Qualquer coincidência surgiu como mera e conhecida realidade. Uma expedição, em outubro de 2001, chegou à região sul do Pará e norte do Tocantins para averiguar novas pistas acerca da localização de ossadas dos guerrilheiros do Araguaia. Logo após a sua partida, entrou em ação uma operação militar que, durante uma semana, movimentou efetivos de infantaria do Exército em marchas e barreiras nas estradas com a cobertura de helicópteros, atingindo Santa Cruz, na Serra das Andorinhas, a região de Perdidos – que sediou um destacamento guerrilheiro no início dos anos 70 – Araguanã, São Geraldo, São Domingos, Bacaba, base militar que ficou conhecida pela tortura e pela morte.

Era de se esperar que a movimentação rememorasse os últimos momentos da “novela baseada em fatos reais” (Xambioá: Guerrilha do Araguaia), do coronel Pedro Corrêa Cabral. No final do seu livro, o coronel, que hoje se proclama devotado à religião evangélica, relata as circunstâncias que sucederam o extermínio de guerrilheiros, chamando-as de “caçada”. Já não existiam os homens e mulheres que tanto incomodaram ao regime militar, mas algo perturbava os representantes da “comunidade de informações” e, em particular, o general-presidente Emílio Garrastazu Médici: a miséria do povo na região era a mesma e os guerrilheiros poderiam fazer muita falta e ser recordados para sempre, apesar do terror que se abateu sobre aquela gente. Foi então que surgiu um outro estilo de intervenção, Ação Cívico Social (Operação Aciso), para controlar espaços vazios de poder, na mesma linha da operação Rondon e do Mobral.

Em um único dia daquele mês de janeiro de 1975, os carrascos vestiram a benemerente roupagem assistencial e saíram oferecendo atendimento médico-odontológico, vacinando, distribuindo bugigangas diversas para crianças. Sobretudo, expediram Carteira de Identidade, tirando do anonimato aqueles que ofereceram apoio ao “povo da mata”. Identificando, claro que para controlar, aqueles que escaparam. Oriundos, em geral, do Nordeste, anônimos, muitos foram assassinados sob tortura; outros enlouqueceram ou morreram anos depois e continuam morrendo hoje, guardando na lembrança o “buraco do Vietnã”, onde conviviam, noite a noite, com animais não peçonhentos, agitados madrugada adentro pela salmoura que pingava, incessante, e bebiam muitas vezes da própria urina, apertados uns contra os outros. Alguns, pendurados pelos testículos como os guerrilheiros, gritavam ensandecidos pela dor que a Aciso não obliterou.

Nas corcovas da serra

Passados 27 anos do encerramento da terceira campanha, agarrado a um exemplar da sua Bíblia, o coronel Cabral repetiu o gesto de 1993, quando acompanhou repórteres de uma revista na busca de um cemitério de guerrilheiros. Dessa vez, sobrevoou por mais de 15 horas a Serra das Andorinhas entre um advogado (o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh) e um coronel e sua tripulação, a bordo do mesmo helicóptero que pilotara durante a “operação limpeza” mencionada em seu livro. Literalmente encurralado entre a cruz da convivência com os familiares e amigos dos guerrilheiros e a espada de seus ex-colegas de farda, novamente não encontrou o ponto certo entre as corcovas da “extremidade sul da Serra das Andorinhas, único relevo digno de nota em toda a região”.

Foi no final das operações, em 1975, sobrevoando o local (“Mais um serrote, onde nasciam diversos afluentes do Saranzal e do Araguaia”), que ele (na novela, João Pedro) disse a um outro aviador no termo de seu livro:

– Sim, meu amigo Parise, é impossível esquecer esse lugar. Ali estão os restos mortais de meia centena de jovens que um dia sonharam um Brasil melhor. Que Deus tenha compaixão por eles!!
O coronel trata agora de convencer mais algum oficial a mostrar o local que ele, ainda desta vez, não apontou.

