Entrevista com Ediria Carneiro Amazonas
1. Você chegou a ser ilustradora da revista Seiva, importante publicação da esquerda bahiana no Estado Novo?
Ediria – Sim. Fazia desenhos e ilustrações para Seiva. Lembro que ilustrei poemas de Manuel Bandeira, Nicolas Guillen, Jacinta Passos (uma jovem que morreu muito cedo) e outros.
2. Onde e quando você começou a participar do movimento estudantil?
Ediria – Comecei a participar do movimento estudantil no período da guerra. Mas naquele tempo não estava filiada ao Partido. Nele só ingressei em 1945, no mesmo ano em que participei do Congresso da UNE, como aluna da Escola de Belas Artes da Bahia.
3. Uma jovem sendo eleita para participar de um Congresso estudantil, não devia ser comum naquela época. Houve alguma resistência familiar?
Ediria – Talvez não fosse muito comum. O contigente masculino era muito maior nas escolas de nível superior que o feminino. Assim mesmo, da Bahia, foram duas estudantes ao Congresso da UNE. Uma chamada Alaíde Madureira e eu. Durante a guerra, muitas jovens se inscreveram para integrar às Forças Expedicionárias Brasileiras no front. Da Bahia seguiram algumas. E isso era mais perigoso do que um Congresso da UNE, não acham? Não houve resistência por parte da minha família ao Congresso. Eu tinha muitos familiares morando no Rio e que me dariam apoio, caso eu precisasse de alguma coisa.
4. Você foi para o Congresso da UNE e ali conheceu os comunistas?
Ediria – Os comunistas da delegação da Bahia, que eu conhecia, eram o Mario Alves, o Magna Vita, um irmão do Jacob Gorender que chamávamos de “Gorendinho” e eu. Naquela época o Partido estava apoiando Getúlio (principalmente para força-lo a ajudar os aliados contra os nazistas e enviar uma Força Expedicionária para o front). A delegação da Bahia era “comandada” pelo Mario Alves. E toda a delegação era unânime em apôia-lo no que ele determinava. Acho que todos, mesmo os que não eram do Partido, simpatizavam com as suas idéias, porque nunca ouvi um comentário discordante da linha que o Mario Alves defendia.
Quanto à viagem, foi inesquecível. Naquela época não havia estradas de rodagem, nem transportes ferroviários Norte-Sul. Os aviões eram poucos e, durante a guerra, a preferência era para os militares. Assim, uma boa parte dos delegados, inclusive eu, preferimos viajar logo, por mar, do que ficar esperando uma vaga no avião. Cá entre nós, eu queria ir logo, com receio que minha mãe mudasse de opinião e não me deixasse viajar.
Nosso navio – o “comandante Capela” ia superlotado com uma leva heterogênea de passageiros. Havia jovens estudantes como eu, que iam para o Congresso da UNE – outros que iam estudar ou tentar a vida no Sul, mulheres com seus filhos, que iam encontrar os maridos no Rio e militares que, transferidos do Norte ou Nordeste, iam com suas famílias para o Sul. A turma dos jovens da qual eu fazia parte era a mais alegre. Alguns estudantes tocavam violão, outros tocavam marchinhas de carnaval num piano desafinado. Dançávamos e achávamos graça de tudo. Havia muita alegria. Ninguém estava pensando em submarinos alemães nem em torpedos. O Comandante do navio é quem pensava nisso. No fim da tarde, quando começava a escurecer, todas as escotilhas eram cobertas com panos pretos para que as luzes não refletissem no mar. O toque de recolher era dado depois do jantar e todas as luzes eram apagadas. Depois descobrimos que, mais tarde, quando todos deveriam estar dormindo, o Comandante com medo dos submarinos, mandava parar todas as máquinas para evitar qualquer trepidação no mar. Ele teria suas razões. Mas a viagem que deveria durar uns quatro dias no máximo, se arrastou por muito mais de uma semana. E nossas famílias entraram em desespero com a falta de notícias. Chegando ao Rio, consegui gravar um disco com a minha voz e enviei pelo correio, para que eles acreditassem que eu estava viva. Havia naquele tempo um serviço que chamavam “carta fonada”. Os telefones inter-estaduais eram muito ruins. Levava-se horas para conseguir uma ligação e as vozes saiam irreconhecíveis e com muitos ruídos na linha.
5. Você se lembra de alguma coisa daquele Congresso da UNE?
Ediria – Das discussões não recordo muito. Lembro que havia uma forte corrente contra o governo de Getulio. E causava estranheza que o pessoal da esquerda o estivesse apoiando. Mas lembro bem das partes divertidas e alegres da viagem. Ficamos hospedados num hotel em Laranjeiras. Uma noite, apareceu o Marighela para jantar conosco. Ele, na Bahia, era conhecido por nós, estudantes, como um herói. Um cara que não tinha medo da polícia. Que apanhava e revidava as pancadas dos tiras com outras tantas. Era grande e forte e era preciso amarra-lo para que ele não acabasse com os seus agressores. Essas eram as lendas que corriam. Como pessoa, ele era alegre, de fala mansa e contava casos engraçados de suas recordações dos anos em que esteve prisioneiro na Ilha Grande. Não contava os momentos tristes que passou, mas sim os engraçados.
Num outro dia fomos visitar a sede do Partido. Lá fomos recebidos por Álvaro Ventura que nos recebeu muito bem. Os outros dirigentes estavam viajando, acho que para São Paulo. O Ventura conversou conosco, fez algumas perguntas sobre o Congresso. Enfim, saímos de lá muito satisfeitos.
Fizemos muitos passeios pelo Rio, que naqueles tempos era a “Cidade Maravilhosa”. Depois viemos até São Paulo. Aqui, no apartamento do Jorge Amado, encontramos a cunhada dele, Jacinta Passos de quem ilustrei vários poemas para a Seiva. Num outro dia o pintor Manuel Martins, do Grupo Santa Helena, foi nos visitar no Hotel em que estávamos hospedados, na Avenida São João. Ele estivera na Bahia ilustrando um livro do Jorge Amado, “Bahia de Todos os Santos”. Nessa ocasião os Estados Unidos jogaram a bomba atômica no Japão. Fomos convidados para assistir um filme sobre isso, na redação da “Gazeta”, que ficava na Avenida Ipiranga. Esse filme nos deixou ver como era um ataque a uma cidade, com a bomba atômica de que tanto ouvíamos falar, mas que ainda não fora usada por nenhum país. Ficamos impactados. Saímos da lá sem conversar uns com os outros. Naquela noite sentíamos que entravamos numa nova era. Que tudo seria diferente. Lembro até hoje, como ficamos mudos e até com medo, impressionados com tudo aquilo que vimos na tela.
