Condor, o Mercosul e as ditaduras
Foi em Montevidéu, no fim dos anos 70, que vi de perto, pela primeira vez, o rastro e o rosto da “Operação Condor” na América Latina. Então, o continente era uma colcha de ditaduras cujos organismos de repressão atuavam em estreita colaboração – sem freios nem fronteiras. Antes, apenas vislumbrara a ferida em cenas fugazes de “Estado de Sítio” e “Missing”, filmes de Costa-Gavras, que denunciavam o regime de Pinochet e a presença de agentes brasileiro no Chile, dando aulas de como operar instrumentos de tortura. Conversava com exilados brasileiros no Uruguai, em um Café no centro da capital. Um deles (não estou certo se o coronel Dagoberto Rodrigues ou o jornalista Paulo Cavalcante Valente) me bateu no ombro e perguntou: “Você sabe que a menos de 40 metros daqui fica a farmácia dos pais de Lílian Celiberti, seqüestrada no Rio Grande do Sul por agentes brasileiros e uruguaios, e entregue à ditadura daqui junto com o marido e dois filhos?”
Não sabia da Drogaria e de seus proprietários, que mais tarde visitei levado por Paulo Valente, mas conhecia bem a história do casal uruguaio Lilian Celiberti e Universindo Diaz. Trabalhava na época no Jornal do Brasil e não perdia nenhum detalhe do caso de seqüestro político que abalou os alicerces da ditadura no País em 1978. Representou, também, um momento histórico de coragem e empenho investigativo da imprensa no Brasil.
Luiz Cláudio Cunha, diretor da sucursal da revista “Veja” em Porto Alegre, recebeu um telefonema anônimo sobre uma ação de seqüestro que estaria acontecendo naquele instante em apartamento de um edifício da capital gaúcha. Sem hesitação, o repórter saiu da redação para checar tudo, acompanhado do fotógrafo João Batista Scalco e logo estaria diante do inesperado que alimenta os grandes feitos jornalísticos.
No local apontado pelo anônimo, Luiz Cláudio e seu colega acabaram por testemunhar um fato com potência explosiva de muitos megatons, cuja seqüência e conseqüências iriam ajudar no esclarecimento do seqüestro e proteção das vítimas, além de desnudar para a opinião pública a “Operação Condor”, o sistema de cooperação entre as ditaduras do Brasil, Uruguai, Chile, Argentina, Bolívia e Paraguai, que atuava como uma espécie de Mercosul da tortura.
É trágico o saldo dessa operação que ganhou repercussão mundial com a prisão de Pinochet na Inglaterra (os Estados Unidos são acusados de ajuda técnica e financiamento desde o tempo dos filmes de Costa-Gavras). O ex-secretário de Estado Henry Kissinger é apontado como “autor intelectual” da operação cujos escombros voltam a ser revolvidos pela justiça italiana, a partir do pedido do promotor Giancarlo Capaldo, de prisão de 146 figuras da países sul-americanos, acusadas de participação direta na “Condor”.
Do rol de acusados, constam 13 brasileiros, alguns já falecidos como o ex-presidente da República, João Figueredo, cabeça da lista. Um advogado uruguaio já havia solicitado a prisão de Kissinger, bem antes do qüiproquó atual. Na conta da “Operação Condor” pesa cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na Argentina, entre 3 e 7 mil no Chile, mais de 200 no Uruguai, além de algumas centenas de presos e torturados pelas ditaduras em conluio.
O seqüestro do casal de uruguaios e de seus dois filhos, talvez não possa ser considerada a história mais dramática nesse cinzento universo de perdas e danos. Mas é, seguramente, um dos casos mais significativos e um dos raros em que agentes de serviços secretos da operação foram apanhados com o rabo de fora. Além disso, é um registro importante para a história de como militares brasileiros serviram ativamente em outros países, sobretudo na organização dos aparelhos repressores, a exemplo da montagem da DINA, o serviço secreto de Pinochet.
Na passagem por Montevidéu, em abril de 79, referida no começo dessa linhas , o Caso dos Uruguaios¿ ainda merecia muitos espaços e repercutia intensamente nos jornais e revistas sul-americanos, com destaque para o notável e corajoso trabalho jornalístico de Luiz Cláudio Cunha e seu colega Scalco, na Veja; do repórter José Mitchell, pela sucursal do JB em Porto Alegre, e da imprensa brasileira em geral.
O episódio é tema do documentário de longa metragem “Condor”, do cineasta e jornalista Roberto Mader, vencedor dos “Kikitos” do “Prêmio Especial do Júri” para o filme e do “Prêmio Qualidade Artística”, para a trilha sonora de Vitor Biglione, no mais recente Festival de Gramado. O realizador abre espaço para depoimentos de personagens dos dois lados do caso. Um deles é a própria Lílian Celiberti, que sobreviveu para contar a sua história. Há depoimentos também de Jarbas Passarinho, ministro em três governos militares no Brasil, e até do general Manuel Contreras, tido como braço direito do ditador Augusto Pinochet, no Chile.
Vale a pena ver, ainda mais depois que o promotor italiano, Giancarlo Capaldo decidiu pedir prisões de implicados nesse carrossel latino-americano do seqüestro e da tortura, quebrando o silêncio e a omissão que em geral levam à impunidade. E sepultam no esquecimento horrores como os praticados pela Operação Condor.
Vitor Hugo Soares é jornalista e escreve aos sábados no Blog do Noblat.
Fonte: IG Noticias