feminina. Os capitalistas não tinham nenhum tipo de preconceito quando se tratava de explorar a força de trabalho das pessoas.

Contraditoriamente, o capitalismo integrou a mulher na produção social – ao centro do processo produtivo – mas não a liberou dos afazeres domésticos. No lugar disso instituiu para ela a dupla jornada de trabalho. Uma prova que a pura e simples integração no mercado de trabalho, embora necessária, não se constitui em condição suficiente para libertação feminina.

Ao longo do século XX as mulheres trabalhadoras foram adquirindo mais direitos e uma aproximação maior com os homens, inclusive quanto aos salários. A luta socialista garantiu, mesmo nos países capitalistas, uma rede de saúde e educação ampliada e pública. Instituições que minimizaram o impacto da dupla jornada, mas não o eliminaram. O interessante é que houve também uma tendência a reproduzir no mundo do trabalho social as mesmas divisões existentes no interior da família patriarcal: à mulher coube o emprego doméstico, o trabalho nas escolas (auxiliares de creche e professoras primárias), o tratamento da saúde (parteiras e enfermeiras), o trabalho de conservação (faxineiras) e assim por diante.

Assim, a luta pelo direito ao trabalho nas mesmas condições – de direitos, funções e remunerações – que os homens, a luta pela ampliação das redes de hospitais, escolas, creches, lavanderias e restaurantes públicos fazem parte do longo e tortuoso processo de emancipação feminina. O outro aspecto é a luta no campo cultural contra os esteriótipos, construídos socialmente, que sempre buscaram naturalizar (ou sacralizar) a submissão da mulher ao homem.

O PCdoB deve ter um grande papel no processo de “desnaturalização” dos diversos tipos de opressão e ser um agente à serviço das profundas transformações sociais e culturais que o país e o mundo necessitam. Mas, as condições para isso são: 1º que ele seja o portador das concepções mais avançadas e 2º possua instrumentos que propiciem travar a luta de idéias na sociedade e organizar de maneira mais efetiva a luta das mulheres, especialmente das mulheres trabalhadoras.

O instrumento privilegiado deveria ser a UBM, mas a própria crise que se abateu sobre o movimento emancipacionista na década de 1990 impediu que ela pudesse cumprir plenamente este objetivo.

No entanto, acredito que a atual formulação, expressa no documento-base, dá conta de nossos limites e apontam saídas bastante adequadas que nos permitirão recuperar o espaço e o tempo perdidos. Afirma o documento da Conferência, “o momento exige que avancemos em uma nova fase da UBM”. Qual seria esta nova fase? Seria a da retomada do projeto inicial, tornando-a “o instrumento central de intervenção política de massas na luta das mulheres”. Continua o texto, “queremos fortalecer a UBM e fazer dela uma entidade com lócus de militância própria – com um protagonismo maior na luta política, transformando-a num referencial da luta das mulheres brasileiras (…) A UBM é uma entidade feminista que expressa uma corrente de opinião e desenvolve ações políticas e campanhas de massa”. Para isso ela “precisa desenvolver uma marca própria de atuação, não devendo atuar coadunada apenas com a agenda estabelecida pelo conjunto do movimento feminista, mas construindo seu veio próprio de atuação, priorizando as trabalhadoras. Precisa se transformar num pólo aglutinador da luta das mulheres por sua emancipação, inserida também na luta política geral do povo brasileiro”. Este me parece um caminho deveras promissor.

O documento, corretamente, afirma que esta luta não é apenas das mulheres e sim do conjunto dos militantes comunistas: homens e mulheres. No entanto, este processo de integração das mulheres na vida partidária, inclusive nas suas direções, será mais rápido e eficiente se as próprias mulheres aumentarem o seu nível de organização, de consciência e de ação. Ouso dizer que sem uma forte pressão das mulheres não haverá mudanças significativas nem na sociedade e nem no Partido.

Precisamos realizar um esforço cotidiano – não espontâneo – para ingresso e promoção de mulheres na hierarquia partidária. Para isso é necessário mudarmos as mentalidades atrasadas e criarmos formas mais adequada de organização. As conferências periódicas, o Fórum Nacional permanente, as secretarias sobre a questão da mulher e o estabelecimento da meta de 30% de participação de mulheres nas conferências e instâncias partidárias ajudarão neste processo de dar maior protagonismo aos comunistas na luta estratégica pela emancipação das mulheres – condição para emancipação da própria humanidade.

*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)