Depois disso, retornei ao Rio. Tratei de regularizar minha situação como membro do Partido Comunista e não voltei junto com a delegação para a Bahia.
6. Desde então você não voltou mais para a Bahia?
Ediria – Só mais tarde. Nessa época, não. Fiquei militando numa célula em Ipanema, onde eu morava. Um dia, numa reunião da célula, disseram que o Partido estava precisando de um desenhista para um jornal deles e se eu estava interessada? Fiquei muito feliz com essa possibilidade. Me apresentei e fui aceita. Larguei todos os “bicos” que fazia ilustrando contos em revistas. Uma delas, lembro o nome – era “A Cigarra”. E passei a me dedicar somente ao trabalho do Partido, na “Classe Operária”.
A “Classe” funcionava no prédio em que estava instalado o Comitê Central do PCB. Era um prédio de 4 andares, em frente ao Jardim da Gloria. A “Classe” funcionava lá. Só mais tarde, acho que em 1947, mudamos para umas salas no Edifício São Borja, na Cinelândia. Nesse mesmo prédio funcionava o Gabinete dos Deputados Federais.
7. Quem era o diretor da Classe Operária?
Ediria – O diretor responsável era o Mauricio Grabois. Os redatores eram o Rui Facó, Gorender, Mauricio Vinhas e outros que não lembro o nome, esses mencionados eram os mais importantes. A maioria dos jornalistas do Partido estava na Tribuna. Inclusive tinha lá um desenhista muito bom, muito melhor do que eu.
Acho que em 1947 (não sei bem a data), começou a circular também um pequeno jornal do Partido, “O Momento Feminino” sob a direção de uma advogada, Arcelina Mochel, vereadora do Partido. No jornal trabalhavam Heloisa Ramos (mulher do Graciliano Ramos), as escritoras Laura Austregésilo, Lia Correia Dutra e outras que também não recordo os nomes. Eu também fazia as ilustrações desse jornal. Não tenho certeza se uma militante muito conhecida, chamada Eneida, cooperou de alguma forma com o jornal. Não lembro. O “Momento” também passou a funcionar no edifício São Borja.
A Mãnha, o jornal do “Barão de Itararé”, também funcionava no edifício São Borja, no mesmo andar da Classe, mas não tínhamos nenhuma ligação. Apenas éramos vizinhos.
Enquanto a Classe funcionou no Jardim da Glória, era muito visitada pelos intelectuais e artistas do Partido. Iam conversar com o Mauricio e o Amarílio. Sempre aparecia por lá o Graciliano Ramos, o Dalcidio Jurandir, Portinari, Scliar. Niemayer também aparecia, mas subia para conversar com Prestes.
O Grabois era uma pessoa estraordinária. Era aberto, conversador, contava piadas. Lia histórias em quadrinhos que eram publicadas no jornal “O Globo” – as “Aventuras de Brucutu”. Nunca o vimos de cara “amarrada”, embora tivesse seus problemas também. Na hora do almoço, descia conosco (os funcionários), para um restaurante que ficava na esquina. Iam, a Eugênia, uma portuguesa muito bonita que fugira com o marido da ditadura de Salazar, eu e mais alguns companheiros que já esqueci os nomes. O João morava com o Pomar e almoçavam em casa. Os outros, não sei que destino tomavam nessa hora.
Depois que mudamos para o São Borja, esse clima mudou um pouco. O Gorender era um jovem muito culto. Estivera lutando na guerra, como pracinha. Era uma pessoa alegre, sabia tratar as pessoas e, mais tarde, foi um ótimo diretor da Escola do Partido. Hoje, vejo-o dando entrevistas na TV. Parece outra pessoa. Sempre amargo. Outro Gorender.
O Mauricio Vinhas era também muito inteligente e culto. Escrevia bem. Publicou um livro sobre um movimento histórico acontecido em Minas, acho eu. Eu fiz as ilustrações do livro. Imperdoavelmente, esqueci o assunto. E, devido à vida que levava, também não pude guarda-lo com a dedicatória que ele escreveu para mim. Assim foi a nossa vida. Não podíamos guardar nada. Só as lembranças e assim mesmo, muitas foram embora também.
Na “Classe” do edifício São Borja, aparecia às vezes o Apolônio de Carvalho. Quando este chegou da França, foi designado para trabalhar com o setor da Juventude do Partido. Acho que não havia pessoa mais indicada para esse trabalho. O Apolônio era a gentileza em pessoa. Era simples, alegre, entusiasta, sabia tratar as pessoas. Ninguém se sentia “pouco-a-vontade” perto dele, ao contrario, as pessoas se sentiam até melhores do que eram. Essa opinião não era somente minha. Infelizmente, ele não pode ficar com esse trabalho da juventude. Teve também que entrar na ilegalidade e se esconder.
8. Foi ali que você conheceu o Amazonas?
Ediria – Sim, foi nessa época. O João era deputado e eu gostava de ouvi-lo discursar, quando havia algum ato público do Partido, e naquele tempo havia muitos, o Partido tinha muitas atividades. Ele era considerado o melhor orador do Partido. Prestes, era escutado pelos militantes, como se fosse um Deus. Ele tinha um passado. Tinha carisma. Era adorado. Vi muitas vezes, quando ele passava, as pessoas estenderem os braços para tocar em Prestes com as pontas dos dedos. Era como se estivessem tocando num santo, uma pessoa sagrada. O João era diferente. Não tinha esses adoradores. Mas entusiasmava as pessoas. Mas ele nem sabia que eu existia. Estavamos muito distantes, um do outro. O trabalho dele era o parlamentar e o sindical. Nós, da Classe, estavamos ligados à propaganda. Não tinhamos nenhum contato. Só mais tarde, passamos a olhar um para o outro e saber que existíamos. Nas festas do Partido, e havia muitas, o João me tirava para dançar. Mas dançava também com outras garotas.
9. Como foi o namoro?
Ediria – Naquele tempo o Partido organizava muitas festas com o objetivo de melhorar as finanças. Eram bailinhos na Casa do Estudante, no Sindicato dos Bancários ou ao ar livre, em sítios que o Partido alugava ou eram cedidos pelos amigos. Nesses encontros ao ar livre, tinha musica ao vivo, barracas com sanduíches, cachorro quente, guaraná, etc. (coca-cola jamais!). Ela era recém-chegada ao Brasil e o gosto não agradava, principalmente aos comunistas. Numa dessas festas num sitio, começou um namoro que só terminou 55 anos depois.
