A transição espanhola pós Franco
Pode-se dizer hoje, passados já os mais de trinta anos que nos separam dela, que a Transição [orig. Transición] espanhola foi uma armadilha para as maiorias sociais e para as forças que quiseram substituir o regime franquista por uma democracia efetiva.
Armadilha é dispositivo no qual é fácil entrar, mas é difícil, mesmo, impossível, sair. O gatilho em que pousam os pássaros atraídos pela comida, ou a ratoeira que se fecha sobre o rato que acorre ao cheiro do queijo, são exemplos conhecidos de armadilhas, mas, talvez, a melhor armadilha, a mais sutil, mais leve, quase imaterial, é a rede de pesca.
Quando os peixes entram na rede, ela os acolhe sem violência: só quando tentam livrar-se é que acabam bem presos nas malhas, sem poder movimentar-se. Assim aconteceu conosco, na Transição.
O mais fácil para alguns movimentos sociais fracos e desorientados e para lideranças políticas da esquerda, mais ambiciosas no plano pessoal, que decentes no plano político, era aceitar o que o regime oferecia: legitimação das estruturas e cargos fundamentais do Estado de 18 de julho [1936] e continuidade legal, em troca de uma transformação interna do Estado, que garantisse um lugar para as diretorias dos partidos e sindicatos da oposição, num marco ampliado de poder.
Inicialmente, o preço dessa escolha não pareceu excessivo. Apesar das centenas e mortos e milhares de feridos em manifestações nos cinco anos imediatamente depois da morte de Franco e das ações do ETA[1], a transição para um regime de liberdades controladas foi relativamente “pacífica”, se se compara com a derrubada do Xá no Irã ou de Somoza na Nicarágua.
Bastante menos “pacífica”, se se compara com a revolução portuguesa que, sim, foi autêntica ruptura com o regime anterior e fez-se sem mortes (exceto um agente da PIDE[2], que se suicidou). Tudo é relativo.
O regime espanhol converteu-se assim, por um lado, numa partidocracia, com a vida parlamentar sequestrada pelas direções partidárias que fizeram a transição e, por outro lado, numa “democracia antiterrorista” que mantém, renovando-o, o conjunto dos aparelhos repressivos e das leis e tribunais de exceção da fase anterior.
O pretexto ideal para manter esses aparelhos foi a – muitas vezes brutal e politicamente absurda – luta armada do ETA, mas a legislação de exceção e suas instâncias judiciais podiam servir-se dos mesmos aparelhos, a qualquer momento, contra qualquer cidadão.
As classes dominantes espanholas que em certo momento chegaram a manifestar algum temor pela “incerteza” da transição podiam afinal dormir tranquilas: ali estava o rei que Franco ali colocou; ali estava seu fiel Fraga Iribarne, ali estavam a polícia e o exército da ditadura, intactos; ali estava também a peça mais sensível do aparelho judicial, o Tribunal de Orden Público, sucessor do Tribunal de Represión de la Masonería y el Comunismo, agora denominado Audiencia Nacional.
O poder social pertencia aos de sempre, acrescentados alguns recém chegados, que fizeram fortuna com a Transição. Aos de sempre se juntaram os “para sempre”, que uniram intimamente seus interesses aos interesses do regime.
E a monstruosa repressão franquista, que chegou ao genocídio nos primeiros anos, e mantida como signo de identidade através de longo rosário de assassinatos legais (Grimau, Puig Antich, os cinco de 1975 etc.) e de atos sistemáticos de tortura, ‘foi desaparecida’ da memória oficial. Toda a responsabilidade foi apagada pela lei de anistia.
Em troca, outros personagens, como Santiago Carrillo, não teriam de prestar contas à justiça como autores de crimes de guerra e do crime de assassinato em massa dos presos que estavam sob custódia do bando franquista em Paracuellos del Jarama, e que Paul Preston documentou em livro recente[3].
O holocausto espanhol de que fala Preston foi assim ‘acertado’ e fortaleceu-se o mito de que as centenas de milhares de mortos eram resultado dos rancores e ódios de uma guerra civil sobre a qual “os dois lados foram igualmente responsáveis”.
Essa versão foi completamente demolida pelos recentes trabalhos de historiadores do período, que demonstraram com abundante documentação que, embora a violência do lado republicano pudesse ser descrita como “excessos” sempre presentes em guerras civis, as matanças promovidas pelos franquistas foram parte de um plano de extermínio premeditado.
