A aceitação, pelo 10º Congresso do Partido Comunista do Brasil, realizado em dezembro de 2001, do pedido feito por João Amazonas para não ser reconduzido à presidência nacional do Partido e a eleição de Renato Rabelo para aquele posto, culminou um longo processo de desenvolvimento histórico de formação de uma direção comunista no Brasil. A tranqüilidade e normalidade da transmissão do cargo indicavam, naquele ato simbólico, a consolidação daquele processo que, ao longo das décadas anteriores, enfrentou muitas turbulências.

O presidente nacional é o principal dirigente dos comunistas, antes designado como secretário geral ou secretário político; é a culminância de uma cadeia de comando que, sendo coletiva, representa as vicissitudes e virtudes enfrentadas pelo conjunto da direção partidária. Seu desenvolvimento até consolidar-se numa direção estável enfrentou, no Brasil, obstáculos variados entre os quais se destacam uma forte sensibilidade à influência externa; uma concepção rígida da disciplina partidária que tolhia o enfrentamento equilibrado de divergências no seio do Partido, particularmente de sua direção nacional; e principalmente a violência da repressão política que vitimou inúmeros dirigentes comunistas e provocou forte descontinuidade na direção.

Primeiros tempos

A primeira direção do Partido Comunista do Brasil, eleita no Congresso de fundação, em 25 de março de 1922, era formada por cinco titulares (o secretário geral Abílio de Nequete, mais Astrojildo Pereira, Antônio Canellas, Luiz Peres, Cruz Júnior) e cinco suplentes (Cristiano Cordeiro, Rodolfo Coutinho, Joaquim Barbosa, Manoel Cendón e Antonio de Carvalho). Aquele punhado de dirigentes representava o núcleo originário do movimento comunista no Brasil, formado por 73 revolucionários espalhados pelo país. Era uma direção ainda frágil, que teve duas baixas logo nos primeiros meses, a de Cruz Júnior e, principalmente, a do secretário geral: Nequete foi preso na repressão ao levante tenentista de 5 de julho de 1922 e, ao ser solto, renunciou ao cargo dirigente e afastou-se do partido. Astrojildo Pereira passou então a ocupar a secretaria geral, função que manteria ao longo daquela década.

Embora pequeno e enfrentando a repressão, o partido manteve uma vida relativamente normal, e realizou com regularidade seus Congressos que tiveram números de participantes reveladores da limitada dimensão física do partido: 17 delegados no 2º Congresso (1925), e 31 delegados no 3º (1928/29, foto).

Mesmo assim, enfrentou algumas perdas importantes. A primeira foi o afastamento de Antonio Canellas, cujo comportamento inadequado durante o 4º Congresso da Internacional Comunista (1922) resultou na admissão do partido brasileiro como mero simpatizante naquela organização internacional. Canellas não aceitou as críticas que recebeu da direção do partido, e acabou expulso em dezembro de 1923. A outra perda resultou da Dissidência sindicalista liderada por Joaquim Barbosa e Rodolfo Coutinho, contrários à formação da Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil e à aproximação com o líder revolucionário tenentista Luiz Carlos Prestes; abandonaram o partido em maio de 1928, levando consigo 48 militantes.

As coisas começaram a mudar na passagem entre as décadas de 1920 e 1930. Em fevereiro de 1929 Astojildo viajou para Moscou, onde permaneceu até janeiro de 1930. Foi substituído interinamente na secretaria geral por Cristiano Cordeiro (que ficou alguns meses) e, depois, por Paulo Lacerda, que também permaneceu por poucos meses. Em maio de 1929, conta Leôncio Basbaum (que, naquela época, era um importante dirigente partidário) a direção foi assumida por uma troika, como se dizia então, formada por ele, Paulo Lacerda e João da Costa Pimenta. Era uma época de intensa perseguição policial que dificultava as reuniões, mesmo clandestinas, conta Basbaum. Quando Astrojildo voltou, trouxe a nova orientação recomendada pela Internacional Comunista – a proletarização do Partido, aqui logo compreendida como o reforço da presença diretamente operária. Assim, no início de 1930 o Comitê Central decidiu que deveria diminuir o número de intelectuais na direção partidária. Em novembro daquele ano, por influência direta do Bureau Sul Americano da Internacional Comunista (sediado em Buenos Aires), Astrojildo foi afastado da secretaria geral (acusado de resistir à política de proletarização), iniciando um longo período de instabilidade na cúpula comunista. Juntamente com ele, foram afastados todos os membros intelectuais do Comitê Central.

Desde janeiro de 1931 a secretaria geral foi ocupada por Heitor Ferreira Lima, alfaiate, que acabara de voltar de Moscou, onde foi um dos primeiros brasileiros a freqüentar a Escola Leninista. Em junho daquele ano, por orientação do Bureau Sul-Americano, Heitor Ferreira Lima é transferido para o Nordeste, sendo substituído por Fernando Lacerda.

