Uma região de florestas exuberantes, a serra dos Aimorés era disputada pelos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais desde 1903. A região permaneceu praticamente despovoada até a década de 1930. Levas de agricultores sem terra, provenientes primeiramente da Bahía e de Minas Gerais, para lá se deslocavam, em busca de terras para plantio.

Como resultado da construção da Ponte Florentino Ávidos, em Colatina, permitindo a fácil transposição do rio Doce, inicia-se o fluxo de capixabas para a ocupação daquela que foi a última fronteira agrícola a ser incorporada ao processo civilizatório.

O auge da ocupação ocorre na década de 1940, quando é registrado um acentuado crescimento da população da área. Por essa época, um pregador visionário, oriundo da Bahía, aporta à região. De fala fácil e com um discurso fortemente religioso, propõe a construção do paraíso na sua sede verde, a serra dos Aimorés.

Agrega, em função da dualidade de poder e, ao mesmo tempo, pela ausência dos mesmos, a organização de um ente federativo que chamar-se-ia Estado União de Jeovah.

Chega mesmo a estabelecer os rudimentos de uma organização estatal, com sede de governo, autoridades, símbolos, bandeira, hino oficial e, inclusive, destacamentos armados, a força armada do novo estado.

A chegada do pregador, o baiano Udelino Alves de Matos, deu-se em 1948, ano no qual inicia suas atividades e a sua pregação.
Em 1953, o movimento jeovense é liquidado. Udelino desaparece, ou é “desaparecido”. Contudo, permanecem os fatores que engendraram a atuação posterior dos atores sociais presentes na área, tanto camponeses e grileiros, quanto madeireiros e pecuaristas.

No contexto político da época, no ambiente de certas liberdades democráticas do período Juscelino, inicia-se a organização de entidades representativas dos interesses do campesinato. Assim, em 1957, com base nos pioneiros da ocupação, surge a União dos Posseiros de Cotaxé, imprimindo uma marca política e consciente a um movimento inicialmente de natureza nitidamente messiânica e espontânea.

Mesmo desaparecido Udelino e seu sonho de construir o “União de Jeovah”, permanecem os fatores que determinarão o recrudescimento da luta pela terra naquela região. Permanece irresolvida a questão da propriedade da terra, objetivo maior dos posseiros. Também permanecem a violência institucional e a violência social.

O aparato de Estado permanece presente e atuante na defesa de grileiros e seus aliados, os madeireiros e pecuaristas. Permanecem na área muitos posseiros, inclusive pioneiros da ocupação, e seu oponente de classe, os grileiros, pretensos proprietários das glebas.

Posseiros e grileiros, além de seu séquito de jagunços, não raro integrantes da força pública, constituir-se-ão nos ingredientes que propiciarão os acontecimentos ulteriores, mesmo desaparecido Udelino.

No arejado ambiente político do pós-Estado Novo (malgrado Dutra!) e, principalmente, no período JK, grupos e partidos políticos com visão social mais avançada, entre eles o PC do Brasil, buscam inserir-se entre os destacamentos mais combativos do campesinato de então. Na década de 1950 passam a ocorrer intensas movimentações camponesas no nordeste, no centro e no sul do país.

Ocorrem as lutas pela terra na região de Porecatú, no Paraná, e na região de Trombas e Formoso no estado de Goiás. As Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião e atuando principalmente em Pernambuco, levantam a bandeira da reforma agrária, com o seu conhecido lema, mais como expressão de retórica que de reais intenções, de “reforma agrária, na lei ou na marra”.

É neste contexto que o PC do Brasil, no Espírito Santo, faz sua aparição no cenário das lutas camponesas na região de Ecoporanga, município criado em 1955, particularmente nos distritos de Cotaxé, Estrela do Norte e Imburana.

A partir daí, os posseiros passam contar com orientação política e organizativa, diretivas para a produção agrícola e comercialização de madeiras, além das providências para a autodefesa, nos vários casos de ataques dos grileiros e seu exercito particular de jagunços.

A presença e a ação conteudista e organizativa do PC do Brasil conduz à participação dos posseiros de Cotaxé na organização, em novembro de 1957, da Federação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Espírito Santo (FLATAES), no bojo do I Congresso Estadual dos Lavradores. Cinco anos mais tarde, em junho de 1962 e com o decidido apoio do Conselho Sindical dos Trabalhadores do Espírito Santo (CONSINTRA-ES) e outros sindicatos associados, realiza-se o II Congresso Estadual dos Lavradores. Ao final deste, e nas condições da nova legislação sindical rural do Governo Jango, é organizada a Federação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Espírito Santo (FLATAES).

O conflitos na área se exacerbam no período de 1959 até 1962, com seu auge em abril daquele mesmo ano. Mais uma vez a Polícia Militar do Espírito Santo é acionada e passa a atuar com extrema violência contra os posseiros.

Entre estes, também recrudesce a disposição de resistir às arbitrariedades. Além da resistência, ocorrem reais choques entre posseiros e jagunços, choques à mão armada e resolvidos à bala. A violência da ação policial suscita, inclusive, a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, uma CPI, na Assembléia Legislativa do Espírito Santo no ano de 1962.

A ação dirigente do Partido Comunista, a partir de 1955, era responsabilidade do dirigente comunista camponês Enéas Pinheiro, o qual dava assistência à organização do Partido no município de Ecoporanga. Com o golpe de abril, Enéas, agora do PC Brasileiro, passa à clandestinidade. Ainda em 1964, com a presença já assinalada do PCdoB na área, este envia para a região um quadro camponês e garimpeiro, natural de Minas Gerais, aqui conhecido pelo nome de Sampaio.

