Li, com muito prazer e até uma ponta de saudade (saudade da época da durindana, arg…) a matéria do Edgard Catoira neste site, “Batendo na mesma tecla”.

E não resisti. Vou contar mais uma daquele período, chamado de anos de chumbo. Não se preocupem. No final tudo acaba bem… Ou pelo menos mais ou menos, já que ninguém ficou em cana, e fomos todos para casa depois de uma “aula” sobre jornalismo do general Dale Coutinho, comandante do II Exército.

Minto. A história não acabou tão bem assim.  O major Rocha foi transferido para Letícia e os militares, a partir daquela data, resolveram “centralizar” a censura, embora eu não tenha a menor ideia de como conseguiriam, se é que conseguiram.

É importante registrar que a revista Veja, na época dirigida pelo seu criador, Mino Carta, foi o único veículo da chamada grande imprensa que mereceu, durante meses, a visita dos censores. Visita física. De corpo presente.

Eles, os censores, tinham uma escala. Uma semana, por exemplo, era o coronel Américo que aparecia na redação para ler e aprovar (ouderrubar) determinada matéria. Se o coronel vetasse, a redação tinha que produzir outro texto para colocar no local. Na outra semana, vinha  o major Rocha.

Não tinha aquela moleza do Estadão, que se jactava de estar sob censura. Quando o censor vetava uma material no Estadão, eles simplesmente colocavam uns versos do Camões no lugar e mandavam rodar.

Na Veja, éramos obrigados a “fabricar” alguma notícia para ocupar o espaço do material censurado. E a nova “notícia” tinha de “parecer real. Ou seja, não valia fazer piadinhas ou brincar naquele espaço.

Havia tipos na redação que fingiam não tomar conhecimento da presença dos censores. Esse teria sido sua grande contribuição para a chamada “redemocratização” do país.

No que me toca, o convívio com o coronel Américo e seu substituto, ou seja, com a realidade do momento, foi sempre ameno.

Enquanto aguardávamos os textos produzidos pelos repórteres, as últimas matérias do dia, conversavámos sobre generalidades, às vezes até sobre problemas específicos dos militares de plantão.

Como no dia em que o coronel Américo, lendo um texto que sairia na revista dizendo que o Lamarca (o guerrilheiro mais procurado doBrasil) estava cercado no Vale do Ribeira, disse: “Corta isso…é bobagem…ninguém consegue cercar o Vale do Ribeira, nem o Exército Brasileiro inteiro , de braço dado, conseguiria cercar o vale”.

Cortei aquela “bobagem” e agradeci ao coronel a informação. É importante registrar que a imprensa toda dava a notícia, evidentemente “plantada”, de que Lamarca estava “cercado”.

Apesar desse relacionamento, digamos, civilizado entre a redação e os censores – eles, por exemplo, tinham acesso ao “carrinho de guloseimas” que passava varias vezes por dia – o Octávio Ribeiro, que trabalhava comigo, vivia insistindo naquele seu vocabulário peculiar:

“Chefia, vamos pro Rio. Lá neguinho conversa mais… A gente, no Rio, conseguiria ter mais história pra contar. Eu tenho meus acessos…”

Tanto falou o “Pena Branca” (o apelido do Octávio) que fomos nós dois para o Rio.

Aqui interrompo este já longo relato para alertar os leitores que o Octávio Ribeiro foi o melhor repórter policial da história do jornalismo brasileiro.

Incomparável  na área. Ele falava a linguagem dos “malandros”, era respeitado por eles, e pelos policiais, então, nem se fala. Eu espero poder contar aqui algumas das proezas desse saudoso e querido amigo.

Algumas, inclusive, que vivemos juntos.

No Rio, os “acessos” do “Pena Branca” fizeram com que fôssemos recebidos no Ministério do Exército por ninguém menos que o chefe da Segunda Sessão (o serviço secreto), o Coronel Sucupira. Era para uma conversa em “off”, o que para nós, repórteres, já estava melhor do que a encomenda.

Conversa em “em off” pra cá, conversa “em off” pra lá (carioca adora conversar),o coronel Sucupira nos fala da operação plástica do Lamarca  (havia boatos, mas o coronel nos contou detalhes). Mais conversa, e o coronel nos diz que o cerco ao Lamarca estava se fechando e nos mostrou (MARAVILHA) cartas do Lamarca para seu pessoal, inclusive para a Yara Yavelberg, sua namorada.

Já nos preparávamos para as despedidas e eu comento assim como ninguém quer nada: “Pô, isso daria uma capa de Veja…uma capa sensacional”.

Octávio repete algo na mesma linha. O coronel Sucupira concorda e o Octávio ataca pelos flancos: “O senhor autoriza a gente publicar?”

