A Presidenta Dilma Roussef, que foi torturada durante o regime militar no Brasil (1964-1985), disse, em evento realizado recentemente no Rio Grande do Sul, que “a memória é uma arma humana para impedir a repetição da barbárie”. A criação de uma comissão especial para investigar casos de tortura e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura militar é, para a consciência crítica desse país de que, o resgate da luta de uma geração. Para a Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes, “devemos dar seguimento ao processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado por graves violações de Direitos Humanos, com vistas à sua não repetição, […], de forma a caracterizar uma consistente virada de página sobre esse momento da história do país”. Essa é uma bandeira republicana, civilizatória, reconciliadora e simbólica da construção de novos tempos em nossa cidadania.

É importante afirmar que o estado brasileiro já implantou, recentemente, duas comissões da verdade, que vem resgatando a confiança pública: a de Mortos e Desaparecidos, constituída há 15 anos; e a da Anistia, criada há 10 anos, portanto não se está propondo criar uma coisa nova e desconhecida. Também internacionalmente a proposição de Comissão da Verdade – como foi a experiência da Espanha, Portugal, Chile, Argentina – significou a possibilidade do reconhecimento não só da memória daqueles que lutaram contra o arbítrio de governos ditatoriais e fascistas, mas também a possibilidade de pacificação da sociedade, de dar uma resposta do Estado às famílias enlutadas, que podem enterrar seus mortos e venerá-los conforme os mais dignos sentimentos simbólicos dos seres humanos.

Em entrevista de Charlotte Delbo encontramos um importante depoimento. A escritora e teatróloga francesa de origem judaica escreveu peças teatrais a partir do horror da experiência vivida nos campos de concentração, quando, entre outros sofrimentos, assistiu o assassinato de seu marido. Para ela, como para nós, não se trata de revanchismos quando se propõe resgatar a memória histórica, mas de dar a ela o lugar de dignidade que é merecedora. Diz ela: “não convoco o passado tal como ele foi vivido, ele reaparece sempre a partir do presente”. Isto é, retomar o passado histórico mesmo com toda a sua crueza, a partir da memória, para ela foi transformá-lo em textos de peças teatrais escritos e publicados que ela soube tornar poéticos e belos, apesar de registrarem o horror. Quanto a nós essa memória pode e deve vir à cena através do resgate da história de cada um que foi perseguido, morto, torturado ou ‘desaparecido’ nos porões do regime que vigorou no país de 1964 a 1985. Queremos, a exemplo do que foi feito em Buenos Aires, construir um Centro de Memória que resgate essa memória histórica recente.

Charlotte Delbo traz ainda uma impressão muito nítida do que foi sua experiência e nessa mesma entrevista disse: “Hoje não estou segura de que o que escrevi seja verdadeiro, eu estou certa de que é verídico”. Frase densa que nos indica que há sim a necessidade de falar da memória documental, mas que não se pode apagar a verdade subjetiva, relatada muitas vezes por aqueles que sobreviveram à barbárie da tortura e da perseguição política.

A criação da Comissão da Verdade pelo Congresso Nacional será um momento importante e ela só virá depois de um debate franco, aberto e democrático, pois o Estado tem uma dívida histórica no que diz respeito aos desaparecidos políticos e como nos orienta o Plano Nacional de Direitos Humanos 3, “A investigação do passado é fundamental para a construção da cidadania. Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona seus acontecimentos, caracterizam forma de transmissão de experiência histórica que é essencial para a constituição da memória individual e coletiva.” Construção da cidadania que se inicia após o fim da Ditadura Militar e se aprofunda nos governos democráticos surgidos desde 1985, que teve seu momento de maior importância nos oito anos do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e terá continuidade no Governo de Dilma Roussef. “A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio, como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro.” (PNDH3 p. 170).

As violações sistemáticas dos direitos humanos pela Ditadura Militar não podem passar despercebida e esquecida pela Memória Nacional e com a Comissão da Verdade teremos um momento de pacificação para que definitivamente nunca mais ocorram esses fatos brutais que ofendem e mancham a nossa história. Às gerações de hoje e para aquelas que nos substituirão devemos deixar esse legado do resgate de nossa memória histórica. Não podemos jamais esquecer de que foram mais de 50 mil pessoas presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos e ocorreram, ainda, milhares de prisões políticas não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos e uma cifra incalculável de exilados e refugiados políticos. (conf. PNDH3 p. 173).

Com a palavra o Congresso e a consciência crítica de nossos representantes, pois nós, a sociedade civil organizada, não descansaremos até a concretização desse propósito que é a criação da Comissão da Verdade.

* Jorge Pimenta é sociólogo e Psicanalista
** Nilmário Miranda é jornalista e Presidente da Fundação Perseu Abramo.

Fonte: Perseu Abramo