Porões da ditadura
Rua Tutoia, 921, Vila Mariana, zona sul. “Aqui é a sucursal do inferno.” Na década de 1970, assim eram recebidos os presos políticos da ditadura militar (1964-1985) na antiga sede do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna), nos fundos do 36º DP da capital, conta o ex-preso político Ivan Seixas, 57.
Atualmente, o endereço ganha atenção por motivos, digamos, mais nobres: o território é alvo de um pedido de tombamento no Condephaat (conselho estadual de defesa do patrimônio). “Queremos tombar o antigo DOI-Codi para marcar o que foi a época mais dura da tomada do Estado por forças autoritárias no Brasil”, diz Ronaldo Bianchi, 58, vice-presidente de gestão da TV Cultura e um dos autores do pedido ao lado de Ivan Seixas. “Com a Comissão da Verdade [sancionada em novembro], o DOI-Codi também precisa ser revisto.”
O ex-preso político Maurice Politi, 63, atual diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, acrescenta que a preservação de imóveis como esse segue uma tendência de países como Alemanha, Argentina e Chile, onde são preservados “sítios de consciência”. “É para que a nova geração conheça as violações de direitos humanos que aconteceram no passado e para garantir que isso não se repita.” Se tombado, o prédio onde hoje ainda funciona o 36º DP pode dar lugar a um memorial contra a tortura e a repressão. “Não queremos o tombamento nem para nós nem para o movimento. É para a sociedade”, diz Ivan.
Os interessados
Fundado em 1970, como sucessor da Oban (Operação Bandeirantes), o DOI-Codi era dirigido pelas Forças Armadas. Até sua desativação, no início da década de 1980, por ali passaram cerca de 6.000 pessoas -2.355 presas pelo próprio DOI-Codi-, segundo relatório de 1975 do Exército, revelado pela Folha em 2000. Por lá também passou a presidente Dilma Rousseff, que, via assessoria, disse preferir não comentar o assunto.
Para chegar ao pedido de tombamento, as conversas começaram no fim de 2009, quando Ronaldo Bianchi procurou Ivan, jornalista e filho de Joaquim Seixas, morto no DOI-Codi em 1971. Eles buscaram o apoio de pessoas e instituições ligadas ao assunto, como o Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo e o Grupo Tortura Nunca Mais.
Bianchi ainda procurou Ivo Herzog -filho do jornalista Vladimir Herzog, morto no DOI-Codi em 1975-, que preferiu não protagonizar o processo por razões pessoais. Por fim, foram endossados pelo advogado Belisário dos Santos Júnior, pelo senador Aloysio Nunes (PSDB) e pelo então vice-governador Alberto Goldman (PSDB).
Em março de 2010, protocolaram o pedido -Ivan como interessado oficial, pois, na época, Bianchi era secretário-adjunto da Cultura e não queria comprometer o processo.
O passo seguinte foi a designação da relatora do caso -a historiadora Cristina Meneguello, professora da Unicamp, conforme revelou a colunista da Folha Mônica Bergamo em 17 de janeiro deste ano.
No momento, o pedido é analisado e aguarda parecer que decidirá se o estudo será aberto ou não. Esse é um longo caminho -no caso do tombamento do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), hoje Memorial da Resistência (leia mais à pág. 22), o pedido foi feito em 1976 e o tombamento só veio em 1999.
Em nota, o Condephaat disse que não se pronunciará sobre o caso, que corre em sigilo. “Ainda estamos em uma fase de trabalho interno”, justifica Cristina. Se o processo não vingar no órgão, Bianchi diz que pretende abrir novos pedidos no Conpresp (conselho municipal de preservação do patrimônio) e no Iphan (órgão nacional).
Arquitetura e história
O pedido de tombamento considera todo o território do atual 36º DP. “A arquitetura não diz muito, mas não é o valor arquitetônico que está em jogo. É o valor histórico”, diz a historiadora Deborah Leal Neves, 27, da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico da Secretaria de Estado da Cultura.
O arquiteto Lucio Gomes Machado, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, concorda que a preservação do patrimônio se justifica por um fato histórico. No entanto, ele questiona a funcionalidade do local após um possível tombamento.
“Como fazer essa vinculação entre o que é hoje uma delegacia comum com o que foi na época da ditadura?”, indaga o arquiteto. “Não basta só o tombamento. É preciso que o processo seja seguido por uma transformação daquele espaço em um museu”, completa ele.
No ano passado, o Cine Belas Artes, na Consolação, passou por situação similar, quando a polêmica girou em torno do uso do local, e não da arquitetura. Fechado em 2011, ele teve pedidos de tombamento no Condephaat e no Conpresp. No primeiro, decidiu-se não abrir o estudo, mas, após recurso, o caso voltou a ser discutido.
No segundo, o pedido foi reaberto em janeiro, seguindo decisão judicial. “O tombamento do DOI-Codi talvez tenha mais mérito que o do Belas Artes, onde se quer preservar a memória da programação”, diz Lucio Machado.
Outras construções da época da ditadura já foram tombadas, como o antigo Dops, o arco do extinto presídio Tiradentes e o edifício da USP na rua Maria Antônia.
Porém, o DOI-Codi é considerado um caso mais delicado, pois simboliza um dos mais temidos centros de repressão na ditadura. “Minha lembrança do Dops não é boa, mas a do DOI-Codi é terrível”, diz Maurice Politi.
A historiadora Maria Aparecida de Aquino, 58, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, lembra que ainda há muita resistência para revirar os porões da ditadura, por parte de quem também não quer a abertura dos documentos da época.
Investigador do Dops durante o regime militar e atual delegado titular do 36º DP, Márcio de Castro Nilsson, 55, diz não ver necessidade de tombamento. “É uma besteira. No mundo moderno, o velho deve dar lugar ao novo. Nem sei onde foi o DOI-Codi.”
Segundo Deborah Leal, a questão não pode ser reduzida a uma discussão entre militares e comunistas. “Nesse caso, o tombamento é uma forma de entender a própria história do país.”
“No mundo moderno, o velho deve dar lugar ao novo. Nem sei onde foi o DOI-Codi”
MÁRCIO DE CASTRO NILSSON, delegado do 36º DP
Fonte: Folha de São Paulo