A instabilidade que se estabeleceu na direção partidária resultou do inadequado enfrentamento de questões internas e também da perseguição policial que levou, no final de 1931, à decisão de transferir o Comitê Central para São Paulo. Basbaum descreve reuniões do Comitê Central realizadas sob Fernando Lacerda que contrariavam as normas estatutárias, em nome da proletarização. Ele conta como Cina, companheira de Lacerda e recém filiada ao partido, forçava sua própria participação nas reuniões, “por ser proletária”, e trazia para aquelas reuniões militantes da base do partido, com o mesmo argumento, para compor maiorias favoráveis às suas teses. Isso durou até que o Comitê Central decidiu proibir formalmente a convocação de militantes que não eram membros da direção.
Esta instabilidade se traduziu numa série de seis secretários gerais efêmeros que estiveram à frente do partido naqueles anos – depois de Heitor Ferreira Lima e Fernando Lacerda, o cargo foi ocupado pelo metalúrgico José Vilar, pelo gráfico Duvitiliano Ramos, pelo padeiro José Caetano Machado e pelo tecelão Domingos Brás. Foram seis secretários gerais entre janeiro de 1931 e julho de 1934, quando Antonio Maciel Bonfim (o “Miranda”) foi eleito na 1ª Conferência Nacional do Partido. Na média, os mandatos daqueles seis dirigentes tiveram duração de sete meses.

A normalidade almejada com a eleição de Bonfim não aconteceu, entretanto. A intensa repressão anti-comunista desencadeada a partir de 1935 praticamente destroçou o Partido, prendendo e dispersando seus dirigentes. Quando Bonfim foi preso em janeiro de 1936 a secretaria geral foi assumida por Honório de Freitas Guimarães (“Martins”) e, depois, por Lauro Reginaldo da Rocha (“Bangu”). E, devido à repressão, a direção nacional do Partido Comunista do Brasil transfere-se para Pernambuco e, em seguida, para a Bahia. A intensa perseguição policial prende comunistas em todo o país e, no início da década de 1940 já não existe uma direção nacional organizada. Em agosto de 1941 é realizada em Salvador a Conferência do Nordeste do Partido Comunista do Brasil, um esforço de formar uma direção que abrangesse aquela região. Durou pouco: em dezembro a maioria de seus membros foi presa e aquela direção regional também deixou de existir.

Um novo núcleo dirigente

A repressão policial desarticulou a direção nacional, mas a bandeira comunista continuou a tremular em agrupamentos no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia. Entre o final de 1942 e o início de 1943 um grupo de dirigentes começou a articular, a partir do Rio de Janeiro, a Comissão Nacional de Organização Provisória, a CNOP, para reconstruir a direção do Partido Comunista do Brasil. Foram eles que convocaram e organizaram a 2ª Conferência Nacional do PCdoB – chamada “Conferência da Mantiqueira” – onde aquela nova geração de dirigentes (entre eles Diógenes Arruda, João Amazonas, Maurício Grabois, Amarílio Vasconcelos, Pedro Pomar, Mário Alves) passou a fazer parte do novo Comitê Central, e Luiz Carlos Prestes (que estava preso – foto) foi eleito secretário geral; nestas condições, seu cargo foi ocupado interinamente por Jose Medina Filho e, depois, por Álvaro Ventura.

Começava então um novo período na história do partido, que saiu reorganizado daquela conferência e conseguiu se fortalecer nos anos seguintes, principalmente depois de 1945, com o final do Estado Novo. O partido teve então um fulgurante protagonismo, ampliando o número de filiados e sua inserção entre o povo e conseguindo eleger naquele ano uma bancada de 14 deputados e um senador para a Assembléia Constituinte, além de obter quase 10% dos votos para presidente da República.

Juntamente com Prestes, que assumiu a secretaria geral assim que saiu da prisão, beneficiado pela anistia política, os principais dirigentes daquele processo de retomada iniciado com a Conferência da Mantiqueira constituíram um núcleo de direção mais sólido que o das décadas anteriores, resultado da cultura comunista que se desenvolveu no país desde a fundação do partido. E também do processo democrático que o país vivia. Aquele foi o núcleo que esteve à frente do partido durante quase todo o período que vai de 1943 à reorganização do partido, em 1962. A legalidade durou pouco; o TSE o tornou ilegal em 7 de maio de 1947 e os mandatos dos parlamentares comunistas foram cassados em janeiro de 1948. A perseguição aos comunistas continuou impedindo durante uma década o funcionamento dos organismos de direção partidária, cuja normalidade só foi retomada em 1958 quando o governo suspendeu a ordem de prisão expedida em 1948 contra Prestes e vários outros dirigentes nacionais.

