“Você apoia o processo de reformas que o presidente começou no dia 2 de fevereiro de 1990, cujo objetivo é uma nova Constituição por meio de negociação?”. No dia 17 de março de 1992 – há exatos 20 anos, portanto — 2,8 milhões de sul-africanos brancos foram às urnas para responder a questão acima. Mais de 68% marcaram “sim” e referendaram as ações do presidente Frederik De Klerk rumo a uma nova Constituição, negociada com lideranças negras, que poria fim ao regime racista do Apartheid.

Entre os primeiros passos dados por De Klerk em 1990 estavam o fim da clandestinidade de partidos como o Congresso Nacional Africano e a liberdade de seu principal líder, Nelson Mandela. O presidente também revogou várias leis do arcabouço jurídico que sustentava o regime de segregação racial.

Mas a decisão dos brancos no referendo de 1992 não partiu de uma tomada de consciência, mas falta de opção. Apenas uma minoria branca apoiava nas ruas a liberdade aos negros, e o próprio De Klerk antes de se tornar presidente não defendia o fim do Apartheid.

“Não foi uma mera concessão dos brancos aos negros. Os brancos ficaram encurralados”, conta Analúcia Danilivicz, professora de Relações Internacionais da UFRGS e pesquisadora do Cebrafrica – Centro Brasileiro de Estudos Africanos da universidade. Danilivcz, que vai publicar em breve o livro

“A Revolução Sul-Africana: Revolução Social ou Libertação nacional?”, explica que a tensão na África do Sul beirava a guerra civil. “Passou a ser impossível controlar as leis de contenção dos negros.

Na medida em que a crise ia aumentando, os negros levavam o caos às cidades e como resultado disto vem a repressão. Ou os brancos davam os direitos a essa maioria para que a instabilidade fosse contida, ou acabariam sucumbindo”.

O regime criado em 1948 se tornou insustentável com o aumento da tensão interna, mas também por fatores econômicos e de relações internacionais. A crise econômica que atingiu o mundo inteiro na década de 1980 não poupou a África do Sul.

A instabilidade se agravou porque o país passou a sentir cada vez mais as sanções impostas pela comunidade internacional. Durante a Guerra Fria, ter um regime branco e capitalista encravado no sul da África fora estratégico para as potências ocidentais, na medida em que grupos de esquerda apoiados pela União Soviética tomavam o poder em países vizinhos, como Angola e Moçambique.

O regime racista era fortemente militarizado, com apoio velado de potências bélicas da Europa, Estados Unidos e Israel. Assim, o regime conseguia sufocar, inclusive, grupos guerrilheiros que existiam desde os anos 1960.

Quando De Klerk assumiu o poder, em 1989, mesmo ano da queda do Muro de Berlim, a situação já era diferente. “O governo do Apartheid tinha o papel de bastião anti-comunista na região. Quando a União Soviética deixa de existir, não tem a menor relevância ter aquele grupo no poder na África do Sul.

Se torna melhor para o Ocidente um governo de maioria que abra a economia do país, se adequando ao neoliberalismo. Aí o discurso dos direitos humanos vem à tona como crítica internacional ao regime”, explica Danilivcz.

“Sabedoria política levou a uma transição negociada”, diz professor da UnB
O pensamento da pesquisadora da UFRGS converge com o de Pio Penna Filho, professor de Relações Internacionais da UnB.

“Quando houve o referendo, os brancos sabiam que o regime já tinha acabado”, afirma o especialista em África contemporânea. Entre os antecedentes que levaram à derrocada do Apartheid, Penna cita também a conjuntura internacional com o fim da Guerra Fria e a crise econômica dos anos 1980.

Ele também relata que as manifestações dos negros eram cada vez mais radicais a partir do final dos anos 1970 e durante os 80. “Os jovens negros perderam a paciência com líderes que tentavam uma conciliação”, afirma.

De fato, durante a década de 1980, atentados à bomba, por exemplo, se tornavam comuns. Ainda assim, o fim do Apartheid deu lugar à conciliação. De um lado, o Partido Nacional se deu conta de que era preciso abrir o regime para não ser engolido.

De outro, líderes como Mandela aceitaram negociar. “Conta aí a sabedoria política de um grupo do Partido Nacional, liderado por De Klerk, de fazer uma transição negociada. Do outro lado, havia um grupo disposto a negociar, o CNA, e Mandela foi o fiel da balança, ele era adorado pelos negros e respeitado pelos brancos”, afirma Penna.

