Joâo Cândido e a revolta da chibata no seu centenário
Salve o navegante negro,
que tem por monumento,
as pedras pisadas do cais
(João Bosco e Aldir Blanc)
Já se passaram 100 anos e ainda temos vários débitos com a história do Brasil e dos heróis de seu povo. Não seria diferente no centenário da Revolta Chibata, revolta que ainda desperta vivas polêmicas; embora ao que parece, haja em curso uma positiva reflexão que, ao menos, possibilita que aqueles marinheiros assumam seu lugar na história, e de forma menos preconceituosa.
Com ela, igualmente termos a possibilidade de refletir sobre o movimento a luz de um debate recente sobre a presença dos militares na política, especialmente quando entidades de jovens oficiais e praças procuram mais uma vez, encontrar seu lugar como sujeito na construção de um projeto para a nação.
Isso não é pouco, até porque, a despeito de uma considerável bibliografia, a revolta ainda encontra resistências extraordinárias de muitos setores da elite militar brasileira na sua compreensão, mesmo aceitação; tendo justificativas, quiçá explicações em contrário, argumentos que variam de aspectos institucionais e corporativos relacionados a quebra de hierarquia, sugerindo como expressão maior a indisciplina; ou por outro, reles preconceito.
Como ressaltado, o positivo dessa reflexão é que, além, de estudos recentes que emergem no debate político e acadêmico, temos visto manifestações – um pouco tímidas e por não dizer, ainda discretas – de jovens militares no sentido de enfrentar a questão com serenidade, até porque, não foram poucos os movimentos correlatos de contestação de subalternos e oficiais, mesmo na própria Marinha e que também aconteceram no Exército e Aeronáutica ao longo da história brasileira do século XX.
Se isso auxilia trazer a tona a figura daqueles expoentes, em especialmente sua liderança mais conhecida, João Cândido; não minimiza sobre as dificuldades. Por exemplo, paralelo às pesquisas acadêmicas sobre o tema, o reconhecimento político sobre a luta dos marinheiros também emergiu a partir de uma anistia recentemente concedida pelo Congresso Nacional, mas que teve por manifestação em contrária da instituição naval, uma violenta nota condenatória.
Evidente a Marinha se expressa por seus comandantes e não é difícil localizar vozes dissociantes internas na própria instituição, vozes de uma nova geração que argumenta que sua Marinha não é aquela de 1910; bem como também procuram com clareza se dissociar da história da instituição naval no pós 64, quando muitos de seus membros atuaram de forma vexatória no golpe civil-militar.
Nesse sentido, associadas ao fato de muitas manifestações sobre o centenário terem acontecido neste ano de 2010, bem como a reedições de livros clássicos sobre a revolta, e mesmo a designação de um superpetroleiro com o nome de João Cândido; vale registro de que uma entidade que representa politicamente com muita propriedade os marinheiros de 64 na luta da anistia, a UMNA: Unidade de Mobilização Nacional pela Anistia (que lançou um documentário sobre a fundação da entidade e o resgate da luta pela anistia com o título: Homenagem a João Cândido), atualmente não poupa esforços para que um filme sobre a revolta venha a ser produzido.
Inclusive a entidade contabiliza uma vitória extraordinária: além de forjarem uma estátua de João Cândido, que por muito tempo, esteve posicionada nos jardins do Palácio do Catete; conseguiu recentemente que a mesma fosse relocada no seu lugar de fato e de direito: a Praça XV, um dos palcos daqueles acontecimentos de 1910.
Acredito que isto teve por significado maior, quase 100 anos depois revolta, não somente o reencontro daqueles marujos com sua história, mas como bem expressa a passagem em epígrafe, um reencontro com uma história construída naquele cais nos anos subsequentes, nada distante daquelas águas que ficam em frente a Marinha que João Cândido e aqueles marinheiros tanto referenciavam. Talvez sejam os passos mais importantes que podemos relatar de uma reflexão em curso sobre o Mestre Sala dos Mares e a revolta da Chibata, um movimento que, com muita dignidade, expressou uma das mais belas página de luta do povo brasileiro.
E fez uma história que, apesar dos esforços em mantê-a longe dos livros escolares, não se apagou ou foi apagada da memória do povo; até porque, como bem dizia uma passagem com sabor de poesia, a memória do povo é do tamanho do mundo.
Paulo Ribeiro da Cunha é professor de Teoria Política da Unesp – Campus de Marília
Fonte: Fonte: Diário de Marília Marília, 24 de setembro de 2010