10. E assim começou a vida em comum?
Ediria – Vocês uma vez me perguntaram se existia no Partido uma visão conservadora sobre as relações familiares. Aqui a minha resposta. Esse preconceito pequeno-burguês de casado ou não casado não existia no Partido. Mesmo porque, naquele tempo não havia divórcio. Um casal se separava, digamos. Se tinha que refazer a sua vida com outra pessoa, como faria? Eu poderia aqui, dar como exemplo vários casais de companheiros que viviam juntos, sem passar por um cartório ou por uma igreja. Mas não quero citar nomes. Os descendentes deles podem pensar diferente e não gostarem da minha intromissão.
11. Vocês começaram a viver juntos em 1945?
Ediria – Não. Foi algum tempo depois. Quando veio a cassação de mandatos dos deputados comunistas, em janeiro de 1948 a direção do Partido teve que entrar na ilegalidade. Estavam todos com ordem de prisão decretadas. Foi nessa ocasião que o João perguntou se eu queria ir morar com ele, fora do Rio. Eu aceitei. As recomendações eram as seguintes; eu deveria sair do Rio sem comunicar nada a ninguém. Nada de despedidas, etc. E assim o fiz. Segui as instruções dadas. Saí como se fosse dar um passeio, apenas com uma bolsa e uma sacolinha de mão, levando o estritamente necessário. Peguei um trem noturno e vim para São Paulo, onde fui para uma pensão em Higienópolis, onde um médico, amigo do Partido, já tinha reservado a estadia para mim. Passado alguns dias fui avisada a deixar a pensão e fui encontrar o João, à noite, num lugar cheio de àrvores e meio escuro. Lá, mais tarde, foi construído o parque Ibirapuera. Daí em diante passamos a viver juntos na mesma casa.
12. Onde foram morar e como era a vida clandestina?
Ediria – Fomos morar num sobradinho em Indianópolis, com uma senhora viúva, irmã do Apolônio de Carvalho e o filho dela. A rua não tinha calçamento, a água vinha de um poço no fundo do quintal. Ficamos lá pouco tempo. Mudamos para um sobrado na Aclimação. Vivíamos como uma família. Eu chamava a irmã do Apolônio de tia. Ficávamos no andar de cima. Em baixo, dando para a rua, organizaram uma farmácia que deram o nome de um padre que morreu no interior e que estava fazendo “milagres” e o povão acreditava muito nessas “curas”. Contrataram um farmacêutico para tornar tudo legal e o rapaz tomava conta do atendimento. Ele dirigia um carro que o João utilizava quando tinha que sair, à noite, para algum encontro. Nos anos de 48 a 50 moramos em São Paulo. O Apolônio de Carvalho morava aqui também, clandestino. Os contactos com ele eram feitos através da mulher dele, a Renée e eu. Nós duas nos encontrávamos em igrejas ou jardins públicos, como um que havia, onde hoje está construído o MASP. Ela me entregava numa sacola, o que devia ser entregue ao João e eu, com uma sacola idêntica à dela, entregava o que o João enviava para o Apolônio. Depois ficávamos conversando um pouco e assim cumpríamos a nossa tarefa.
13. Nesse período veio a questão dos filhos. Como foi cuidar de uma família num período de ilegalidade e de grandes dificuldades para os comunistas?
Ediria – Contarei primeiro a história do nascimento de nossa primeira filha. Morávamos no Rio num lugar chamado Maria da Graça, perto do Meyer. Conosco estava não mais a irmã do Apolônio, mas um casal de meia idade vindo do Espírito Santo. Eram ótimas pessoas, gente simples, mas não conheciam o Rio e nem tinham experiência de Partido. Estavam meio assustados, sempre com receio de que podia “acontecer alguma coisa”. O marido era mais medroso ainda que a mulher.
O João teve que vir para São Paulo, organizar uma greve. Chegou a hora em que eu tinha que ir para o Hospital. Já estava tudo combinado. Inclusive com um bom médico, amigo do Partido, etc. Depois que recebi alta, não tinha dinheiro suficiente para pagar o Hospital, não sabia o que fazer. A companheira que morava conosco não aparecia. Aí passei a fingir que estava doente e ficava deitada na cama pensando como sair daquela situação. Um dia eu estava tão deprimida que acabei chorando. A enfermeira chefe entrou no quarto de surpresa e notou as lágrimas. Acho que pensou que eu tinha sido abandonada pelo “pai da criança” e disse assim – “Você está chorando? Comigo acontenceu coisa pior. Os alemães pegaram minha família, trancaram todos numa igreja e atearam fogo. Morreram todos.” Depois de alguns dias a companheira apareceu, se queixando da falta de dinheiro. Numa folha de caderno desenhei e expliquei como ela podia chegar à Câmara Municipal, que ficava na Cinelândia, no centro, e como encontrar uma bibliotecária chamada fulana de tal, etc., e entregar um bilhete onde escrevi mais ou menos isso “Venha sem falta e com urgência ao Hospital tal e ao quarto n° tal”. A bibliotecária era a mulher do Arruda. Ela foi lá e, no outro dia, trouxe o dinheiro. Paguei o Hospital e pude voltar para casa. Com o meu segundo filho também passei por uma situação difícil.
14. Você se refere à greve geral paulista de 1953?
Ediria – Exatamente. Essa também foi uma situação difícil para mim. Estávamos morando há pouco tempo numa casa meio isolada, sem vizinhos por perto, numa ladeira na Penha, subúrbio do Rio. A casa era antiga e estava rodeada de árvores, mangueiras e eucaliptos. As outras poucas casas da rua eram do mesmo tipo. Ninguém via suas fachadas nem seus moradores. Havia um companheiro, ótima pessoa, que há tempos dirigia o carro que o João usava. Ele aparecia uma ou duas vezes por semana para ver como eu estava. Esse companheiro era irmão do Armênio Guedes (Mais tarde, no tempo da ditadura, teve uma morte horrível nas mãos da polícia do Rio. Depois de torturado, foi atirado pela janela da delegacia). O Partido devia estar com dificuldades para arranjar uma pessoa para ficar comigo. A Light não ligava a luz. Á noite eu ficava às escuras ou acendia uma vela. Não tinha um telefone para reclamar com a Light nem para me comunicar com alguém, em caso de necessidade. Eu já estava quase no oitavo mês e o Ademir achou melhor levar a minha filha para a casa dele, porque achou, com razão, que minha situação seria ainda pior na hora que tivesse que me deslocar, com uma criança pequena comigo. Assim fiquei completamente sozinha. Sem energia elétrica não podia ligar o radio que possuíamos. Então não sabia o que se passava no mundo nem me distraia ouvindo música. Ai passei a ler um livro de Liu Shao Shi – (que ainda não tinha caído em desgraça) “Como ser um bom comunista”. De vez em quando eu ia à quitanda conversar com a dona, uma portuguesa. Já imaginam que tipo de conversa saia. Só bobagens. Como preparar os legumes ou como eram os partos e o resguardo das gestantes em Portugal. Não sei como não “pirei”. A minha sorte é que naqueles tempos não tinha muitos ladrões e assaltantes pelos subúrbios. Mais tarde, em meados do mês de maio, conseguiram uma companheira para ficar comigo – a Matilde. Minha filha voltou pra casa e o João chegou, exatamente dois dias antes do filho nascer, no mês de junho. Quinze dias depois ele viajou para o curso na URSS.
