Este trabalho é parte de uma pesquisa de resgate, ainda em andamento, da
escritora sergipana Alina Paim, nascida a 1º de outubro de 1919 na cidade de estância,
autora de 10 romances e 4 obras dedicadas ao público infantil. Paim é mais um desses
casos de escritoras esquecidas pela crítica literária e pelo público em geral. Só
recentemente essa romancista tem sido objeto de estudos no espaço acadêmico da
Universidade Federal de Sergipe, graças ao pioneirismo das nossas pesquisas sobre as
escritoras sergipanas do século XX, iniciadas no primeiro semestre de 2007, ocasião em
que nos deparamos com duas de suas obras. Analisa o imaginário nas narrativas:
Estrada da liberdade (1944), Simão Dias (1949) e A sombra do patriarca (1950) , buscando
mostrar que o mito da professora apresenta-se como uma marca que descreve tanto o
sujeito social quanto o sujeito psicológico; para tal, dialoga tanto com a mitocrítica de
Gilbert Durand e suas bases junguianas e campebellianas, por permitirem uma melhor
compreensão do mito na atualidade, quanto com a crítica feminista defendida por
Constância Duarte, Mary Del Priore, entre outras, que analisa a condição social da
mulher.

Qualquer pessoa que se debruce sobre a história das mulheres, por menos
observadora que seja, notará, sem grandes dificuldades, as diferenças de padrão entre
o homem e a mulher em nossa cultura. Com certeza, notará também que o espaço da
mulher em relação ao espaço do homem, mostra-se bastante restrito, mesmo na
atualidade, quando, por meio de um questionamento permanente, as mulheres têm
procurado ampliar o seu espaço. Não é fácil, porém, para a mulher, mudar tal situação,
considerando-se que a maioria dos homens não se encontra disposta a lhe ceder os
privilégios que lhes têm pertencido historicamente. Deste modo, as relações entre
ambos tornam-se o lugar de luta pelo poder, assumindo, assim, uma dimensão
inquestionavelmente política.

Qual a origem dessa situação? Porque o feminino, ao longo dos tempos,
sempre foi discriminado e, portanto, colocado em segundo plano? Essas questões
parecem fundamentais para a compreensão do problema das relações entre o
masculino e o feminino. Segundo José Carlos Leal (2004), à proporção que a espécie
humana foi se destacando dos animais chamados irracionais e, através da cultura, se
distanciando da natureza, o sexo masculino teve que enfrentar sérias dificuldades de
relacionamento com o feminino. A fêmea, embora muito parecida com o macho,
possuía algumas particularidades que a tornava estranha a ele e profundamente
inquietante, como a menstruação.

Nas sociedades patriarcais, do início da Idade Média, o receio em relação ao
feminino aumenta consideravelmente, concretizado nos fortes tabus referentes não só à
menstruação, mas também ao parto e à nudez do corpo feminino, o que se constitui
numa forma para controlar a reprodução, a educação e o trabalho das mulheres,
geralmente voltado para os cuidados de saúde, fossem elas parteiras, curandeiras ou
médicas, eram também as farmacêuticas e as cirurgiãs, mas nunca educadoras, a não
ser no interior do seu próprio lar.

A rua era o espaço do homem, e a única mulher que podia caminhar sem
maiores restrições era a prostituta. De modo que os maridos patriarcais tinham um
verdadeiro pavor de que suas mulheres saíssem à rua, pois era o espaço das novidades,
das quitandeiras, dos moleques e das mulheres de vida fácil. Às senhoras ‘respeitáveis’
cabia-lhes apenas o confinamento em seus lares, onde passavam as tardes tecendo
longos bordados, fazendo tricô, crochê, rendas, ou costurando para a família a fim de
conservarem a dignidade e a classe. Quanto às moças donzelas, assim coma a Bela
Adormecida, deveriam ficar passivamente à espera de um príncipe que viesse tirá-las
de suas casas para transformá-las em numa senhora, esposa de algum fidalgo,
seguindo o exemplo de suas genitoras.

Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de
ocuparem cargos públicos, de assegurarem com dignidade sua própria sobrevivência e
até mesmo impedidas do acesso à educação superior, as mulheres no século XIX, tanto
na Europa quanto no Brasil, ficavam trancadas, fechadas dentro de casa e sobrados
construídos por pais, maridos, senhores. Além disso, estavam enredadas e constritas
pelos enredos da arte e ficção masculina. Virginia Woolf (1997), escritora inglesa que
viveu nas primeiras décadas do século XX, comenta que durante muitos séculos a
mulher serviu de espelho mágico dotado de poder de refletir a figura do homem com o
dobro do tamanho natural. De modo que se transformou na Musa inspiradora e
criatura no contexto da arte literária. Para poder tornar-se ‘criadora’, ela teria que
matar o anjo do lar, a doce criatura que segura o espelho de aumento, e teria de
enfrentar a sombra, o monstro da rebeldia ou da desobediência.

Assim, no Brasil do final do século XIX, quando se iniciam as transformações
nas áreas política e econômica, as poucas escritoras brasileiras começam a buscar
espaço no ambiente cultural. Porém, foi somente na segunda metade do século XX que
as ‘verdades’ sobre a condição do feminino vêm a ser questionadas, tanto na teoria
como na prática, através da crítica feminista. É neste contexto de questionamentos acerca do lugar do sujeito feminino que situamos a produção literária da escritora
sergipana Alina Paim, que já no seu romance inaugural Estrada da liberdade (1944) ela se
antecipara trazendo à tona reflexões sobre a condição feminina sob várias perspectivas,
priorizando sempre a vida das personagens em diferentes espaços: ora nas grandes
cidades como Salvador e Rio de janeiro, ora nas cidadezinhas do interior dos estados
de Sergipe e Minas Gerais, para falar de uma verdade que há muito se encontrava
‘sufocada’.

Segundo Mary Del Priore (2000), a história das mulheres engloba também o
mundo da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura, na sua concepção:
“Trata-se da história do seu corpo envolvendo sua sexualidade, a violência que sofrem
e que praticam; dos seus sentimentos, derrotas e amores” (PRIORI, 2000, p. 8).
Portanto, há que se lançar um olhar atento para as mulheres que escrevem sobre
mulheres, pois trazem, muitas vezes, as marcas de si mesmas, metaforizadas pela ação
da personagem.

Considerando-se a abrangência temática da obra da escritora em tela, que
aborda desde as questões políticas no Brasil (A hora próxima), a educação (Estrada da
liberdade, Simão Dias), A situação do idoso na atualidade (A sétima vez), dentre outras, a
luta das mulheres por melhores condições de vida parece ser o foco principal. Assim,
entendemos que a obra e a vida desta escritora, incansável lutadora pelos direitos não
só das mulheres, mas do ser humano na sua completude, está a exigir uma pesquisa
que lhe dê visibilidade, colocando-a no patamar de algumas escritoras brasileiras já
conhecidas no meio acadêmico, tais como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles,
Raquel de Queiroz, entre outras.

Baseada na perspectiva da escrita que se constrói a partir da “angustia da
denuncia” fomos instigados a perguntar a escritora sergipana em tela, numa entrevista
concedida recentemente em sua residência, se ela se considera uma feminista; de
pronto respondeu: “se sou feminista não sei, mas sei que sou verdadeira. A verdade é o
meu grande compromisso. Estou sempre do lado da verdade, e se isso é ser feminista,
então eu sou”1. As obras de Paim priorizam as personagens femininas, mostram a
problemática da mulher em diferentes situações, e, portanto, as consequências desta no
contexto social e psicológico. Sua escritura se identifica pela consciência de uma
tradição de predecessoras, no estabelecimento de um discurso próprio, transgressor, do
ponto de vista da sociedade ocidental androcêntrica. Sua literatura instaura um
universo próprio à investigação, tamanho é o ímpeto das forças sociais e culturais que
se entrelaçam e integram a sociedade contemporânea, ali representada, o que ‘casa’
com os parâmetros da critica feminista.

Segundo Eliane Campello (1995), o feminismo surge como um método crítico
apropriado para analisar fenômenos sociais e culturais, incluindo textos literários.

[…] Assim, como postulado básico, o feminismo crê que toda escritura
está marcada pelo gênero, o que significa dizer que a mulher ou o homem deixam inscritos na linguagem suas visões de mundo, seus prazeres e desprazeres, suas experiências e circunstâncias, suas
ideologias. (CAMPELLO, 1995, p.100).