Para o professor da UnB, a presença de Mandela foi determinante para que o fim do regime de exclusão racial não terminasse de maneira sangrenta. “Foi um golpe de sorte terem mantido este homem vivo, um homem de sua altivez. Se não, acho que o Apartheid terminaria de outra maneira”, diz.

Analúcia Danilivicz explica que o CNA é uma organização com uma história bastante peculiar. O partido completa cem anos em 2012 e surgiu tentando negociar com os brancos. A partir de 1960, há uma inflexão rumo a guerrilha, motivada pelo Massacre de Shaperville, em que a polícia reprimiu 20 mil negros que protestavam contra a Lei do Passe, que os obrigava a portar cartões de identificação, onde estavam escritos os locais de Johanesburgo onde poderiam transitar.

Sessenta e nove pessoas foram mortas a tiros e 186 ficaram feridas, entre elas mulheres e crianças. “Ali o CNA se deu conta que não ia adiantar tentar estabelecer um diálogo com o Partido Nacional”, conta a professora da UFRGS.

Ainda assim, quando seu principal líder é solto em 1990, o partido volta às origens, capitaneando a negociação para um governo em que a maioria negra fosse livre. Em 1993, enquanto tratavam da nova Constituição, Mandela e De Klerk ganharam conjuntamente o Nobel da Paz “por seu trabalho pelo fim pacífico do Apartheid e por criarem as bases de uma nova e democrática África do Sul”.


África do Sul ainda não se libertou completamente do Apartheid

Em 1994, ocorre a primeira eleição com participação dos negros. O CNA vence com 62% dos votos, mas governa junto com o Partido Nacional, que teve 20%, em um governo de “unidade nacional”, conforme já fora estabelecido pela Constituição “interina”, de 1993 – em 1996, entra em vigor a Constituição definitiva da África do Sul pós-Apartheid.

Mandela foi alçado presidente e, desde aquela eleição, o CNA sempre foi o partido mais votado, tendo atualmente Jacob Zuma à frente do governo sul-africano.

Apesar da primazia do partido que lutou pela liberdade dos negros, a exclusão social permanece, bem como o racismo. Na questão social, pesa o fato de que tudo o que era dos brancos continuou com eles.

“As propriedades foram mantidas na mão dos brancos. Comenta-se que isto fez parte do acordo entre as altas lideranças”, conta Pio Penna Filho. “Foi uma conversão de eixos que levou o Partido Nacional a procurar o principais lideres do CNA e negociar uma transição para que os negros chegassem ao poder, mas os brancos não perderam sua inserção na economia.

Hoje, 80% da economia está nas mãos dos brancos. A minoria branca influencia na capacidade de gestão nos três governos negros que tivemos pós-Apartheid”, afirma Analúcia Danilivicz.

“O Apartheid deixa um legado terrível de racismo e de exclusão social. Enquanto havia este regime, a renda só era distribuída entre os brancos”, explica Penna Filho.

O professor da UnB pondera que, embora a desigualdade persista, muitos negros conseguiram ascender socialmente após o fim do regime racista. “Houve mudanças com a promoção de políticas públicas. Hoje já há classe média negra e negros ricos”, diz.

“Durante 350 anos o sistema econômico sul-africano foi dominado pelos brancos. Temos 17 anos de governo de maioria negra.

Em apenas duas décadas é impossível transformar totalmente um sistema fundado na exploração, na segregação e na discriminação que vigorou esse tempo todo”, opina Analúcia Danilivcz.

As relações entre brancos e negros também permanecem sendo problemáticas. Em 1995, foi estabelecida a Comissão da Verdade e da Reconciliação, que estabeleceu anistia para todos os que confessassem crimes relacionados ao Apartheid e aceitassem depor.

A comissão é tida como um dos exemplos internacionais de justiça de transição, mas não há ainda uma real reconciliação no país.

“Resta um racismo em grandes proporções, entre as gerações que viveram o Apartheid. A África do Sul deve superar isto em dez, vinte anos. De 1994 para cá é que crianças negras e brancas passaram a brincar juntas”, afirma Penna.

“Esse regime, que vigorou durante praticamente toda a segunda metade do século XX, pode ter sido aniquilado juridicamente, mas não foi aniquilado no entendimento e nos valores das pessoas”, diz Danilivcz.

Fonte: Sul21