Terra e minérios: questão militar

O percurso por terra ofereceu outro cenário. Hoje, varando a região que vai de Marabá a São Geraldo e Xambioá, cruzando São Domingos do Araguaia e a reserva indígena Suruí-Sororó – único bolsão de mata densa, protegido por uma certa aura de ferocidade nativa –, o transeunte é invadido pela sensação de circular por um quase semi-árido, aqui ou acolá com uma visão de floresta. São largas as margens da Transamazônica e das estradas operacionais construídas para cortar a selva que predominava há 30 anos, protegendo os guerrilheiros e seus semelhantes – os pássaros e todas as múltiplas espécies, movimentos, penumbra, cores e cantos de uma pródiga natureza.

A paisagem atual comprova que ali, na verdade, aconteceu um confronto entre duas concepções de desenvolvimento. Estão ali os sinais de que, efetivamente, a guerrilha não foi combatida simplesmente pela oposição que representava ao absoluto domínio da ditadura, mas também pelos minérios – o chão de uma rica área cobiçada pelo imperialismo. As multinacionais, com suas grandes agropecuárias e mineradoras (não apenas por ironia o Exército e a Força Aérea, descaracterizados para a terceira campanha, chegaram em Xambioá precisamente como duas empresas privadas do gênero), alavancaram a repressão em larga escala que mobilizou o vasto equipamento militar em homens e armas, detonaram o matraquear de helicópteros e metralhadoras zunindo até hoje sobre as cabeças dos sobreviventes do período.

O historiador e jornalista Luís Mir encontrou evidências da participação militar norte-americana no combate à guerrilha, inclusive de um general americano – com experiência no Vietnã – que ficou sediado em Manaus. O coronel Pedro Cabral confirma – numa entrevista ao jornal Opção, de Goiânia – outras evidências da estreita ligação entre os militares brasileiros e norte-americanos no período, a partir de palestras ministradas no 1º Esquadrão do 4º Grupo de Aviação, em Fortaleza, por oficiais da Força Aérea dos Estados Unidos da América (USAF), às quais assistiu como estagiário. Além disso, diz que a CIA, “sem dúvida alguma, deve ter relatórios sobre o assunto”.

Em artigo escrito para a revista “Airpower Journal” (2/1995), da USAF, o coronel do Exército Álvaro de Souza Pinheiro, lotado no Estado-Maior das Forças Armadas, afirmou que a Força Aérea Brasileira (FAB) bombardeou com Napalm a serra das Andorinhas (PA) durante o combate à guerrilha do Araguaia. O artigo (“Guerrilha na Amazônia: uma experiência no passado, o presente e o futuro”) menciona o assunto no item “A experiência dos anos 70”, quando o coronel aborda “uma série de equívocos” das Forças Armadas na primeira campanha.

Naquele momento já estava em curso a meta de acelerar o desenvolvimento do capitalismo no campo, estimulando a concentração fundiária, quando a questão da terra (e do subsolo) passou a ser uma questão militar. Os generais atuavam no sentido de criar uma política voltada para as grandes empresas, mediante incentivos financeiros, voltando-as para a grande agropecuária. A origem dessa política estava no próprio golpe militar de 1964, que, entre outros objetivos, buscou modernizar os coronéis latifundiários e travar o crescimento das lutas camponesas, que construíam suas formas de organização – notadamente desde meados da década de cinqüenta. Em plena fase de enfrentamento na guerrilha, substituiu os elementos favoráveis à reforma agrária, que ocupavam cargos em ministérios por outros, que defendiam a instalação das grandes empresas no campo. Mas, mesmo que mais reservadamente, no Araguaia, a fartura de minerais preciosos e estratégicos, além da proximidade de Carajás, arrepiava os generais diante da possibilidade de uma zona liberada por ali.

E a semente brotou

As queimadas diárias que precedem o período das chuvas, as árvores esturricadas que anunciam a passagem da destruição, a presença passiva do gado se espalhando pelo horizonte, as mineradoras à beira do caminho, são os sinais do aparente triunfo da barbárie especulativa sobre os interesses do país e do povo da região. A selva foi e é tratada como erva daninha que se extirpa do solo. Sinais, contudo, apenas simbólicos de uma vitória arrancada a fórceps e que não logrou a destruição da memória legada pelo “povo da mata”.

