O risco da verdade
Verdade é risco. Ela é imprevisível. Não há como saber onde está, mesmo que possa ser incessantemente buscada. Verdade é menos um lugar e mais uma construção. Em sua construção entram em cena vários fatores e condições. Mas, se é construção, também pode ser desconstrução, ou seja, a negação de verdades nem sempre resulta em outras em seu lugar. Nisso consiste a força libertária e libertadora da verdade: verdade e liberdade se aproximam.
Um exemplo clássico disso é o debate renascentista sobre o geocentrismo e sua alternativa, o heliocentrismo: o que por séculos fora tido por verdade passou por uma gradativa desconstrução e pela construção de nova verdade. Observe-se que tanto a construção quanto a desconstrução da verdade podem ser impedidas, enviesadas ou obliteradas. Nisso consiste não a desconstrução, mas a destruição da verdade. Enfim, a verdade não pode ser dada definitivamente por certa e, sequer, por definitiva. É sempre processo, busca.
A memória é um dos componentes e dos condicionantes da verdade. Mas não o único. O fato é que, sem memória, sequer seria possível construir – ou mesmo desconstruir – verdade. Em termos históricos e societais, a memória é constitutiva da verdade, mais do que o contrário. Ou seja, é a memória da história pessoal e coletiva que ajuda a indivíduos, a grupos sociais e à própria sociedade como um todo a construir verdades de suas próprias vivências. Neste sentido, somente as vivências significativas passam a ser parte da memória e, daí, insumos para a verdade histórica.
Memória e verdade são constitutivas da justiça como realização de condições para a efetivação da dignidade humana. A justiça exige o reconhecimento das injustiças e de suas vítimas, aqueles/as que sofreram a injustiça. Sem isso, a justiça é vazia. Por isso, sem que as próprias vítimas possam dizer sua palavra, sua verdade, recorrendo para isso à memória dos fatos que as levaram à situação de vitimização, não há justiça. O querer justiça como memória e verdade das vítimas é um direito das próprias vítimas, mas não só, ele também é de todos os seres humanos, até porque esta é a forma efetiva de engajar a todos/as para que não sejam produzidas novas vítimas.
Por isso, o direito à memória, à verdade e à justiça se constitui num dos direitos humanos mais basilares para a convivência em sociedade. O nunca mais a todo e qualquer tipo de violação de direitos, a todo tipo situação que produz vítimas, a todo tipo de inviabilização do humano, é a expressão positiva do queremos um mundo justo e humanizado para todas as pessoas, indistintamente.
Trabalhar positivamente com esta concepção parece ser o receio dos que têm se manifestado contra a Comissão Nacional da Verdade e, especialmente, daqueles que por muito tempo foram contra e que recentemente têm se manifestado a favor dela. Os setores conservadores representados no Congresso Nacional, historicamente contrários a qualquer verdade que não fosse aquela por eles próprios produzida, sempre opositores a qualquer Comissão da Verdade, os mesmos, ou ao menos vários deles, que no debate sobre o recém-lançado PNDH-3, nos primeiros meses de 2010, vociferavam contra ele, agora votaram a seu favor, na Câmara Federal, no último dia 21/09/2011, e no Senado Federal, no último dia 25/10/2011, em ambos os casos por acordo.
É a posição destes, não a dos que a defenderam sempre e que agora criticam o texto aprovado com razões legítimas e consistentes, que deve ser estranhada: o que os teria tornado tão confiantes numa Comissão que até há pouco lhes soava ameaça? Afinal, o que mudou? Os conservadores já não o são? Ou teriam os que se diziam não-conservadores se tornado mais conservadores, gerando uma pactuação cômoda, aceitável até aos velhos conservadores?
Um pouco de memória pode ajudar. O editorial de um dos porta-vozes do conservadorismo, o jornal O Estado de São Paulo, de 02/10/2011, começava dizendo: “A criação da Comissão Nacional da Verdade, proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2009 e aprovada pela Câmara dos Deputados no último dia 21 (será votada agora no Senado), tem como objetivo precípuo investigar e divulgar a ‘verdade histórica’ sobre a ditadura militar de 1964/1985 para ‘promover a reconciliação nacional’”. Mais à frente dizia: “O projeto de criação da Comissão da Verdade – que agora tramita no Senado – acabou sendo escoimado de radicalismos unilaterais e se concentra agora na ideia do estabelecimento de um grupo de sete pessoas nomeadas pela Presidência da República que se dedicará, pelo prazo de dois anos, a levantar informações sobre a chamada ‘guerra suja’, visando, principalmente, apurar o paradeiro de brasileiros desaparecidos ou as circunstânciasem que pessoas foram mortas naquele entrevero”.