As obras corpus deste trabalho Estrada da Liberdade, Simão Dias e A sombra do
patriarca mostram a mulher vivendo em mundos diferentes, porém vitimadas pelas
discrepâncias próprias de uma sociedade patriarcal, que a pune abstendo-a, muitas
vezes, até mesmo da instrução. A representação do poder na narrativa de Alina Paim
se nos apresenta sob diferentes aspectos, principalmente no que concerne à educação e
ao trabalho, assumindo também a forma do poder institucionalizado.

Em Estrada da liberdade Paim apresenta a história de Marina, uma jovem de
dezoito anos que deixa a cidade de Simão Dias, interior de Sergipe, ainda em criança,
para morar com a família da sua madrinha Dona Edite, num bairro operário denso de
problemas, na capital baiana. Após concluir o magistério ela passa a lecionar no
internato particular dirigido por freiras da congregação mariana, onde havia estudado
grande parte da sua vida.

A narrativa flagra o momento em que Marina encontra-se ansiosa acerca do
seu primeiro emprego, desejando descobrir o quanto iria ganhar como professora do
educandário dirigido pelas freiras, ambiente conhecido pela rigidez na forma de
transmitir conhecimentos: “Durante o tempo todo em que falara com a Madre
Superiora sobre o emprego, não lhe saia do pensamento o ordenado, mas… quando ia
perguntar o “quanto” faltava-lhe coragem. O medo se instaurara”. (PAIM, 1949, p. 7).

De acordo com o enredo, Mariana esperava receber “Uns trezentos cruzeiros.
Se não fosse isso, menos de duzentos não poderia ser” (PAIM, p. 11). Porém, ao final
da tarde recebeu da Madre Teresa um envelope em que “havia somente cento e vinte
cruzeiros” (PAIM, p. 11). A narrativa mostra a institucionalização do poder patriarcal,
regido por princípios em que o trabalho da mulher vale menos do que o do homem,
embora exerça a mesma função. Entendemos que o interesse da professora Marina pelo
salário foge um pouco à realidade do Nordeste daquela época, pois, segundo Del
Priore (2000), a ‘boa’ professora estaria muito pouco preocupada com seu salário, já
que “toda a sua energia seria colocada na formação de seus alunos e alunas; esses
constituíam sua família; a escola seria seu lar e, como se sabe, as tarefas do lar são
gratuitas, apenas por amor” (p. 466).

Para muitas jovens, do inicio do século passado, o trabalho remunerado se
colocava como uma exigência face à sua própria sobrevivência, e o magistério
apresentava-se como um trabalho ‘digno’ e adequado para as mulheres, porém sofriam
discriminação por parte da instituição que, quase sempre, as entendiam como
desnecessárias. A necessidade de trabalhar cercava as mulheres professoras de muitos
cuidados e impunha normas no seu modo de agir e de conduzir a vida; ao mesmo
tempo, lançava-as num espaço público, contribuindo para a aquisição de autonomia.

Entretanto, mesmo possuindo os meios para a sua auto-sustentação, a mulher não
podia tomar iniciativas que contrariassem as regras, inclusive não era visto com bons
olhos o fato de ela possuir um nível de instrução mais elevado do que o ‘normal,’ o que era entendida como uma ameaça aos arranjos sociais e à hierarquia dos gêneros de sua
época.

As relações entre feminismo, modernidade e alegoria se estreitam, à medida
que seus princípios convergem para o mesmo fim: romper com os modelos
estabelecidos. Em Estrada da liberdade Paim apresenta um quadro que expressa a
sociedade do Brasil emergente, em vias da industrialização em que a condição da
mulher, embora um pouco melhor em relação àquela do século XIX, é marcada pela
exploração, isto é, nas classes urbanas emergentes, seu trabalho é importante, uma vez
que é necessário não apenas para a sobrevivência da família como para uma
acumulação maior de capital. Segundo Rose Marie Muraro (2000), a mulher do inicio
do século XX é explorada em relação ao homem, “ganha no máximo a metade do que o
homem pelo mesmo trabalho”; fica claro que o capitalismo extrai um lucro com bem
maior do que se todos os operários fossem homens.