Desde que os generais do período (e sua “comunidade”) deram como encerradas as operações de combate à guerrilha, apenas cresceram entre os moradores do Araguaia os sentimentos de admiração pelos guerrilheiros, vistos como amigos e irmãos que ali chegaram e nunca se foram – presos vivos, escaparam, mesmo executados. Assim como não arredaram pé a “comunidade” e seus assassinos de aluguel, que, chafurdando o rio Maria, exterminaram barbaramente os Canutos – Expedito e João – Belchior, Paulo Fonteles, Gringo – amigo de Osvaldão-, entre tantos lutadores. Seus ossos – de guerrilheiros e sucedâneos – fertilizam a terra que, nua e fecunda, é ocupada pelo MST e MLT, núcleos combatentes oriundos de uma oposição sindical que surgiu na seqüência da luta armada.

É assim que a menção a algum herói tombado faz despontar um jeito curioso, um sorriso largo ou um olhar de tristeza d’alma no morador anônimo do Araguaia. Ou que um comentário despretensioso agita a atenção ainda acanhada, até que, identificado o forasteiro, jorram as estórias, lendas e contendas. É assim que vão se apresentando novas testemunhas, e que novos fatos, filtrados, emergem. Foi assim também que, num desses episódios – de contendas –, o Incra, uma cobertura oficial para a “comunidade” militar naquele período, achou por bem vetar os nomes de João Carlos Haas e da Dina da Guerrilha em dois assentamentos, e substituí-los por “Brasil-Espanha” e “Oito Barracas”, contestando a vontade dos camponeses. E que estes, no entanto, assentados na região de São Domingos, mantêm o livre batismo.

Também é fato: nenhuma força bruta ou Aciso impediu que o município de São Domingos das Latas se transformasse em São Domingos do Araguaia e que uma revista (Manchete) anunciasse em sua edição nº 2.131, de 6 de fevereiro de 1993: “O presidente da Câmara de Vereadores, Abdias Soares da Cruz, orgulha-se de ter incorporado ao escudo do município as armas dos guerrilheiros como reconhecimento histórico da luta”.

E quem, por acaso um dia, passar por São Domingos, deve parar num pequeno quiosque ao lado do mercado local e puxar uma prosa com Dona Margarida. Verá seus olhos rasos de lágrimas quando falar da bondade e da bravura da guerrilheira Sônia e de seus companheiros, que muita ajuda lhe deram. E saberá de sua revolta diante da violência e da morte. A alguma distância dali, no outro lado da rodovia, estará o Vanu, guia do Exército na época, que, sem a terra prometida e com o olhar perdido no passado, vive cercado pela simpatia que a família e amigos devotam aos guerrilheiros.

Museu da Guerrilha

Foi neste cenário que uma nova expedição de busca chegou a antiga região do Bico do Papagaio, na confluência dos Estados do Pará, Maranhão e Tocantins). De Brasília a Marabá, num velho Bandeirantes da Força Aérea, cedido pelo Ministério da Defesa – que, pela palavra do ministro Geraldo Quintão no plenário da Comissão de Relações Exteriores, se comprometera a fornecer os meios para esclarecer o mistério dos desaparecidos no Araguaia. Mas, ainda aí, não se abrem os arquivos secretos e o ônus da prova, pelos critérios do governo, vai para a conta dos interessados.

Além de deputados (Socorro Gomes e Greenhalgh), assessores e familiares, o grupo incluiu três pesquisadores do Laboratório de Geofísica Aplicada da Universidade de Brasília (UNB), munidos de equipamento da geofísica forense para a localização dos corpos (GPR), e quatro médicos legistas do Instituto Médico Legal de Brasília. Em Marabá, estavam dois helicópteros para a locomoção dos técnicos, equipamentos e pesquisa na Serra das Andorinhas.

A sede da expedição foi transferida logo no segundo dia de Marabá para Xambioá, um percurso de 160 quilômetros (palmilhado a pé pelos guerrilheiros) ao lado oposto da área correspondente à guerrilha, cruzando-se o rio Araguaia-Tocantins a partir de São Geraldo do Araguaia.