Mas foi uma retomada em condições difíceis. Naquela ocasião a luta interna no partido – particularmente entre seus dirigentes –, iniciada depois que o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética adotou uma orientação baseada na coexistência pacífica com o imperialismo e na pregação da via pacífica para o socialismo, já havia avançado muito. E se aprofundado, opondo os partidários da orientação revisionista vinda de Moscou ao grupo de dirigentes que mantinham suas convicções revolucionárias. O desenlace daquele embate foi, como é sabido, a reorganização do Partido Comunista do Brasil em fevereiro de 1962.

Aquele foi um processo traumático para a direção partidária, ao longo do qual os dirigentes refratários à nova orientação revisionista – entre eles João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar – foram afastados inicialmente da Comissão Executiva do partido e depois do próprio Comitê Central.

A reorganização de 1962

Uma nova etapa se inicia com a reorganização do Partido Comunista do Brasil em 1962, que então era um partido pequeno. Calcula-se que tivesse, no máximo, 1.500 militantes. O Comitê Central eleito em fevereiro de 1962 era composto por 25 membros, dos quais 11 haviam sido eleitos no 5º Congresso em 1960 – antes portanto da reorganização; o secretariado era formado por Amazonas, Grabois, Pomar, Carlos Danielli e Calil Chade. A grande novidade introduzida pela Conferência foi, segundo depoimento de Dynéas Aguiar, a abolição da figura do secretário-geral e a afirmação do caráter colegiado da direção, embora Amazonas sempre fosse reconhecido como o dirigente principal.

Naqueles anos, o partido estava organizado no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Ceará e na Bahia e seu contingente foi reforçado pela incorporação da Ação Popular Marxista Leninista, cujos militantes se filiaram ao Partido a partir de 1972, tendo alguns de seus dirigentes sido incorporados ao Comitê Central. Houve também a incorporação de militantes de outras organizações, como o Comitê Estadual da Maioria Revolucionária do PCB na Guanabara, que rompeu com o PCB, de militantes originários do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, membros das Ligas Camponesas e de outras organizações.

Aquele foi também um período de turbulências e cisões. As exigências da segurança, desde a instauração da ditadura militar de 1964 e o aumento da perseguição policial, não permitiam a circulação, mesmo entre os dirigentes nacionais, de informações sobre as providências que vinham sendo tomadas para implantar os núcleos de guerrilha no campo, indicados pela linha política aprovada na 6ª Conferência, e que levaram à Guerrilha do Araguaia. Daí a impaciência de muitos, que chegavam a acusar o Partido de passividade. No Nordeste, um grupo rompeu com o Partido em 1966, criando o Partido Comunista Revolucionário (PCR). No ano seguinte, foi a vez da chamada Ala Vermelha, formada por um grupo de militantes com influência na Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.

O dano causado pela feroz repressão policial provocou prejuízos profundos, cujos efeitos se prolongaram por muitos anos principalmente porque ceifou uma parte importante de uma geração de dirigentes. Em 1972 a repressão assassinou sob tortura dois membros do Comitê Central – Lincoln Oest e Carlos Danielli. Em 1973, foram assassinados também sob tortura Luís Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque, enquanto Maurício Grabois tombou em combate no Araguaia. Em 1974 e 1975, a repressão assassinou (também sob tortura) Ruy Frasão e Armando Frutuoso (dado como “desaparecido”). Em 1976, na Chacina da Lapa, foram assassinados Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Drummond, enquanto Elza Monnerat, Aldo Arantes, Haroldo Lima e Wladimir Pomar foram presos. Outra perda relacionada à Chacina da Lapa, foi a traição de Jover Teles, entregou seus camaradas de direção para a repressão. Isto é, na década de 1970 foram assassinados 11 membros do Comitê Central, três foram presos, um traiu e outro faleceu (Diógenes Arruda Câmara, em 1979, devido a males adquiridos em consequência das torturas que sofreu quando encarcerado); além disso, cerca de 70 quadros partidários foram assassinados, principalmente na luta no Araguaia. As condições de segurança para a direção tornaram-se extremamente precárias e desde dezembro de 1976 foi constituída uma direção partidária no exílio, formada por João Amazonas, Renato Rabelo, Diógenes Arruda e Dynéas Aguiar. Ainda no final da década de 1970, o Partido enfrentou a nova atividade fracionista e liquidacionista.

Estado maior

A longa trajetória comunista no Brasil, que beira os noventa anos, acumulou experiência política, prestígio entre o povo, admiração dos aliados e respeito dos adversários. Antonio Gramsci dizia ser possível construir um exército a partir de um pequeno grupo de oficiais. O Partido Comunista do Brasil construiu um Estado Maior, composto hoje pelos 105 membros do Comitê Central eleito no 12º Congresso, de 2009, com ampla participação de operários, jovens, mulheres, negros, ao lado de experimentados dirigentes comunistas. É a culminação de uma longa construção histórica, e promessa de uma duradoura e decisiva intervenção na luta do povo pela soberania nacional, pela democracia e pelo socialismo.

jornalista e editor do jornal Classe Operária

Fonte: Partido Vivo