No que diz respeito ao romance em tela, a revolta por ocasião do irrisório
salário parece ser a “mola” capaz de promover, do ponto de vista psicológico, o
retorno da personagem principal aos tempos em que era interna num convento em que
todas as meninas eram obrigadas a dormir com “camisolas compridas de madrasto,
confeccionada para o seu próprio enxoval” (PAIM, p. 15), uma exigência da Madre
Superiora, visando a evitar que seus corpos ficassem expostos, uma forma de punir a
sua própria sexualidade.

Ler era uma das poucas formas se ‘vencer’ as normas estabelecidas no
convento, de sentir-se livre e conhecer a vida. Nem toda leitura era permitida, antes
teria que passar pelo crivo da Madre Superiora. Porém, as melhores leituras, as
proibidas, provinham da ajuda das externas, que, de quando em vez traziam livros
‘imorais’: “Marina esta lendo Lucíola, Carmen tinha escondido Baronesa do amor.
Livros perigosos” (PAIM, p. 16). O embate entre as leis do Pai e as necessidades
individuais, representa uma via crusis que se inicia na inadequação das regras que
procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado
e na sociedade.

O cotidiano das jovens no interior do convento é semelhante ao cotidiano de
qualquer instituição escolar, planejado e controlado. Seus movimentos e ações são
distribuídos em espaços e tempos regulados e reguladores. Por isso, tanto Marina
quanto as outras internas estavam sempre ocupadas, envolvidas em atividades
produtivas ou em oração. No convento, espaço do confinamento (às vezes
claustrofóbico), o tempo escolar é um “tempo disciplinar”, como fato cultural, precisa
ser interiorizado. A narrativa mostra que a formação/treinamento das futuras
professoras se faz também pela organização e ocupação de seu tempo, pelas
permissões e proibições, o que contribui para reforçar o antigo mito da opressão.

Para Campbell, o mito é a matriz de que emerge a literatura, tanto histórica
quanto psicologicamente. Em resultado disso, enredos, personagens, temas, e imagens
literárias são, basicamente, elaborações e substituições de elementos similares no mito e
nas lendas populares. Neste sentido, o convento metaforiza o mito da Grande Mãe, no
seu aspecto terrível e castrador.

As teorias da memória racial de Jung (o inconsciente coletivo), da difusão
histórica e da similaridade essencial da mente humana em toda a parte figuram entre
as que se procuraram para explicar a re-emergência dos mitos (e dos arquétipos) na
literatura. O mito proporciona não só a estimulação a romancistas, contistas,
dramaturgos, etc., mas também conceitos e padrões que o crítico utiliza na
interpretação de obras literárias.

A grandeza dos seus estudos não está na explicação da origem das estranhas
fantasias, porém na capacidade de torná-las conscientes mediante a cultura e seus
artefatos culturais: os mitos, as lendas, o imaginário coletivo, a arte, a própria ciência.
As fantasias que dão base à cultura e seus artefatos tornam-se assim a “brecha”, a
forma de comunicação entre a psicose (fantasias psicóticas) e a cultura.

Para aquele psicanalista somente em momentos de um afeto avassalador,
emergem à superfície fragmentos de conteúdos do inconsciente, sob forma de
pensamentos ou imagens. O sintoma inevitável que acompanha tal fenômeno é o da
identificação momentânea do Eu com essas manifestações, que muitas vezes são
renegadas logo depois. Assim, essas imagens trazem uma forte carga (positiva ou
negativa), e se nos apresentam sob forma de “projeções”, enviadas pelos arquétipos,
complexos autônomos e inconscientes.

Jung postula que a “retirada de véus” é necessária para que o processo de
compensação e expansão do ser seja efetivado, e explica:

o sentimento de inferioridade do neurótico enseja uma construção
auxiliar, ou seja, um compensação, que consiste em produzir uma
ficção capaz de equilibrar a inferioridade […] essa linha diretiva
fictícia é um sistema psicológico capaz de ajudar a transformar a
inferioridade em superioridade” (MARONI apud JUNG, 2001, p.76).

Neste sentido, entendemos que as imagens surgidas na narrativa de Paim
confirmam, do ponto de vista simbólico, a tentativa de ‘afastamento’ do eu em relação
às fantasias coletivas, isto é, buscando a sua autonomia.