Uma cidade diante da outra, separadas pelo grande rio. Em São Geraldo, um museu mantido pelo técnico agrícola baiano Eduardo Porto Lemos contra a vontade do prefeito local, tem a simpatia dos moradores. Lemos, que chegou na região em 1981 e trabalhou em algumas empresas agropecuárias, conta que se entusiasmou pelo tema prosando com trabalhadores das fazendas – simpatizantes dos guerrilheiros. Depois, já instalado em São Geraldo, começou a juntar peças de interesse arqueológico, paleontológico e botânico, mas predominou seu acervo de informações predileto, com muitos recortes de jornal e publicações da grande imprensa e do PCdoB. E terminou por colocar diante da casa uma placa artesanal onde se lê: Museu da Guerrilha do Araguaia. Lá, diante de um mapa da área dos destacamentos e da evolução dos combates a cada campanha, fixado na parede, ele conta com orgulho a quem chega como os guerrilheiros derrotaram as Forças Armadas nas duas primeiras campanhas. Cruza o rio na balsa com a expedição.

Aulas vigiadas

Xambioá aguarda em silêncio. Paira no ar uma expectativa diante de uma trama que chega aos 30 anos de seu início (a ser registrado no dia 12 de abril de 2002). A professora Maria Evanir, secretária de Educação do Município, é a primeira a quebrar o silêncio. Durante as escavações no cemitério, ela se apresenta, diz que é historiadora – quer saber dos acontecimentos – e que já incluiu a guerrilha no currículo das escolas. E narra o grande impacto da chegada repentina dos contingentes militares naquele distante mês de abril de 1972: veículos de transporte e combate em profusão, milhares de homens que desmantelaram a cultura e as famílias locais. Conta da falta de carne nas mesas até o fim das duas primeiras campanhas; os marchantes só podiam fornecer para a população quando sobrasse, o que nunca acontecia.

Evanir discorre também sobre o seu drama pessoal para lecionar OSPB (Organização Social e Política do Brasil): precisou ir a Goiânia provar que não era subversiva em folha corrida do DOPS e conseguir a licença. Mesmo assim, suas aulas eram vigiadas pelos “secretas”, talvez os mesmos que arrombaram as gavetas do marido em busca de uma relação secreta com os guerrilheiros. Depois, no limiar da terceira campanha, guardou na memória os vendedores de alho e redes que ocupavam o melhor hotel da cidade, bem diferentes dos feirantes que dormiam no mercado. E, enfim, as imagens das fotos afixadas em todo canto: “Procura-se terrorista”.

As pesquisas e escavações prosseguiram no cemitério, intensamente movimentado, enquanto corriam as notícias – incompreensíveis à primeira vista – de que os helicópteros estavam ali ao lado, no campo de futebol, com os amigos dos “paulistas”. Os primeiros ossos encontrados (agora sob estudo no IML de Brasília) atiçam a imaginação. Turmas de estudantes e professores, trabalhadores e autoridades, moradores de toda Xambioá, se chegaram, curiosos.

No final da expedição, todos se reuniram num ato, no dia 25 de outubro, transbordando de gente uma escola (São Judas Tadeu), no resgate de sua própria História pela primeira vez depois do final da guerrilha. Para entender o que se passava, prefeito e secretários municipais, presidente da Câmara e vereadores, juiz, promotor, empresários, jornalistas da grande imprensa do sudeste e do Pará, se juntaram a professores, estudantes e trabalhadores, ouvindo depoimentos e explicações sobre o ocorrido na região.

E o povo tomou gosto. Sem medo e sem a presença da expedição, comemorou os 43 anos de Xambioá no dia 14 de novembro. Centenas de moradores – jovens de oito colégios na maioria – montaram um palco na avenida Beira-Rio e encenaram a luta, a perseguição, a bravura e o martírio dos guerrilheiros. Depois, em caminhada pelo aclive da igreja de Xambioá alcançaram a praça, onde uma equipe de jurados escolhia quem era capaz de identificar com maior facilidade os guerrilheiros nas fotos dos desaparecidos do Araguaia. Unidos, confraternizaram com os moradores de São Geraldo que, cruzando o grande rio, foram à festa do reencontro com a liberdade sonhada, com o sacrifício da vida, pelo “povo da mata” em sua gloriosa jornada de luta.

E a semente vingou.

colaborou Vital Nolasco