Quando a mais nova nasceu o João estava na União Soviética. Ele tinha ido, logo depois daquela crise que envolveu o Kruschev. Foi com outro companheiro tentar saber o que realmente estava se passando por lá. Dessa vez eu tinha uma boa companhia – a Matilde. Quem ia fazer o parto era a Dra. Maria Grabois, irmã do Mauricio. Mas ela atendia num hospital em Copacabana e eu morava em Del Castilho, subúrbio da Leopoldina. A Matilde bastante experiente achou, com razão, que eu não teria condições de chegar até Copacabana. Fizemos mil recomendações às crianças, que não abrissem a porta a ninguém, nem conversassem com desconhecidos. Tomamos um táxi, eu com o coração apertado. Logo mais adiante, perto de casa, passamos na frente de um hospital. A Maltide me deixou lá, e no mesmo táxi voltou para casa para ficar com as crianças. A tarde voltou com elas, para conhecerem a nova irmãzinha.
Nunca consegui saber o nome verdadeiro da Matilde. Ela foi, mais de uma vez, de grande ajuda para mim. E foi para outras pessoas e também para o Partido. Uma vez em Paris, o Arruda conversando comigo, disse que um dia ia escrever um livro sobre companheiros e companheiras anônimos, que dedicaram suas vidas num trabalho escondido que ninguém falava, mas que era fundamental para o funcionamento do Partido. A Matilde e a Maria Trindade foram pessoas assim.
15. Voltando a 1953, teve um período no qual João tinha ido fazer um curso na URSS. Foi depois do nascimento do João Carlos?
Ediria – Sim, foi depois. O garoto nasceu em junho e João partiu 15 dias depois. Quando ele viajou, a casa em que morávamos passou para outros companheiros. Eu e minhas crianças fomos morar com a família do Mario Alves, que também tinha ido para o curso na URSS. Era a mulher dele e a filha, Lucinha, uns 3 anos mais velha que a minha. As crianças se entrosaram bem, não davam trabalho. Mas não sei como o Mario escolheu uma casa, num local daqueles, para morar. A casa ficava ao pé de um morro.
16. Tem várias musicas que falavam da falta d’àgua no Rio de Janeiro. Virou até motivo para as comédias da Atlântida.
Ediria – É verdade. Havia até uma marchinha que dizia assim:
“Rio, cidade que me seduz
De dia falta água, de noite falta luz”
Nessa casa tínhamos que ir até uma “bica” carregar água nuns baldes. A casa não tinha uma área de serviço. Tínhamos que lavar roupa num tanque ao ar livre, com o pessoal do morro passando e fazendo perguntas sobre nossas vidas. Duas mulheres sozinhas com seus filhos. E onde estavam os maridos? – As crianças às vezes bricavam com outras, que moravam por perto de nossa casa. Cada uma daquelas menininhas queria se gabar dos seus papais. “Meu pai tem isso”, e a outra, o “Meu tem aquilo”, etc. Uma delas disse “Meu pai é rico. Ele é delegado e tem um carro”. E a Lucinha respondeu “Meu pai é mais rico ainda. Ele tem uma mala cheia de dinheiro. Ele fabrica dinheiro”. Já imaginou como nós ficamos? Se a menina conta isso ao pai e ele vem verificar se é verdade, em nossa casa? E encontra todos os livros do Mario? Felizmente não aconteceu nada.
17. Esse foi o período que você se envolveu no trabalho de formação, dando aulas nos cursos do Partido. Como foi?
Ediria – Quando o João estava na URSS e eu ainda morava com a família do Mario Alves, me enviaram para fazer o curso Stalin. O diretor da Escola do Partido era o Jacob Gorender. Fiz o curso com as duas crianças pequenas. Lá havia outras crianças um pouco mais crescidas que as minhas. Os dois filhos do Apolônio (o René e o Raul) e mais outras, filhos de outras mães que trabalhavam lá, no “aparelho” e cujos maridos estavam fora. Tinha, portanto, quem cuidasse das crianças, de uma certa forma. Levei os meus, porque não tinha onde deixa-los. E não foi tão fácil para mim, nem para os pequenos.
Terminado o curso, o Gorender selecionou alguns alunos para, futuramente, darem aulas também. Eu não queria de jeito nenhum essa responsabilidade. Com os outros selecionados, ele mandou que eu desse uma aula de experiência. Tive que dar a tal aula. Terminando isso, ele me chamou e disse que eu seria professora na escola dos Marítimos. Eu disse que não tinha jeito para isso nem condições para tal coisa. Mas ele não voltou atrás e eu tive que me conformar. Fui para Niterói onde os Marítimos tinha uma escola no alto de uma montanha. Um lugar isolado e tranqüilo, no meio de um sitio, cheio de arvores e muito agradável. Ali eu dava aulas sobre as teses do 4° Congresso do Partido, para os militantes. Depois passamos a fazer palestras para aqueles que desejavamos politizar para que depois se filiassem ao Partido. E realmente muita gente, depois, se inscreveu no Partido. O recrutamento foi muito alto no Comitê do Marítimos e até citado no 4° Congresso.
As tais palestras eram feitas da seguinte forma – Um militante do Partido convidava alguns colegas, que eles consideravam “boa gente”, para uma reunião em sua casa. Em geral aos sábados ou domingos à tarde e, algumas vezes à noite. A dona da casa preparava um cafezinho, etc. Aí, conversávamos um pouco e depois começávamos a falar sobre o Partido, explicávamos o que era o comunismo, não em termos difíceis de marxismo-leninismo, etc, etc. Falávamos como era a exploração que as classes dominantes exerciam sobre os trabalhadores, os meios que eles usavam para enganar o povo, etc, etc. Eles faziam perguntas. Em geral sobre os partidos e os políticos que existiam na época. Eram perguntas fáceis de responder e facilmente compreendidas por eles. Essas “palestras” ficaram muito difundidas entre os marítimos. Eram realizadas não somente no Estado do Rio, onde estavam os estaleiros da Construção Naval e o pessoal da Marinha Mercante (as palestras não era para comandantes e pessoal graduado). Também foram realizadas em Nova Iguaçu, Caxias e outros locais e sempre organizadas por essa categoria – Marítimos. Naqueles anos subi muitos morros no Estado do Rio, para esse fim.