Ao centrar seu relato ficcional num bairro operário da grande Salvador, Paim
parece atender à proposta comunista de desvelar/revelar as ‘mazelas’ sociais,
buscando a igualdade. Além da vida encarceirada dos conventos, Paim mostra tambem
que nos grandes centros brota, paralelamente à sociedade ‘tradicional’, uma ‘outra’
classe média, mais moderna, composta de intelectuais liberais, funcionários da área
produtiva, respectivamente representados por jornalista de ideias ‘subversivas’, pelo
acadêmico de medicina Paulo, além dos diretores das escolas e de alguns funcionários
de empresas que representam a sociedade de consumo, portanto, os novos emergente.
Esses detalhes a que se entrega Alina Paim no seu fazer literário demonstra haver
identidade de interesses entre a mulher-artista e a visão alegoria de mundo, pois, ao
tentar investigar o que parece ‘invizível’ (pois encontra-se escondido por traz dos
muros da tradição) explodem o continuum da história.

O romance Simão Dias, trata da história da personagem Maria do Carmo, órfã
de mãe aos seis anos e entregue aos cuidados das três tias solteronas, logo após a sua morte. Estas, por sua vez, não tendo recebido quase nenhuma instrução educacional,
considerando-se que o pai a entendia como algo ‘desnecessário’ para mulheres,
entregavam-se tanto ao trabalho na máquina de costura e à confecção das rendas,
quanto aos mexericos nas calçadas das vizinhas, suas diversões. Iaiá e Naná, as mais
velhas, não dispensavam nenhum carinho para com a pequena recém chegada,
colocando-a muitas vezes de castigo, submetendo-a a uma educação rígida, o que
demonstra que os ‘laços de família’, elemento estruturante das narrativas de Paim, são
atados a partir do poder centralizador do Pai. Tais personagens representam o
desdobramento do velho Bernardino.

A narrativa mostra, igualmente, que, além das tarefas de casa, a menina
dividia-se entre a escola da professora Otaviana e as aulas particulares da professora
Luíza. Otaviana representa a tradição, quase sempre ríspida e indelicada no trato para
com as crianças, era admirada por todas as famílias, afinal “trazia os pequeninos na
linha” (PAIM, p. 26). A outra era dócil, educada e amiga de todas. Embora casada com
Teodoro, um próspero comerciante, dedicava parte de seu tempo preparando as
crianças para o exame de admissão, na capital sergipana. Neste contexto percebe-se o
engajamento social da autora (uma também professora da rede pública no estado do
Rio de janeiro) através da relação professor/aluno, metaforizado pela personagem
Luiza.

A narrativa apresenta Luiza como uma mulher firme nos seus propósitos, de
modo que a experiência da adolescência na capital baiana parece tê-la deixado mais
aberta, compreensiva. Ama a vida e luta por melhores condições, no que diz respeito
ao ensino, intenta mesmo ‘humanizá-lo’. Na contramão desta visão de mundo está a
velha professora Otaviana, ensimesmada e orgulhosa pelo o reconhecimento das
famílias em relação à sua conduta, afinal trazia “as crianças na linha”(PAIM, p. 37);
porém, não se importava com a fome ou a pobreza de que eram vítimas.

Em A sombra do patriarca delineia-se também o perfil da escritora
comprometida com a história, a partir do ponto de vista feminino, dando voz às
personagens que são capazes de subverter os padrões sociais e estruturais e instalar o
caos na ordem patriarcal do mundo rural nordestino. Trata-se de um romance muito
bem escrito, que apresenta um elenco de personagens diversificado, vivendo em um
mundo que parece pertencer tão somente ao patriarca do engenho Fortaleza, o Sr.
Ramiro. O núcleo dramático está centrado na visita que Raquel, sua sobrinha e a
protagonista central faz à fazenda. Chegando lá, a moça se depara com um mundo
obscuro e opressor, bastante diferente daquele que conhece na cidade grande, em que a
família urbana já se ajustou aos novos papeis que as transformações sócio-econômicas
impuseram às mulheres. Dentre essas transformações destaca-se a extensão da
instrução a crescentes contingentes femininos, alargando, assim, os horizontes culturais
da mulher.