Sampaio é deslocado e, para seu lugar, vai o secundarista cearense, já na clandestinidade, lá conhecido como Parangaba, aqui conhecido por Augusto, cujo nome legal é Carlos Augusto Lima Paes. Parangaba acompanha o último líder dos posseiros, Benício Jacinto da Silva, no final do ano de 1966 até o norte do país. Este foi o dobre de finados para a epopéia que ocorreu, por quase 20 anos, no território do estado do Espírito Santo.

A transição de movimento messiânico para movimento político e organizado é o problema central que o trabalho propõem-se elucidar. Em que circunstâncias isso ocorreu, quais foram os fatores subjetivos que se fizeram presentes na área, ao lado dos fatores objetivos, que transitaram de uma etapa a outra, os quais permanecem existindo mesmo depois de liquidada a fase jeovense, qual o fator que interfaceou a transição, estas as questões, esta a problematização proposta no projeto de pesquisa.

Mediante uma observação algo acurada dos textos dos principais pesquisadores e autores que estudaram este quase desconhecido episódio da nossa história, este autor conclui, em apresentação esquemática, que:

1 – O movimento de Cotaxé consistiu em um único movimento, com duas etapas nitidamente distintas; a etapa messiânica e espontânea e a etapa política, consciente, organizada e articulada com outros movimentos sociais, o sindicalismo urbano em destaque;
2 – Importantes e fundamentais atores sociais, como posseiros, grileiros e jagunços, a violência social e institucional, além da irresolvida questão da propriedade da terra, transitam de uma etapa a outra, mesmo após o desaparecimento do líder messiânico Udelino Alves de Matos e a liquidação de seu projeto de construção de um novo ente federativo na região contestada por Minas Gerais e Espírito Santo, nos ermos da Serra dos Aimorés, o estado “União de Jeovah”;
3  –  Além das permanências, novos atores políticos fazem sua aparição no cenário do extremo noroeste. De natureza conteudista e organizativa, a aparição do PC do Brasil torna-se o fator que interfaceia a transição de uma etapa a outra, principalmente após a criação do município de Ecoporanga, em 1955 e a organização da União dos Posseiros de Cotaxé em 1956.  Este fator político garante a continuidade, sob nova forma e conteúdo, do movimento genericamente chamado “Movimento de Cotaxé” pelo autor da pesquisa.
 

Destarte, Cotaxé foi, na história do Brasil, o único movimento que apresentou a singularidade de haver transitado de uma etapa a outra, com diferenças marcantes entre as duas, sendo esta passagem interfaceada por um agente político, o PC do Brasil, o PCB, e, após 1962, o PC do Brasil, o PCdoB, que se fizeram presentes no cenário dos acontecimentos seguindo diretrizes políticas de âmbito nacional em ambos os casos.

Tendo seus primórdios na meação da década de 1940, este movimento se estende até 1966 quando, sob as condições de existência da ditadura militar, os últimos líderes dos posseiros encaminham uma solução negociada com o então proprietário da área, sendo indenizados pelas benfeitorias e transferindo-se, em seguida, para o norte do país. No tempo, atravessa os governos Eurico Dutra, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, adentrando-se pelo período da ditadura militar.

Torna-se, então e por isso mesmo, o mais longevo dos movimentos camponeses chamados rústicos, na nossa história, ainda que praticamente desconhecido mesmo no Espírito Santo. Recentemente, em livro organizado pelo historiador Rubim Aquino, o movimento de Cotaxé, pela primeira vez, ultrapassa as divisas do Espírito Santo, ganhando uma referência na historiografia brasileira.

Em terras capixabas ocorreu, então, o mais longevo dos movimentos messiânicos e também o único que, por ação de atores políticos, transita de uma etapa messiânica e espontânea para uma etapa política e consciente.

O Movimento de Cotaxé, suas premissas e desfecho, são abordados no capítulo 2 da monografia que ora disponibilizamos a possíveis interessados pelo tema, no site do Instituto Histórico e Geográfico de Colatina (IHGC). Seu título explica-se por si: Lutas camponesas no Espírito Santo – Do “Estado União de Jeovah” à União dos Posseiros de Cotaxé: Transição de movimento messiânico e espontâneo a movimento político, consciente, organizado e articulado –

Aspectos singulares: Transição e Longevidade.
Marcadamente incomum e singular, Cotaxé, todavia, permanece desconhecido e ausente da historiografia.

Parafraseando Luzimar Nogueira Dias, o primeiro autor a abordar de forma mais abrangente o movimento de Cotaxé, esperamos que este trabalho possa, ainda que modestamente, contribuir para “resgatar a memória do Espírito Santo e compreender seu presente”, significando uma contribuição, ainda que modesta, para divulgar um dos mais belos momentos das lutas do povo capixaba.
                             

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Referências bibliográficas principais:
AQUINO, Rubim Santos Leão de, et allii. Sociedade brasileira – uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. 2ª. ed. Rio de Janeiro. Record, 2000
DIAS, Luzimar Nogueira. Massacre em Ecoporanga: Lutas Camponesas no Espírito Santo. 1ª. ed. Vitória: Cooperativa dos Jornalistas do Espírito Santo,1984
VILAÇA, Adilson. Cotaxé: Romance do Efêmero Estado “União de Jeovah”. 2ª. ed. Vitória: Textus, 1999
______. Cotaxé, A Reinvenção de Canudos. 1ª. ed. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 2007.