18. Você foi professora durante um tempo, então?
Ediria – Sim, fui professora. E dava palestras. Quando o João chegou da URSS foi contra isso, não quis que eu continuasse. E realmente ele tinha razão. Aquelas atividades poderiam prejudicar a segurança dele. Mesmo assim o Arruda me encarregou de fazer umas palestras para os operários do Morro Velho, em Minas Gerais. Essas palestras eram também para simpatizantes. O dia da minha volta, estava todo sincronizado pelo João. Mas o pessoal de Belo Horizonte não organizou as coisas direito. Não vim no dia determinado. Viajei num “Maria Fumaça” horrível. Mas isso não foi o pior. Como não vim da forma combinada, cheguei no Rio e não havia ninguém me esperando. Como voltar para casa? Por motivos de segurança não podia seguir direto. Aí tive que pegar um ônibus, saltar, pegar outros, dar voltas e mais voltas. Quando enfim cheguei em casa o João estava brabo. Aí ele disse “não tem mais esse negocio de ficar dando palestras. Acabou.”
19. O período no qual foi professora da Escola do Partido, coincidiu com o processo do 4° Congresso do PCB ocorrido em 1954. Você chegou a participar daquele conclave?
Ediria – Participei como assistente, não como delegada. O João não tinha voltado ainda da URSS. Eu continuava com os Marítimos. O Congresso foi realizado em São Paulo. Onde, não sei. Chegávamos lá de olhos fechados. Era num casarão e havia muitos delegados, inclusive alguns estrangeiros. Lembro bem dos camaradas argentinos que diziam estar muito bem impressionados com o nível do nosso Partido, desde as intervenções dos delegados, até a boa organização do próprio Congresso.
20. Prestes falou no Congresso? Da Direção Nacional quem estava presente?
Ediria – Prestes não estava lá. Nem ele nem o João. Foi lido um documento que diziam ser dele, João, mas acho que não podia ser verdade. E não foi mesmo. Nem podia ser. Lá não estavam também Pomar, Apolônio, Mario Alves. Lembro que presentes estavam o Grabois e o Arruda, que era quem dirigia tudo. Do transporte dos delegados, à comida a ser servida, à situação dos dormitórios, tudo, tudo mesmo, era o Arruda quem dirigia.
21. O Amazonas retorna em 1955, às vésperas da eleição do Juscelino, e vocês voltam a ficar juntos numa situação de semi-legalidade. Como foi isso?
Ediria – É, teve aquela abertura no governo JK. O camarada Lincoln Oeste tinha um cartório em São Gonçalo no Estado do Rio (Niterói). Então, aproveitamos a situação favorável e legalizamos toda nossa documentação. O problema dos filhos foi uma das razões para nos casarmos legalmente. Na realidade, nunca ligamos para essa história de casamento porque não é isso que faz uma união. Mas, naquele tempo, o filho que não declarasse o nome do Pai, era considerado filho de pai desconhecido, ou então filho ilegítimo de fulano de tal. Isso para as crianças seria muito ruim na escola. Mas nem eu pedi para ele se casar comigo, nem houve qualquer discriminação no Partido para chegar a isso. Casamos no dia 12 de abril de 1958, no Cartório do Lincolm Oeste, em São Gonçalo, Niterói.
O João já tinha sido enviado para o Rio Grande do Sul e voltou somente para o casamento. Agostinho de Oliveira, ex-deputado paraense, na Câmara Nacional, e antigo amigo do João disse “como vão fazer um casamento e não dar uma festa?”. Aquilo acabou realmente numa festa de despedida do Rio de Janeiro.
Morávamos numa casinha do subúrbio de Del Castilho. Era um chalezinho com um pequeno jardim na frente e uma varanda bem espaçosa nos fundos. Não possuíamos toca-discos, mas um velho rádio que irradiava um programa de músicas para dançar. Foi uma festa muito animada. Lá estava Arruda, Grabois, Amarilio, Agostinho, Pomar, todos com suas respectivas famílias. Também estava o meu primo Edson Carneiro e que foi minha testemunha no casamento, a pintora Djanira com o marido, o Motinha (velhos amigos meus), um irmão do João que estava fazendo um curso no Banco do Brasil no Rio, e Maria, a babá que me carregou quando eu era um bêbê na Bahia e que, depois casada com um operário da construção civil, veio morar em Deodoro, no Rio.
22. Depois desta festa vocês foram para o Rio Grande do Sul?
Ediria – João passou alguns dias com a família. Quando voltou ao Rio Grande alugou uma casinha perto do rio Guaíba. Eu fui de avião, com as crianças para lá. Dois ou três meses depois do casamento. Mas não pudemos ficar muito tempo nessa casa, ela ficou infestada de ratos e tivemos que mudar.
Porto Alegre foi uma nova fase em nossas vidas. Havíamos passado uns 10 anos em completa clandestinidade. Não íamos a um cinema, a uma exposição, a lugar nenhum. Nem mesmo passear numa rua tranqüila. Nem visitar amigos ou parentes. Sempre preocupados olhando para os lados. O João só saia para os encontros dele, de carro, à noite. Eu tinha um pouco mais de liberdade. Mas só saia para fazer as compras da casa ou alguma incumbência do Partido, quando necessário. Em Porto Alegre fizemos muitos amigos. Íamos ao cinema, ao teatro. Os dois filhos, a Zélia e o João Carlos, foram matriculados numa boa escola pública. O ensino de lá era muito bem estruturado. O João e eu nos matriculamos na Aliança Francesa em classes diferentes. Eu numa mais adiantada porque já havia estudado antes. O João recebia muitas revistas e material político em francês e espanhol. O espanhol era fácil, mas o francês ele precisava de mim para explicar. Esse curso foi de uma grande ajuda mais tarde para nós. Nem imaginávamos o iria acontecer mais adiante, em nossas vidas.
23. Quando houve a cisão dos comunistas brasileiros no final de 1961 alguns desses intelectuais gaúchos ficaram ao lado do Amazonas?
Ediria – Sim. Eu sei de alguns que ficaram, mas não lembro o nome completo de todos. Lembro bem da Lila Ripol, do Oto Alcides, um cientista, que tinha sobrenome estrangeiro meio difícil. O Macedo, escritor, uns poetas, um casal de músicos, mas infelizmente não lembro os nomes deles.
24. A estadia de vocês no Rio Grande do Sul coincidiu com a eclosão da crise da legalidade, quando tentaram impedir a posse de João Goulart na presidência da Republica em 1961? Lembra-se desse episódio?