A leitura dessa obra mostra as diferentes faces da mulher, dentre elas
destacamos o ‘papel da esposa’ do ponto de vista do imaginário da sociedade
patriarcal, que a concebe como mãe extremosa, filha obediente, visualizada como pura,
santa, alma da família, agente educador da infância. D. Amélia, esposa do patriarca, e, portanto, a avó de Leonor, personifica a mulher socialmente aceita e desejada. A
narrativa descreve a dificuldade de Raquel em compreender como D. Amélia
conseguira defender a vivacidade do olhar no decorrer de tantos anos subjugada ao
lado do marido, “sempre asfixiada por sua vontade de ferro que não perdoava ter-lhe
dado uma filha em vez de um menino tão desejado. Tia Amélia era mansa e sorrateira.
Vivia para o marido.” (PAIM, p. 17). Segundo Susan Besse, entre os deveres das
mulheres está o de “serem permanentemente agradáveis aos seus maridos. Ao tornar
essa tarefa sua “principal preocupação”, seriam capazes de realizar “milagres” e teriam
garantida a felicidade conjugal (BESSE, 1999, p. 78).

Na sociedade patriarcal a figura da avó era fundamental, pois cabia-lhe a
função de passar conhecimentos para as gerações mais novas, tais como aulas de piano,
pintura e prendas do lar; a narrativa destaca a importância da matriarca para manter
firme as normas dentro da casa grande: “vovó Amélia tem muita paciência para esses
trabalhos. […] todo ano, quando regresso das férias levo para o colégio dois, às vezes
três casacos de lã” (PAIM, p. 37). Teresa, sua filha e mãe de Leonor era igualmente
prendada a auxiliava quando podia: “Antigamente, quando sua vista era perfeita, ela
bordava muito. Grande parte dos enxovais das crianças foi feita por ela” (PAIM. P. 37).

A educação tornou-se no século XX, conforme vimos, uma necessidade prática
tanto para as mulheres urbanas quanto para a sociedade do Brasil em processo de
rápida urbanização e industrialização. Nas classes médias urbanas, as famílias
começaram a encarar a educação feminina pelo menos até a escola secundária como
essencial para o preparo das filhas ao enfrentar as novas contingências econômicas da
vida. Em A sombra do patriarca Alina Paim apresenta um quadro da educação ‘ideal’
vigente no nordeste rural ainda compatível com as preocupações domésticas, ou seja,
não voltada para o conhecimento das ciências. A narrativa sugere que este tipo de
educação não satisfaz algumas mulheres mais jovens, como é o caso das personagens
Raquel e da sua prima Leonor que sonhavam ser Médica e advogada, respectivamente.
Todavia, não recebiam o apoio do Tio Ramiro que a adverte: “Raquel você deve sentir-
se feliz de ser professora. Seu pai fez muito sacrifício para educá-la. […] advocacia não
foi feita para mulher. Nem todas as profissões são próprias para uma moça” (PAIM, p.
46). Ser educador, pareceser ser uma realidade profissional apenas para os homens, de
modo que Raquel deveria considerar-se uma mulher de ‘muita sorte’.

A construção da identidade feminina encontra-se mediada por um sistema de
representações culturais de características patriarcais e androcêntricas, tidas como
naturais, ou seja, fundadas para que essa construção se efetive. Weber considera a
dominação como “a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou
todas) dentro de um determinado grupo de pessoas” (WEBER, 2004, p. 139). Entre as
diferentes categorias de dominação, de acordo com seu fundamento primário, é a
tradicional que auxilia no entendimento da situação feminina na América Latina. Na
dominação tradicional. “a legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e
poderes senhoriais tradicionais. […] A ele se obedece em virtude da dignidade pessoal
que lhe atribui a tradição” (WEBER, p. 148). A sociedade patriarcal tem na dominação
tradicional seu estatuto de legitimidade. Nesse modelo de sociedade, o poder decisório é, geralmente, regulado pala tradição ou depende do arbítrio do senhor, dessa maneira,
o espaço ocupado pela mulher na esfera do poder é praticamente inexistente.

