Esta semana eu recebi correio eletrônico de historiador da UFRJ, no Rio de Janeiro, com quem andei trocando idéias sobre a Comissão da Verdade. Na opinião dele não há necessidade de criação de uma Comissão da Verdade no Brasil e, muito menos, em Sergipe e que aqui bastaria disponibilizar a documentação já coletada e a coletar.

Ele acha que a história que sairá da Comissão da Verdade terminará sendo uma história da esquerda sergipana e que ela será uma história de mão única. Eu não concordo com ele e, se escrevo este artigo, é para indicar, serenamente, razões que justifiquem a criação de semelhante comissão.

O primeiro ponto de minha defesa da criação de Comissão da Verdade em Sergipe é por conta do prazo de duração da Comissão da Verdade do Governo Federal. O período de dois anos é muito curto para o funcionamento da Comissão da Verdade nacional, cobrindo os vinte e seis estados e o distrito federal.

Nesse período, dificilmente será feito um trabalho rigoroso e o seu relatório final desagradará a todas as pessoas envolvidas e interessadas. Ao contrário, tendo cada uma das vinte e sete unidades políticas suas comissões da verdade funcionando concomitantemente com a nacional, o trabalho desta última será complementado pelas comissões estaduais e os brasileiros terão uma descrição mais completa de fatos e de versões muito mais próxima dos fatos ocorridos e das versões das pessoas que participaram, voluntária ou involuntariamente, do processo político daquele período.

A verdade que daí resultará significará, para mim, a totalidade da documentação e dos depoimentos reunidos.

Existem razões científicas para a criação de Comissão da Verdade em Sergipe. Desde que o historiador Ibarê Dantas escreveu o – à época – corajoso livro “A tutela militar em Sergipe”, muito pouco foi avançado em termos de pesquisa científica sobre a história política do período da ditadura militar.

Com o trabalho da Comissão da Verdade sergipana, nova documentação poderá ser coletada e novos depoimentos serão reunidos, o que, juntos, permitirá a formação de um extraordinário banco de dados para alimentar, por muitos anos, a pesquisa de graduação (monografias) e de pós-graduação (dissertações e teses) nos três cursos de História, na área do Direito, na área de Ciências Sociais, em Educação, etc.

Aparentemente, parece estar havendo muita movimentação no interior da comunidade acadêmica em relação ao uso futuro de tais fontes orais e documentais que mais tarde serão disponibilizadas.

Criar uma comissão da verdade será também uma excelente oportunidade para testar se cabe para Sergipe a “teoria dos dois demônios”, ou seja, se houve prática de violação de direitos humanos da parte dos agentes civis e militares da ditadura e da parte daqueles que integraram os grupos de resistência ao autoritarismo.

Caberia então perguntar: o grupo que fez resistência à ditadura militar em Sergipe se engajou em luta armada nos meios rurais e urbanos, matou quantos militares e civis, seqüestrou quantas pessoas, assaltou quantos bancos, torturou quantos militares e civis, prendeu ilegalmente e fez desaparecer quantos militares e civis?

Naturalmente, a resposta é negativa e transfere a discussão para o lado da ditadura militar em Sergipe – embora sem estar eu a afirmar que os agentes da ditadura praticaram todos aqueles atos.

Quando o assunto é a violação de direitos humanos durante a ditadura militar em Sergipe (1964-1985), esquematicamente falando, dois grupos podem ser identificados. De um lado, estão os rancorosos, revanchistas e ressentidos da esquerda.

Foram as vítimas da violação desses direitos. Essas pessoas não perdem oportunidade para lembrar os crimes de que foram objeto e criticar a auto-anistia que os agentes estaduais e federais de violações se concederam.

De outro, estão os envergonhados, arrependidos e arrogantes. Sabem que, obedecendo a ordens ou não, praticaram ações repudiadas pelo Direito, pela Moral e pela Democracia. Por isso não saem às ruas e batem no peito com orgulho que prenderam, torturaram, etc.

