A memória encaixotada sai das trevas
Foram dias de tensão, medo e esperança, na Argentina sombria daquele setembro de 1979. Quando tudo começou, na segunda-feira dia 6, havia lua cheia no céu. Quanto terminou, na segunda dia 20, havia lua minguante.
Durante esses quinze dias, seis funcionários da OEA estiveram em Buenos Aires para ouvir denúncias e depoimentos sobre a situação no país. Tinham esperado quase um ano – de dezembro de 1978, ano do Mundial disputado na Argentina, a setembro de 1979 – para que a visita de inspeção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, devidamente autorizada pela ditadura, se concretizasse.
Sempre havia alguma pendência a ser resolvida, e quando essa pendência se resolvia, surgia outra.
Foi uma visita tumultuada: desde antes da chegada dos membros da Comissão, a ditadura militar lançou uma campanha contra o que chamava de “uma clara intromissão nos assuntos internos do país”. Figuras de proa da Igreja Católica, de cumplicidade total com os militares, criticaram a visita.
Monsenhor Guillermo Bolati, arcebispo de Rosário, lembrou que “não devem ser estrangeiros quem nos venha indicar o que devemos fazer”. Ao saber que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos iria conversar com os generais, brigadeiros e almirantes que haviam desatado o terrorismo de Estado, para ouvir suas versões, o jornal La Nación foi mais direto: “A Argentina só se confessa diante de Deus”.
Imunes a tudo isso, na porta do prédio onde funcionava a representação da OEA, na Avenida de Mayo, havia filas de gente disposta a falar, apesar dos riscos, apesar do medo.
Na verdade, desde 1975 a OEA recebia denúncias de violações dos direitos fundamentais. Mas depois do golpe de março de 1976, essas denúncias viraram uma torrente.
E a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a mesma que em 2010 condenou o Brasil a julgar torturadores e assassinos da nossa ditadura militar, resolveu investigar. Foi preciso negociar duro até ser possível mandar a missão a Buenos Aires.
Durante aqueles quinze dias, aquelas duas luas, os visitantes ouviram de tudo. Estão lá, por exemplo, os depoimentos dos responsáveis pelo terror: os generais Jorge Rafael Videla, Roberto Viola, Albano Harguindey, Luciano Benjamin Menéndez e o então presidente da Corte Suprema, Adolfo Gabrieli.
São palavras de um cinismo, de uma frieza escabrosa, em claro contraste com as denúncias daquilo que os militares negavam com ênfase olímpica.
As pessoas das filas na porta da OEA mencionaram centros clandestinos de suplício, descreveram métodos de tortura, contaram como aconteceram seqüestros, falaram os nomes de mais de mil vítimas.
Tudo isso resultou num vasto e minucioso relatório, que ficou pronto em abril de 1980. E que foi proibido de circular na Argentina. Houve quem, nas organizações de defesa dos direitos humanos, tentasse imprimir cópias. Nenhuma gráfica se atreveu.
Com a volta da democracia, vários juízes e advogados argentinos pediram à OEA que liberasse o material. A OEA se recusou sempre. Mas agora, um juiz chamado Sergio Torres, que trabalha no processo sobre a ESMA – a Escola Superior de Mecânica da Armada, o maior e mais emblemático campo de tortura da ditadura militar argentina – conseguiu.
E o conteúdo das 65 caixas com os arquivos daquela missão da OEA, cada uma delas contendo cem pastas com registro de entrevistas e depoimentos, foi digitalizado e despachado para a Argentina.
Passam a fazer parte do processo. Além de ampliar vastamente as provas de acusação, esse material serve para determinar a verdade, principalmente sobre mortos e desaparecidos. É que há denúncias minuciosas de seqüestros, de prisões ilegais, de pessoas que depois sumiram para sempre.
Há testemunhos de como elas sumiram, contando quem foi que desapareceu com elas. Dez das caixas abrigam os depoimentos dos responsáveis pelo terrorismo de Estado.
Desde aquele abril de 1980 o passado permaneceu adormecido nessas caixas. Agora, o passado se torna presente, com todos os seus detalhes de horror, medo e esperança.
Horror pelo que acontecia, medo de que aquilo tudo se prolongasse, esperança de que nunca mais torne a acontecer.
Para isso, a verdade precisa ser conhecida, o passado precisa ser revisitado, ser trazido para o dia de hoje. E os culpados devem ser julgados pela mesma Justiça que eles negaram às suas vítimas.
Por enquanto, o conteúdo das caixas está disponível apenas para juízes, promotores e advogados. Eles saberão o que fazer com essa informação durante o julgamento dos torturadores e dos responsáveis pelo terrorismo de Estado.
Um dia, essa informação chegará a todos. Da mesma forma que esperamos que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA um dia entregue, a todos os países da América Latina, suas respectivas caixas, contendo a verdade e a memória de cada país.
Fonte: Carta Maior