Ediria – Sim. Quem poderia esquecer aqueles dias? O João na direção do Partido, trabalhou muito. Organizou os operários, pôs o povo na rua. Nós, os artistas, pintávamos cartazes. Era um entusiasmo geral. Foi formado um comitê num local chamado “Mata Borrão”, que hoje não existe mais, foi demolido. Ficava na avenida principal, na Borges Medeiros. O Partido foi todo mobilizado para essa luta. Houve um desfile na avenida Borges de Medeiros, impressionante. Operários, estudantes, povão, artistas e índios muitos diferentes dos da amazônia que costumamos ver. Esses índios iam montados em belos cavalos, todos orgulhosos de estarem desfilando. Enfim, aqueles dias foram inesquecíveis.
25. Foi em dezembro de 1961 que Amazonas foi expulso do PCB e teve que voltar para São Paulo. Como foi isso?
Ediria – Passamos a viver numa “dureza” completa. Chegou o Natal e ficamos deprimidos. Não tínhamos dinheiro para comprar nem um briquedinho barato para as crianças. Então o Macêdo, um dos nossos intelectuais, organizou uma festinha na casa dele, nos convidou e distribuiu presentinhos para as crianças que ficaram muito felizes e nós, muito emocionados. O João lembrou desse episódio toda a vida dele. Pena que perdi o endereço do Macêdo e da mulher dele, Maria Leda.
Um dos nossos companheiros do Partido tinha um “brechó” e, para nos ajudar, comprou os poucos moveis que tínhamos. Foi com esse dinheiro que pudemos comprar as nossas passagens de volta para o Rio. Chegando lá, no Rio, fui com as crianças para a casa da minha antiga babá, em Deodoro. Escrevi para meu pai contando a situação. O João não lembro onde se arrumou. Mas meu Pai enviou as passagens de avião para mim e as crianças e fomos para a Bahia. Minha filha mais velha, a Zélia, havia prestado o exame de admissão em Porto Alegre. Tirou notas muito altas e estava triste por ter que largar os estudos. Meu pai, com os documentos que ela trazia, demonstrando sua aprovação nos exames de admissão em Porto Alegre, conseguiu matricula-la num bom ginásio público de Salvador. Fiquei na Bahia uns dois meses. Nesse meio tempo João passou a organizar o PC do B com o Grabois e o Pomar. Eu não quis mais voltar para o Rio. O Jaime Grabois, irmão do Mauricio, era médico e tinha alugado um apartamento aqui, na Brigadeiro Luiz Antônio. Ele não se adaptou aqui e resolveu voltar para o Rio. O Pomar entrou em entendimentos com ele e o João ficou com o apartamento. Era um aluguel barato. O João me escreveu dizendo que tinha conseguido um bom lugar para ficarmos e eu vim para São Paulo com as crianças, deixando apenas a Zélia, para terminar o 1° ano letivo no ginásio, na Bahia. Meu pai providenciou as passagens e nos instalamos aqui.
26. Ao voltarem do Rio Grande do Sul você teve que trabalhar para sustentar a família. Como foi isso?
Ediria – Quando chegamos aqui não tínhamos meios de vida. Vi um anuncio no jornal procurando uma desenhista numa confecção. Então fui lá. Os donos da confecção recebiam revistas de moda estrangeiras, marcavam alguns vestidos e eu desenhava adptando-os à moda e ao jeito brasileiro. Aquele emprego dava para pagar as contas da casa. Desenhista e modelista ganhavam mais que as costureiras e os outros serviços. Deu para eu, aos poucos, comprar alguns moveis. O Jaime só deixou no apartamento uma pequena estante, um sofá velho e uma mesa de formica. Assim tive que comprar umas camas. Sentávamos em caixotes. Depois comprei umas cadeiras. Depois um sofá cama. E assim fomos nos ajeitando aos poucos cada mês. Passei até a vender Avon. Ganhava com isso uma ninharia, mas servia para alguma coisa. No fim desse primeiro ano que vim para São Paulo, o SESC organizou o Salão do Trabalho. Enviei três xilo-gravuras para a tal exposição. Ganhei a medalha de ouro. Eles compraram as 3 gravuras. Estão lá, espostas no SESC Consolação. Com esse dinheiro das gravuras comprei os brinquedos de Natal para as crianças, um velocípede, um cineminha, patins e uns livros de história, e outras pequenas coisas que precisávamos. Mas adiante, consegui trabalhar no INEP, cujo diretor era o Anísio Teixeira. Esse Instituto estava funcionando em São Paulo na faculdade de Educação, na Cidade Universitária. A sede do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos) funcionava no Rio. Aqui, era, digamos, uma extensão dele.
27. Como era João com as crianças?
Ediria – O Mauricio e o João lançaram um pequeno jornal, que não lembro o título, e alugaram uma saleta para a redação, num prédio da Rua Senador Dantas, no Rio. Toda sexta feira à noite João tomava um ônibus no Rio e vinha para São Paulo, uma viagem muito incomoda, fiz até umas almofadas pequenas para ele apoiar a cabeça, porque vinha cochilando durante a viagem. Vinha ver os filhos. Aos sábados saia de tarde com eles, pelas redondezas. Aos domingos ia ao Ibirapuera. As crianças andavam de patins e corriam pelo parque. Assim era o João. Isso não durou muito tempo. Logo veio a ditadura. Mas nossa pequena família não ficou destruída. Expliquei aos dois maiores porque o pai não aparecia, e que eles não foram abandonados. O João com aquele jeito meio “fechadão” era uma pessoa muito sensível. Quando estávamos em Paris, a nossa filha Zélia, que ele deixou quando ela deveria ter uns 13 anos, foi até lá ver o pai. Ela já era uma médica, casada e esperando o primeiro filho. Passou uns dias conosco. Ele ficou muito feliz. Fomos ao aeroporto. Quando ela se despediu e seguiu para tomar o avião, ele não se conteve e chorou.