No centro deste conflito e na contramão do patriarcado está a professora
Gertrudes, grande incentivadora de Leonor, que, além de estar ligada o Partido
Comunista, conforme afirma a narradora ao deflagrar o pensamento da professora em
tela: “ Sem saber, eu também era comunista Raquel” (PAIM, p. 205), possui uma forte
personalidade, e conhece a origem de parte dos males sociais, oriundos, precisamente,
da ausência de uma educação moral efetiva, a única capaz de curar as chagas
gangrenadas da sociedade. Por educação moral entende aquela personagem “a
ampliação da solidariedade humana, da abertura de espaço para o Outro, do amor e da
virtude entre as pessoas” (PAIM, p. 49-50).

Os discursos das professoras Marina, Luíza e Gertrudes parecem assumir o
caráter do desabafo autoral, considerando-se que Alina Paim foi, durante muito tempo,
militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B). A romancista lança um “novo
olhar” sobre a realidade feminina centrada no nordeste brasileiro na tentativa de
conscientizar suas leitoras acerca dos males sociais que arrastam a mulher para a
condição de explorada, bem como indicar-lhe o comportamento que deveriam ter.
Apenas  é preciso observar  este comportamento parece estar longe de ser o da
revolta; ao contrário, ele consiste precisamente no reforço de um ideal feminino de
conquista de espaço.

Não obstante o fato de alguns mitos entenderem a mulher como um ser
misterioso, associando-a a uma imagem demoníaca, fraca, serpentílica, incapaz, por
ocasião das transformações do seu corpo, a autora intenta desmitificar essa fragilidade,
usa a literatura como o lugar da denuncia contra o poder, tanto no seio da família
quanto institucionalizado − representado pelas diretoras das escolas, pela professora
Otaviana (Simão Dias) e, igualmente, pelas Freiras do educandário (Estrada da liberdade)
− que prima por entendê-la como uma ‘célula menor’. Através das ações das
personagens “transgressoras”, Alina mostra-se preocupada em divulgá-lo, fazendo
cumprir parte da função pedagógica da literatura, isto é, repensar a educação de modo
que seja um direito de todos, independentemente de sexo, raça e classe social.

Ao tecer seu discurso de denuncia, Paim parece convencida da capacidade
intelectual e da superioridade moral feminina, pois a ternura e a disposicão para amar
 elementos indispensáveis à mulher no imaginário patriarcal  seriam inerentes e
inatos a ela. Mostra que não basta apenas ser possuidora de tais dons, mas, que é
preciso vivenciar uma educação “culta e fortalecida na prática do dever e da razão”
(PAIM, p. 198), para que a mulher saiba como utilizar esta “superioridade moral” em
benefício do Outro.

A situação de ‘dependência’ perdurou durante muito tempo, porém, com o
avanço das condições econômicas, sociais e culturais, com a evolução das discussões
sobre a identidade do sujeito feminino e com o reconhecimento de práticas discursivas
fundamentadas na desconstrução de um binarismo androcêntrico, a posição da mulher
foi se transformando gradativamente. A narrativa de Paim, no entanto, mostra que as
representações originárias de um passado de opressão e dependência continuam a integrar o imaginário e tendem a mediar a relação do sujeito com a sociedade. É nesse
contexto que o pensamento feminista da autora se impõe como uma das características
mais proeminentes da contemporaneidade e como possibilidade de colocar em
evidencia a voz desse segmento desqualificado, recuperando sua significação e sua
realidade histórica.

Assim, os romances de Alina Paim propõem através da tríade formada pelas
personagens Marina, Luíza e Gertrudes, um “novo modelo” de mulher, aquele que se
encontra no extremo oposto dos ideais da sociedade patriarcal, revelador da
verdadeira natureza feminina capaz de desinfetar sua alma dos falsos discursos
teóricos que atordoavam as mentes femininas com promessas e, ao fim, mantinham-
nas submissas aos seus caprichos através de uma educação voltada para a futilidade.
Essas personagens que se inscrevem como a ruptura da autora com o modelo
tradicional, fazem cair por água a abaixo os mitos da fragilidade da mulher,
considerando-se que trazem, a partir das suas transgressões, imagens míticas, oriundas
do inconsciente coletivo, capazes de mostrar o seu elevado grau de segurança em
relação a si mesma.
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1 A entrevista a que nos referimos foi concedida em fevereiro de 2009, na residência da autora, por
ocasião do nosso projeto de pesquisa, vinculado ao GELIC- Grupo de Estudos de Literatura e de Cultura.

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