Embora os resistentes tenham perdido a luta para os agentes da repressão, sua vitória simbólica é inquestionável. A história está lhes dando razão – embora não deva ser esquecido que a maior desses vencedores tivesse, no período em questão, pouca ou nenhuma consideração pelos direitos humanos como valores, entendidos como “direitos burgueses”. Uma comissão da verdade será um momento de reconciliação de todos os sergipanos.

Além desses dois grupos, existe outro grupo que chamarei de o grupo dos “colaboradores”. Entre estes não estão os agentes estaduais e federais (informantes que eram servidores públicos) engajados em alguma forma de repressão e vigilância Refiro-me àquelas pessoas que colaboraram voluntariamente para o sucesso da ditadura militar em Sergipe.

Entre elas estão membros das elites políticas, das elites jurídicas, das elites administrativas, das elites empresariais e das elites intelectuais. Elas poderão sempre dizer que não cometeram violação de direitos humanos de ninguém.

Tudo bem. Por conta disso, provavelmente elas não serão convocadas para depor ou ajudar a esclarecer algum episódio. Entretanto, os depoentes poderão registrar os seus nomes para que elas sejam responsabilizadas moralmente perante a história, como os demais envolvidos – já que a Comissão da Verdade não será um tribunal e todas as violações estarão protegidas pela Lei da Anistia de 1979.

Nos dias presentes, é possível observar uma lamentável apatia nas instituições públicas e privadas que lidam com os Direitos Humanos em Sergipe. Eu não arriscaria um palpite sobre as causas desse problema.

Algumas pessoas dizem por aí que a explicação deve ser buscada no desinteresse dos responsáveis por essas instituições, enquanto outras afirmam que a resposta está nos grandes chefes que não fornecem sinais a esses subordinados para que atuem. Podem ser as coisas e outras mais.

No caso da UFS, a sua instituição de Direitos Humanos está fechada há muito tempo e desconheço movimentação no sentido de revitalizá-la. Em todos esses casos, certamente não é por ausência de violação dos direitos humanos dos sergipanos que essas instituições pouco têm trabalhado (e em Sergipe permanece sendo o Estado o grande violador dos direitos humanos).

Com criação da Comissão da Verdade, será de esperar que o marasmo atual que atinge as instituições que lidam com direitos humanos em Sergipe será sacudido.

Qual poderia ser a metodologia de trabalho da comissão da verdade? Para funcionar, essa comissão necessitará de certa preparação. O seu objetivo principal será levantar documentação e depoimentos referentes à violação de direitos humanos.

Seus membros precisarão saber quais as documentações já foram inventariadas pelo Arquivo Nacional e pelo Arquivo Estadual de Sergipe para poder aprofundar a busca de documentos que comprovem as violações de direitos humanos.

Terá que fazer igualmente um levantamento de nomes de pessoas de todos os lados que poderão depor e esclarecer episódios de tais violações. Como não terá todo o tempo do mundo, será necessário fazer escolhas e estabelecer prioridades para o prazo de dois anos.

De que nomes compor a Comissão da Verdade de Sergipe? Indo além das exigências previstas na Lei da Comissão da Verdade, penso que essa comissão deve ser equilibrada em termos de nomes próximos e distantes dos fatos e versões, para evitar possível tendenciosidade nas investigações.

A minha idéia é que nomes de instituições públicas sejam em número menor que os da sociedade civil sergipana para evitar o mesmo problema e os constrangimentos institucionais que daí poderiam resultar.

O primeiro nome que me vem à mente para presidi-la é de Ibarê Dantas, posto que, além de reunir características como integridade e idoneidade enquanto pessoa, goza de respeitabilidade e de credibilidade como historiador em todos os setores da sociedade sergipana. A última sugestão é no sentido de que o momento da publicação do relatório final da comissão seja também aquele da inauguração de um Centro de Memória para que as novas gerações de sergipanos possam conhecer uma importante fatia de sua história política no tempo em que o 28º. BC era a sede do governo de Sergipe.

Fonte: Blog Primeirão Mão