28. Comente um pouco sobre o golpe militar de 1964. Qual foi o impacto dele sobre a vida de vocês?
Ediria – No dia do golpe o João estava no Estado do Rio, com o Grabois. Até foi um pouco engraçado, como ele me contou depois. Estavam os dois num daqueles sítios onde eles se reuniam. Mauricio estava de tamancos, como ele costumava andar dentro de casa. A polícia apareceu no portão e os dois tiveram que sair correndo pelos fundos. Desceram uma ladeira cheia de mato até Niterói. E Mauricio de tamancos. Lá se esconderam em casa de uns amigos, que providenciaram uns sapatos para o Mauricio. A nossa vida familiar sofreu uma mudança completa. O João que todo fim de semana vinha ver os filhos, não vinha mais. As crianças ficaram tristes e desconfiadas. Aos dois maiores expliquei os motivos da ausência do pai. Ele não tinha nos abandonado. Eles compreenderam, mas, sofreram. Quem era amigo? Quem era espião? Um dia a Helena, que era bem pequena ainda, me perguntou – “Mãe, você não se arrepende de ter casado com o pai? Ele nem liga pra nós”. Quando tive contacto com o João contei isso. E ele disse – “conte para ela a verdade”. Então contei e ela compreendeu, apesar de ser pequena. Mas o que não pude evitar é que as crianças estivessem sempre preocupadas e com medo. O João e eu tínhamos encontros rápidos na rua e as vezes, no “aparelho” onde ele estava. Nesses encontros ele marcava o local do próximo encontro. Depois pelo telefone eu ficava sabendo a data e a hora do encontro. Não era ele quem telefonava. Tínhamos uns truques, que sempre deram certo. Enfim, nada nos aconteceu. Certa vez ele tinha marcado um encontro na Alameda Casa Branca, isso em novembro de 1969. Peguei o ônibus. Nunca saltava no ponto exato, mas antes ou depois do local, para inspecionar tudo. Quando quis saltar, não consegui sair do ônibus. Eu empurrava pra lá, empurrava pra cá e nada. Ninguém se afastava na minha frente. Fui descer na Praça das Guianas, bem longe do local determinado. Saltei e pensei – não vou pela 9 de Julho porque é muito iluminada. Atravessei a praça e entrei numa rua e fui andando. E aí, quem eu encontro? O João, que também ia andando para se encontrar comigo na Alameda Casa Branca. Achamos graça do encontro. Conversamos um pouco, nos despedimos e cada um foi pra seu lado. Acho que naquele momento a Alameda Casa Branca estava cheia de tiras disfarçados até de pedreiros, como li nos jornais. Esperando a chegada do Marighela para assassina-lo.
29. Mas você e seus filhos não chegaram a ser molestados? Durante o golpe, por exemplo, invadiram a casa de Prestes.
Ediria – Invadiram porque sabiam que Prestes morava ali. Aqui em São Paulo, João não era conhecido. Havia aqui, outra família Amazonas. Muitas vezes nos pergutavam se éramos parente do Clodomiro Amazonas. Eu tinha uma fachada legal. O João era muito rígido quanto à segurança. Dizia “só se cai ou por delação ou por se ter facilitado”. Falavam que ele era exagerado quanto a isso, mas ele tinha razão.
30. No Brasil você nunca foi presa?
Ediria – Não, nunca. Depois que eu sai da confecção, fui trabalhar no MEC ligada ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) que funcionava na Faculdade de Educação da USP. O ministro da Educação era Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira dirigia o INEP. Quando veio o golpe militar, depuseram o Darcy Ribeiro que acabou fugindo para o exterior. Acabaram com o INEP e o Anísio Teixeira apareceu morto, no poço de um elevador. Eu trabalhava no setor de Documentação e me transferiram, juntamente com outros funcionários do INEP, para a Delegacia Regional do MEC, na avenida São João. Havia duas ou três salas em que trabalhávamos e uma outra que ficava sempre fechada. Diziam que era o setor de “Divulgação e Propaganda”. Mas não era nada disso. Era o setor de espionagem, mesmo. Quando os estudantes reivindicavam alguma coisa, eles diziam que iam chamar os repórteres para noticiar, etc. Ai chegavam uns caras, que ficavam naquela sala, dizendo que era a imprensa e fotografavam todos os participantes. Assim a repressão tinha um arquivo com as fotos e os nomes de todos os estudantes que participavam dos diretórios acadêmicos. Havia um clima policialesco dentro do Ministério da Educação. Eu vivia com um medo terrível. Isso foi a partir do ano de 1970, depois do AI-5.
31. Depois da ida do João Amazonas para o Araguaia os contactos familiares devem ter diminuído ainda mais.
Ediria – Para ser sincera, eu nem sabia da existência do Araguaia, nem que havia uma guerrilha sendo preparada. Porque isso não aparecia nos jornais. E o João nunca me falou sobre este assunto. Mas o João desapareceu por uns tempos e eu não recebia seus recados. De vez em quando, alguém telefonava para saber como eu estava e como estavam as crianças. Mas marcar encontros como se costumava fazer antes, isso não. Eu ficava preocupada e também chateada. Achava que eu estava sendo esquecida. Uma vez houve um encontro com a Maria Trindade. Aí me queixei. “O João não liga mais pra gente!”. E ela disse: “não se preocupe, se ele não liga é porque não pode mesmo”. Ai fiquei mais tranquila.
32. Você ficou preocupada com o João quando soube da noticia da chacina da Lapa?
Ediria – Não fiquei preocupada pelo João, porque sabia que ele não estava no Brasil. Antes da viagem, ele esteve comigo e determinou, com todos os detalhes, como eu deveria viajar para a Europa e as datas certas e o local em que eu deveria me encontrar com ele, lá. Já tínhamos feito isso, noutra ocasião. Dessa vez fui com o meu filho. Ele ia rever o pai. Tudo deu certo. Na data determinada, no local e na hora combinadas o encontramos. Mas o João parecia destroçado. Andava quase se arrastando. Esse era o estado físico dele. Mas ele vinha sofrendo muito, com as coisas que vinham ocorrendo. Ainda no Brasil, quando nos encontramos e ele me contou a tragédia do Araguaia, ele caiu em pranto. Foi a primeira vez que o vi chorando. Essa dor, ele não superou nunca. Ficou marcada no coração dele até à morte. Antes de me encontrar em Paris, ele esteve na China, com o Renato. Mas não ficou muito satisfeito com o encontro. E nesse mesmo tempo veio a queda da Lapa. Foi outra coisa terrível para ele. Quem olhasse para o João via que ele estava muito doente e muito triste. Com lagrimas nos olhos, o Arruda me falou sobre o estado de saúde dele e que o tinha levado a alguns médicos. Então eu decidi que não deixaria o João sozinho. Disse – meus filhos já cresceram, não precisam mais de mim. O João achava que se ele estava mal, era coisa passageira, sem importância.
Para poder ficar legalmente me matriculei no “Atelier 17” de Hyter. O curso não era caro. Hayter dizia “Não faço questão de gente rica aqui. Só quero artistas”. E me aceitou como aluna. Recebi um atestado de que era aluna do Atelier. Periodicamente ia ao serviço de Imigração e minha permanência ficou legalizada. E meus dois filhos, que já trabalhavam – a Zélia e o João, todo mês enviavam uma pequena quantia para mim.