O coronel vacila por uma fração de segundo (e com o Octávio, vacilou, dançou, esse era o seu lema). “Autorizo”, diz o coronel. Eu já estava na porta, quando o “Pena” se vira : “Coronel, nós temos censura na redação. Seria importante o senhor nos dar uma autorização por escrito”.

Foi o que nos salvou. E eu, babaca, não tinha pensado nisso. O coronel Sucupira tirou da carteira um cartão de visita (um cartão comum, desses que as pessoas trocam no primeiro encontro) e escreveu, com letrinhas miúdas: “Autorizo publicação da reportagem sobre a plástica do Lamarca, bem como das suas cartas” . No verso, uma rubrica ilegivel.

Primeira boa notícia: aquela semana o censor seria o Major Rocha. E nós tinhamos a “autorização” de um coronel. Nas Forças Armadas a hierarquia é tudo e mais um pouco. O major Rocha leu as histórias que ouvíramos no Rio. “Não dá para publicar”, disse.

Nossa argumentação estava toda baseada no cartão de visitas do coronel Sucupira. Um major não poderia discutir a autorização dada por um coronel. Foram momentos de dúvida na cuca do major Rocha e, do nosso lado, de tensão disfarçada. O major pediu para examinar o cartão.

Ficou com ele na mão até que, finalmente disse: “ Bom, se o coronel autorizou…”. Era tudo o que precisávamos ouvir…

Segunda-feira, estou saindo do banho, e ouço pelo rádio:  “A edição desta semana da revista Veja está sendo recolhida das bancas”… Correndo, ligo para a redação.

O Mino? Ele não está. Ligou dizendo que estava sendo levado para o QG do II Exército. Então me localiza o Octávio Ribeiro. Ele também deve estar com o Mino, foi a resposta.

Eu já disparava para a redação  quando toca o telefone. Era o “Pena Branca”. Parecia aflito, o que não era normal nele: “ O  cartãozinho… Cadê o cartãozinho, pô?

A ficha caiu. Era o cartão de visitas com a autorização do Coronel Sucupira. Eu, fechada a revista, botara o cartão na gaveta e deixara lá. Explico isso ao Octávio e digo que vou voando até a redação, apanho  o cartão, e levo até onde eles estavam.

No II Exército, na sala do general Dale Coutinho, respondeu o Octávio, já visivelmente irritado. “Tá todo mundo aqui…o Major Rocha tambem…”, e desligou.

A redação de Veja ficava na Marginal Pinheiros. Calculei: em 20 minutos estou lá, pego o cartãozinho… Mais 20 minutos e estou no QG do II Exército. Claro, sem congestionamento. E havia.

O pior foi abrir a gaveta e constatar que o cartão do coronel Sucupira não estava lá. Bateu desespero…Reviro os papéis. Nada do cartão…

Nisso liga o Octávio: “Eu já tranquilizei o major Rocha…disse a ele que você está trazendo o cartão”.

Gaguejando, contei a ele que eu não tinha encontrado o cartão. Mas que não comentasse com ninguém. Eu tinha de achar a p…. do cartão.

Imagino o que o Octávio estava pensando de mim naquela hora.

Depois de remexer a papelada toda eu decidi: vou arrancar essa m… Dito e feito. Com a gaveta transbordando de tranqueira, o cartãozinho no coronel Sucupira escorregara e caíra atrás do móvel.

Não me lembro de ter tido coragem de encarar o Mino Carta quando entrei na sala do general Dale Coutinho.

Entreguei o cartão nas mãos do general  e reparei que ele tinha, aberta sobre a mesa, a reportagem do Lamarca. Toda sublinhada, ora com com tinta azul, ora com tinta vermelha.

O Octávio Ribeiro, que àquela altura já tinha conquistado a simpatia do general graças ao seu jeitão, encostou por trás de mim e comentou:

“General, o senhor pode  ver…tem mais azul do que vermelho”.

Os trechos em azul eram, digamos, os “inofensivos”. Os em vermelho eram os “perigosos”, ou “negativos.”

Aí, do alto de suas estrelas, o general Coutinho resolveu dar uma aula de jornalismo para os três “alunos” presentes, a saber, o Mino Carta, Octávio Ribeiro e eu:

“Vocês acham que tem alguém interessado no Lamarca? Eu não sei porque vocês insistem em dar notícia política nas capas. Se é para vender revista tem é mais que botar mulher pelada…”

Ah sim… Na despedida, cordial até certo ponto, Octávio Ribeiro recomendou ao  general Dale Coutinho: “O senhor cuide bem do major Rocha…ele não teve culpa nenhuma”.

Ao que o general, sorrindo, disse: “Pode deixar, fique tranquilo. Esse  é um assunto meu”. Como eu já disse, o major Rocha, que durante aquele dia todo ficou sentadinho sem dizer uma palavra  foi transferido para Letícia, na fronteira com a Colombia. Ou com o Perú, sei lá.

Fonte: Carta Capital