Concluía dizendo:
”A maneira como a Comissão da Verdade está sendo constituída parece indicar que o bom senso afinal prevalecerá, em benefício do objetivo maior de reconciliação nacional e da construção de um futuro assentado em bases de convivência democrática. A última tentativa de impor essa questão, em nome de uma visão estreita de direitos humanos, um tratamento sectário e unilateral, foi derrotada essa semana na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Projeto de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP), que previa a revisão da Lei da Anistia e a possibilidade de levar a julgamento agentes do Estado responsáveis por mortes, torturas e desaparecimento de opositores do regime militar, foi rejeitado por expressiva maioria. Por mais dolorosa que seja a memória de episódios da ditadura, a Lei da Anistia colocou um ponto final nessa questão. Resta apenas o trabalho de recompor historicamente esse período de triste memória da vida nacional, até para evitar no futuro a repetição dos mesmos erros. É a missão que caberá à Comissão da Verdade”.
Este mesmo jornal, em Editorial de 10/01/2010, dizia que o PNDH-3, de onde teria sido dado o start para a Comissão da Verdade, era um “roteiro para o autoritarismo”: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em dezembro um roteiro para a implantação de um regime autoritário, com redução do papel do Congresso, desqualificação do Poder Judiciário, anulação do direito de propriedade, controle governamental dos meios de comunicação e sujeição da pesquisa científica e tecnológica a critérios e limites ideológicos”, incluindo, mais adiante: “A apuração das violências cometidas pelos agentes do regime militar e a revogação da Lei da Anistia são apenas uma parte desse programa – a mais divulgada, até agora, por causa da reação dos comandantes militares à redação inicial do decreto”, sendo que vai concluindo: “O governo também deverá incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares voltados para a educação sobre direitos humanos e para a reconstrução “da história recente do autoritarismo no Brasil”. Será um autoritarismo cuidando da história de outro. As intenções políticas são claras, embora escritas numa linguagem abstrusa”.
Incrível que a mesma Comissão da Verdade, que antes compunha parte do pacote que constituía o “roteiro para o autoritarismo”, agora se converta em alguma coisa na qual “o bom senso afinal prevalecerá”. Segundo o editorialista, a memória dolorosa dos episódios da ditadura não será tarefa da Comissão, dado que dela foi dado ponto final pela Lei da Anistia, caber-lhe-ia “apenas o trabalho de recompor historicamente esse período de triste memória da vida nacional”. O que seria então papel da Comissão? O que significaria “apenas recompor” e não fazer a “memória de episódios da ditadura”? Será que a Comissão da Verdade recentemente aprovada foi de tal forma bem amarrada que teria conseguido até “redimir” os PNDH-3? O que significaria ter sido derrotada “uma visão estreita de direitos humanos, um tratamento sectário e unilateral”?
A posição do Estadão não é a única nesta linha, infelizmente. O fundamental, todavia, reiteramos, é manter aberto o processo de reflexão sobre o significado profundo da Comissão Nacional da Verdade. E seu sentido profundo está exatamente em ser um espaço capaz de construir uma verdade sobre o período da ditadura civil-militar brasileira e, por outro, em desconstruir algumas das verdades repetidas – nem tão verdadeiras assim – pelos que têm pavor de verdades que não sejam as deles próprios. Ela não terá alcance para fechar o tripé, pois dela não se poderá esperar justiça. Mas, se ela for capaz de produzir verdades com base na memória das vítimas, certamente abrirá caminho para que venha também a justiça.
Até porque, todos quantos lutamos por direitos humanos sabemos desde há muito que uma coisa é a luta por direitos e outra é o que de direitos o status quo reconhece. Lutar por direitos tem sido e continua sendo a tarefa precípua, inclusive no caso da Comissão da Verdade. Somente a luta dos diversos sujeitos de direitos é que fará possível tanto a verdade, quanto a memória e, acima de tudo, a justiça.
A verdade é risco, sim, porque ela põe em movimento a liberdade. A liberdade em movimento destrói a repressão, mesmo que isso demore algum tempo. Correr o risco da verdade se justifica quando se deseja que a justiça, a liberdade e a verdade caminhem juntas. Para isto estivemos, estamos e continuaremos a postos! Este é o risco de quem se propõe a fazer da luta por direitos humanos uma luta permanente. Para estes e estas, a verdade não é um risco, ou é um risco que vale a pena correr!
Fonte: Carta Maior