O extermínio dos “vermelhos” pelos franquistas foi, de fato, como o demonstra Gustau Nerín em La guerra que vino de África[4], matança colonial operada pelo exército africanista e seus oficiais, de republicanos espanhóis que os oficiais franquistas chegaram a chamar de “os mouros do norte”. Entregar a narrativa histórica aos vencedores de 39 foi outra das gravíssimas concessões que a esquerda majoritária fez, na Transição.
A armadilha da Transição surtiu seus primeiros resultados nos pactos de Moncloa, quando as direções sindicais e políticas da esquerda decidiram “lutar contra a inflação” limitando o aumento dos salários, o que rendeu à esquerda a liberdade sindical.
A mesma armadilha outra vez capturou corpos e mentes da população quando, dia 23/2/1981, os espanhóis apoiaram um rei que, no mínimo, via com simpatia a tentativa de golpe de Estado, como o salvador da “democracia”.
Depois de um golpe que não fracassara completamente e que fora precedido pela expulsão de um Adolfo Suárez que levara demasiadamente a sério a democratização do país, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) aplicou em boa parte o programa dos golpistas, freando o desenvolvimento autônomo; organizando resposta legal e ilegal contundente contra as ações do ETA e pondo em marcha a contrarrevolução neoliberal.
A política, que parecia haver conquistado algum espaço nos primeiros anos da Transição, viu-se engolida por uma gestão partidocrática e essencialmente bipartidarista do regime (transfranquista e capitalista) que conseguiu seu objetivo: manter a população sob cabresto.
O juiz Baltasar Garzón, hoje julgado pelo Tribunal Supremo, acusado de vários delitos de prevaricação, foi um dos principais paladinos da democracia antiterrorista. Suas várias sentenças contra o ETA, mas também contra o independentismo político basco, cimentaram sua carreira de juiz.
Nessas sentenças, o “juiz estrela” tomou, amparado nas leis de exceção e num certo consenso público antiterrorista, todas as liberdades imagináveis para impedir o direito de defesa, além de ter feito uso “criativo” dos crimes tipificados em lei.
Resultado disso é que hoje há, nas prisões espanholas, várias centenas de presos políticos bascos, que jamais tiveram qualquer coisa a ver com a preparação de qualquer atentado e cumprem sentença porque contra eles se aplicaram leis de exceção que estabelecem, antijuridicamente, uma analogia entre os atentados e outras condutas com objetivos políticos idênticos.
O modo como Garzón e seus colegas da Audiencia Nacional aplicam o conceito de “analogia” ao direito penal viola princípios básicos de todo o ordenamento jurídico liberal.
Raras vezes, em regime que se denomine “democrático”, usaram-se tão extensivamente os conceitos de analogia e amálgama, em direito penal, como o fez Baltasar Garzón, com sua famosa teoria do “entorno”. Quanto às alegações de muitos, nos casos que julgou, Garzón jamais mandou que fossem seriamente investigadas.
Esse juiz desmedidamente politizado, quis fazer-se de defensor da democracia contra todas as ditaduras e processou o velho ditador chileno Augusto Pinochet, acusando-o de genocídio. Há algo aí de humor involuntário, pois o juiz que perseguia o ditador chileno autor da morte de 3.000 de seus concidadãos, era o representante da continuidade legal e institucional de um regime que havia exterminado, nos seus momentos de implantação, mais de 300 mil concidadãos e recebera Pinochet com honras de chefe de Estado, nos funerais de Franco.
O processo contra Pinochet não prosperou, em parte por defeitos técnicos nas preliminares, mas também por pressões políticas internacionais, e o sanguinário “Tata” morreu na cama, em seu país. Além de ganhar fama graças ao processo contra Pinochet, Garzón continuou a perseguir integrantes da esquerda abertzale [em catalão, “patriotas”; é a esquerda basca, que defende a independência do País Basco] e de outros setores da esquerda radical, fechou jornais, proibiu organizações políticas e culturais etc., sempre em nome da defesa do Estado de direito.
Garzón chegou a iniciar um processo para investigar as matanças e os desaparecimentos de militantes antifranquistas, o que pareceu confirmar que estivesse tomando posição contra todas as ditaduras e a favor da democracia. Depositaram-se neles muitas esperanças de familiares de mortos e desaparecidos.
