No início de maio de 1936, com o fim do recesso parlamentar, a Câmara dos Deputados se voltou para o aprofundamento das discussões em torno do processo dos deputados presos e acusados de participar do movimento nacional-libertador de novembro de 1935. O processo vinha do Executivo, sendo elaborado pelo Presidente da República, Getúlio Vargas, e pelo então Ministro da Justiça, Vicente Ráo.

Na verdade, ao tratar do assunto, a Câmara passava a exercer o papel de uma espécie de tribunal, pois destinava aos próprios deputados a tarefa de ouvir os depoimentos dos indiciados, examinar as possíveis provas colhidas pela polícia contra os parlamentares e investigar detalhadamente todo o processo em causa.[1]

O Brasil vivia o contexto do Estado de Guerra, o qual passou a justificar o aprofundamento da perseguição política a todos aqueles que haviam apoiado ou, de certa forma, se relacionado com a Aliança Nacional Libertadora (ANL), criada e fechada no ano anterior.

Em 11 de julho de 1936, o deputado João Mangabeira entrou com pedido de habeas corpus na Corte Suprema, requerendo para si e para os seus colegas presos, Domingos Velasco, Otávio da Silveira e Abguar Bastos, bem como para o senador Abel Chermont, justificado nas imunidades parlamentares e contra o processo na Justiça Criminal.[2]

Na Câmara, a contraposição veio de dos Deputados Pedro Aleixo (PP de Minas Gerais) e Adalberto Correia (PRL do Rio Grande do Sul). Simbólica e respectivamente o primeiro seria futuro fundador da UDN, um dos líderes civis do Golpe de 1964 e Vice-Presidente de Costa e Silva, enquanto o segundo era o Presidente da Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo (CNRC), criada em 10 de janeiro de 1936, ante-sala de um Tribunal de Exceção, junto com o Estado de Sítio e o Estado de Guerra.

Em 15 de julho, finalmente Vargas remeteu à Câmara medidas complementares a Lei de Segurança Nacional (LSN), apresentando o anteprojeto para a criação da justiça especial para julgar “extremistas” e para o cumprimento de penas de todos que fossem condenados.[3]

A conjuntura de proposição e votação do Tribunal Especial vinha acompanhada da divulgação de novas prisões de comunistas por todo o País. Ainda em julho, foi preso o espanhol José Lago Morales, que havia retornado ao Brasil como representante do Bureau Político da Seção Latino-Americana da III IC, sendo antigo integrante do PCB, já expulso do País em 1929.[4]

Articulava-se a criação do famigerado Tribunal de Segurança Nacional (TSN). Como explicou Reynaldo Pompeu de Campos, o Tribunal serviria para ser acionado contra todos os adversários. Estava criada uma aberração falsificada de qualquer aplicação mínima dos direitos, inclusive com a utilização da prática fascista da retroatividade da lei, o que praticamente garantia a condenação de antemão de muitos acusados. [5]

Na mesma conjuntura, a União Feminina Brasileira enviou carta para Darci Vargas, mulher de Getúlio, pedindo para que intercedesse diante da deportação das alemãs Olga Benário (mulher de Luiz Carlos Prestes, grávida de sete meses de Anita Leocádia Prestes) e Elise Ewert ou Machla Lenczycji e da argentina Carmen Ghioldi, incursas no artigo 15 da LSN.[6]

A deportação das militantes estrangeiras já estava praticamente decidida pelo governo, tanto que Heitor Lima havia sido constituído advogado e se encontrava regularmente com o advogado e delegado Bellens Porto, então responsável pelo inquérito sobre novembro de 1935, e com o capitão e delegado de Segurança Política e Social, Miranda Corrêa, a fim de tratar dos direitos de defesa,[7] o que desmente a versão de que Getúlio Vargas não sabia sobre a deportação das militantes comunistas.

O TSN teria vida longa até 1945. Como aponta Reynaldo Pompeu de Campos, em toda a sua existência foram julgadas mais de 10.000 pessoas, com 4.099 condenações que variavam entre multas até 60 anos de reclusão, totalizando 6.998 processos. Nestes processos, entre tantos, as vítimas mais visíveis foram o Partido Comunista do Brasil e seus militantes. 75 Anos depois, ainda vale lembrar este momento de infâmia da formação sócio-histórica brasileira, para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.

Notas

Este artigo contém extratos modificados da tese de Doutorado “O fantasma do medo: O Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937)”, defendida na UNICAMP em 2004, sob a orientação do Prof. Dr. Michael McDonald Hall.

[1] Ver: Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 30 de junho a 03 de julho, vol. 6. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937, p. 40-3 e 173-478; Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 4 a 14 de julho, vol. 7. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/Oficina Salles Filho, 1937, p. 47, 103, 133, 187, 198. 203. 205, 230, 233, 297, 300 e 304-5; Anais da Câmara dos Deputados, Sessões de 15 a 23 de julho, vol. 8. Rio de Janeiro: Batista de Souza e Cia., 1937, p. 6, 41 e 249, Fundação Casa de Rui Barbosa.

[2] Evandro Lins e Silva redigia os habeas corpus, mas por não ter as imunidades parlamentares, quem assinava era Mangabeira. Cf. O salão dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Ed. da FGV/Nova Fronteira, 1997, p. 123-4.

[3] Combinada com a LSN, o decreto nº 991, criava o TSN como órgão da Justiça Militar, mas julgaria civis. Ver o decreto em JORGE, Teobaldo José. O Estado de Guerra e a LSN. Rio de Janeiro: Borsos e Cia., 1937, p. 113-5.

[4] Cf. seu prontuário no Fundo DOPS, Setor Prontuários, Notação 1.631, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ).

[5] Como explica o autor, muitos consideraram o TSN como o equivalente brasileiro do Tribunal do Povo Alemão do III Reich – o Volksgenchts hof -, ou como similar ao Tribunale Speciale per la Difesa dello Stato, pois não foi criado “para ministrar justiça, mas sim como instrumento para distribuir condenações”. Ver: O Tribunal de Segurança Nacional: 1936-1945. Dissertação de Mestrado, Niterói: Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/UFF, 1979, p. IV, 1 e 121.

[6] O artigo 15 da LSN estabelecia: “A União poderá expulsar do território nacional os estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do país”. De nada adiantaram as mobilizações. Em 23 de setembro, Olga Benário foi embarcada, junto com Sabo, com destino às prisões da Gestapo, em Berlim, vindo a morrer na câmara de gás, em 1942.

[7] Em 17 de julho, Heitor Lima escreveu para Filinto Müller reclamando que recursos financeiros não chegavam a Olga para auxílio na alimentação da gestante e ao próprio advogado para a defesa. Cf. Arquivo Filinto Müller, FM 33.03.23, 1933 a 1939 – Presos e Instituições Penitenciárias, doc. I-69, CPDOC/FGV. Hermes Lima já havia escrito para Darci Vargas, em 18 de junho, solicitando para a mulher de Vargas que interferisse na intermediação que ele fazia para que o Presidente autorizasse chegar até Olga uma passagem de primeira classe, a fim de preservar a vida do filho que iria nascer. Ver: Arquivo Getúlio Vargas, GV 36.06.18, doc. XXII-11, rolo 4, CPDOC/FGV.