33. Como foi o tratamento de saúde do João?
Ediria – Foi muito difícil. Para começar, o João detestava o médico. Que realmente não era lá muito simpático e era de pouca conversa. Mas não era um médico qualquer. Era conhecido como bom médico. Dirigia esse setor num hospital e já tinha recebido alguns prêmios como oncologista, na França. Li uma vez no Le Monde, a noticia de um prêmio que ele recebeu nos Estados Unidos. Tinha uma equipe que trabalhava com ele, isto é, que ele indicava para tirar as radiografias, fazer os exames, etc. Enfim, não era um “medicozinho”. Mas o João não gostava dele. Uma vez o Arruda apareceu com a sugestão de que ele devia procurar a opinião de outros médicos na Inglaterra (isso foi idéia dos camaradas portugueses, penso eu). Diziam que em Manchester havia um hospital muito importante, para esse tratamento. Então, fomos lá. Não sabíamos inglês, mas lá nos esperava um jovem que era professor de inglês, para imigrantes portugueses. Uma pessoa muito simpática e que tratou de tudo e nos acompanhou até Manchester e conversou com os médicos de lá. Eles examinaram o João, viram as radiografias, avaliaram o tratamento que ele estava fazendo em Paris e deram a opinião deles. Estava tudo correto. Mas se o João não estava satisfeito na França, eles o tratariam lá em Manchester, com a condição de que ele fosse morar lá.
Em Paris, terminada a fase do tratamento com hormônios, passou à radioterapia. João começou a passar mal, isto é, perdeu peso e ficou muito nervoso. Enfim, já não era a mesma pessoa. Esse tratamento com radioterapia acabou com ele. Quando chegamos aqui no Brasil, não sei quem, levou em nossa casa, um médico, que também não sei o nome (nem quero saber), para ver o João. Esse tal médico pegou as radiografias, os resultados dos exames, etc. e disse que ia consultar tudo, junto a um colega dele. Passado alguns dias voltou e nos disse que queria falar com o João, mas não na minha presença. E eu disse – Por que não? Eu sou a mulher dele, sempre o acompanhei e quero saber de tudo. – Ele aí ficou muito zangado e falou “pelo diagnostico, ele não vai durar mais de seis meses”. Ai eu fiquei brava e respondi “Ninguém lhe perguntou isso. Eles lhe deram os exames para o senhor dar sua opinião e não para dizer quanto tempo ele vai viver”. Aí ele retrucou “É por isso que eu não gosto de falar com as mulheres”. Como viram, ele errou feio. Aqui, outros médicos falaram que ele nunca teve nada. Na minha opinião é que o tratamento foi tão bem feito que não deixou nenhuma seqüela. O certo é que o João viveu ainda mais de vinte anos, depois disso tudo.
34. Quem mais estava no exterior?
Ediria – Arruda quando saiu da prisão foi para o Chile. Depois da queda de Salvador Alende, foi para a Argentina. Depois conseguiu asilo político na França. Era o Arruda quem tinha contactos com os brasileiros que estavam na Europa. Ninguém sabia que o João e eu, estávamos lá. Íamos muito à Albânia. Lá é que o João tinha contacto com o Partido. Naquele país se realizavam cursos para os brasileiros e a radio Tirana transmitia noticias para o Brasil.
Em Paris havia alguns brasileiros, mas nós tínhamos contacto apenas com o Arruda, Renato Rabelo e Dinéas Aguiar, membros da direção. Só esses sabiam que o João e eu estávamos lá.
35. Então os esquemas de segurança ainda eram rígidos no exílio europeu?
Ediria – Sim, porque havia muita infiltração policial. Naquele tempo havia a operação Condor. Uma vez fomos seguidos por dois homens que aparentavam ser brasileiros. No metrô sentimos que estávamos sendo seguidos por dois homens – um branco e um negro. Pela vestimenta deles víamos que não eram europeus e que aquela roupa nova fôra comprada para viajar. Os dois nos seguiam e tomaram o mesmo vagão que estávamos. Então numa determinada estação, nos aproximamos da porta e fingimos que íamos saltar. O João Carlos que estava conosco saltou primeiro. Eles saltaram logo em seguida, atrás. Ai nós gritamos para o João Carlos “volta!”, ele pulou rapidamente para o vagão, as portas se fecharam e eles não tiveram tempo de retornar. Seguimos e saltamos noutra estação qualquer. O metrô de Paris não é como o de São Paulo que tem poucas linhas. Lá tem várias linhas e vários corredores. Uma verdadeira teia de aranha. Se alguém salta numa estação e pega outro trem, ninguém o acha mais. E assim foi dessa vez. De outra, sentimos qualquer coisa estranha mas conseguimos despistar também.
36. Onde você morava na França?
Ediria – Em um apartamento que o Arruda arranjou. Era da filha de um dos diretores do Le Monde. Ela casou e foi morar longe, numa cidade que fica perto dos Pirineus. Alugaram esse apartamento para um casal de brasileiros que depois foi para Angola. Então fomos morar lá. Era um apartamento de quarto, sala, cozinha e banheiro. Ficava perto do metrô Duplex, poucas estações antes de Mont Parnasse. O apartamento tinha como moveis um estrado com dois cavaletes e colchão de casal por cima. Uma mesinha de fórmica e mais uma mesa de tabuas (acho que construídas pelo antigo morador) e quatro cadeiras. Mas o luxo era uma cozinha eletrificada.
37. Como foi a anistia?
Ediria – A noticia foi recebida com muita alegria. O Arruda saiu de noite pela rua, chutando as latas de lixo que encontrava. O João ficou eufórico e impaciente para voltar logo, de qualquer jeito. E assim o fez. Logo depois do Arruda, ele voltou com o José Luís Guedes. Eu fiquei mais algum tempo para arrumar as coisas. Providenciar a remessa dos livros do João, me desfazer dos moveis e entregar tudo em ordem assim como as chaves aos proprietários do apartamento. Para desmontar os moveis e depositar tudo na rua, os amigos franceses vieram me ajudar à noite. Depois, fiquei alguns dias em casa de uma família francesa que nos ajudou muito, durante a nossa estadia em Paris, até acertar as passagens para voltar.
Soubemos do falecimento do Arruda, no dia da chegada do João em São Paulo. Os amigos na França, organizaram um ato em homenagem à memória do Arruda no cemitério Pére la Chaise. Eles têm lá um local destinado a esses atos. Foram muitas pessoas. Estavam lá franceses, brasileiros, albaneses, portugueses e vi até alguns africanos. Os franceses e os portugueses disseram algumas palavras de despedida. Foi muito comovente. O Arruda, inegavelmente, foi um grande comunista e a ele muito devemos, pelo seu trabalho durante os anos difíceis que o Partido enfrentou.
Veja também:
Entrevista no Programa Roda Viva (1989) – transcrita;