Mas, depois de instruir uma petição inicial com excelente documentação, que lhe foi encaminhada por importantes historiadores, Garzón abandonou o processo, ao concluir que não seria da competência da Audiencia Nacional.
Nem assim o pseudosindicato “Mãos Limpas” e a Falange espanhola deixaram de acusar Garzón de prevaricação, por ter iniciado o processo. Investigar os crimes do franquismo não teria sentido algum, segundo esses grupos direitistas, porque os crimes estariam prescritos, e Garzón só teria aceito iniciar o processo por razões políticas.
Hoje, o Tribunal Supremo julgou Baltasar Garzón por outra causa: as escutas de Gürtel. Em flagrante violação do direito de defesa, Garzón ordenou que se plantassem escutas para gravar conversas entre os acusados e seus advogados, no Gürtel.
Essas escutas clandestinas são prática corriqueira quando se trata da esquerda abertzale. Mas, se se aplicam os mesmos métodos aos poderosos, a pessoas que têm relações diretas com o Partido Popular (PP) e, sobretudo, de forma mais indireta, com a família real, os poderosos enquadrados enquadram o juiz.
Viu-se exatamente o mesmo fenômeno no caso do processo contra o genro do rei, Iñaki Urdangarín, contra cujo juiz iniciou-se recentemente uma investigação. No caso das escutas de Gürtel, Garzón já foi inabilitado para exercer a função de juiz por 11 anos.
A esquerda oficial revoltou-se com grande alarido. É sem dúvida surpreendente que o primeiro condenado no caso Gürtel seja o juiz, mas essa condenação, perfeitamente justificada, será usada para compensar as sentenças mais “clementes” nos processos dos crimes do franquismo, quando condenação a pena mais leve pode gerar amplo escândalo internacional, nocivo à imagem do regime.
Seja como for, é bom exemplo de como funciona a armadilha da Transição, com dirigentes de esquerda e parte da população de esquerda apoiando Baltasar Garzón aos gritos de “Estou com Garzón”. Como se a causa desse burocrata do próprio regime pudesse ter algo a ver com a justiça que centenas de milhares de familiares de vítimas do franquismo ainda esperam.
As manifestações em torno desse julgamento muito ‘midiático’ são boa ocasião para que se divulgue a causa da verdade histórica num sistema político construído sobre a “negação” de um genocídio.
Mas qualquer apoio que se dê a Garzón como paladino da verdade e da justiça é perigoso. Cada vez que se apóia o juiz que elaborou a doutrina “do entorno”, apóia-se o conjunto de instituições e normas que se edificaram sobre valas cheias de cadáveres e sobre o cancelamento da memória.
Apoiar Garzón é resumir toda a política ao regime e não sair de um sistema que não pode fazer justiça nem ao passado nem ao presente; é renunciar a romper com o regime das valas comuns.
Existem as duas Espanhas, mas, se se examina o presente, a outra Espanha, a Espanha democrática que não se atreve a ser republicana, está presa na armadilha da Transição: quanto mais se esforça para escapar da rede, mais se enreda.
Para sair dessa armadilha, é preciso definir-se fora dela, negando toda a legitimidade ao regime assassino do 18 de julho [1936, golpe dos monarquistas, de cujo fracasso parcial resulta o início da guerra civil espanhola]. Para isso, ainda falta outro 14 de abril [1931, proclamação da II República espanhola; expulsão do rei; primeira constituição democrática espanhola], seguido de um grande e potente 15M [Movimento dos Indignados, 15/5/2011].
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[1] Movimento separatista basco. A sigla ETA corresponde a “Pátria Basca e Liberdade”, em euskara, o idioma basco [NTs].
[2] PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado, polícia política portuguesa, que existiu 1945 e 1969 [NTs].
[3] PRESTON, Paul, 2011, (esp.) El holocausto español. Odio y exterminio en la Guerra Civil y después, Barcelona: Editorial Base. Sobre o livro, ver http://www.editorialbase.com/llibres/122_L_Holocaust_espanyol__Odi_i_extermini_durant_la_Guerra_Civil_i_despres [NTs].
[4] NERÍN, Gustau, 2008, La guerra que vino de África, Barcelona: Ariel.
Fonte: Blog do Nassif