Nove décadas de todos nós
Há 90 anos, precisamente a partir de 25 de março de 1922, os comunistas passaram a existir de fato na sociedade brasileira. Independentemente de divergências no campo progressista, não se pode negar ao PCB sua importância histórica como um dos referenciais elementares na articulação da cultura e política contemporânea do Brasil moderno.
E neste lapso histórico, até a legalização em 1985, contam-se nos dedos os anos em que os comunistas se beneficiaram de garantias cívicas – que, genericamente, se realizam no direito à existência legal como partido político.
É claro que a discriminação cívica dos comunistas não foi um fenômeno peculiar. Ela se inseriu como um dos aspectos particulares daquele que, durante muito tempo, foi um padrão constante da formação social brasileira: a exclusão das massas trabalhadoras do processo político.
A negação da vida pública aos partidos de esquerda fez parte da negação maior realizada sistematicamente pelas classes dominantes brasileiras: a tentativa de impedir e ou neutralizar a intervenção do povo na nossa história.
Entretanto, este aspecto particular da tradicional natureza antidemocrática , antipopular e excludente da ordem política brasileira revestiu-se de um sentido absolutamente decisivo no processo de declínio histórico do regime implantado com o golpe de 1964. E pelo que contém de pedagógico não podemos deixar de passar em branco esse ponto.
A nossa experiência política revela a que serviu a interdição da legalidade aos comunistas. Todos sabem que o anticomunismo e a repressão a seus quadros foram o pretexto e o vestíbulo ao cerceamento de todas as correntes do pensamento progressista, uma espada de Dâmocles, que se manteve suspensa sobre todas as cabeças que exercitaram o dever de dissentir, de discutir e de projetar um futuro diferente a partir do presente transformado.
No momento em que o capital financeiro, apoiado pelas grandes corporações midiáticas, dissolve conquistas históricas da classe trabalhadora européia, a lembrança viva desse passado recente é um imperativo democrático para brasileiros e demais povos sul-americanos.
Sempre é bom recordar que a luta pela livre organização e a legalização das mais diversas correntes de opinião concentrou muitas das determinações da questão democrática brasileira. Nestas condições, a luta dos comunistas foi pertinente a todas as forças democráticas. O impedimento de existência legal do PCB significou para elas uma restrição, uma ameaça, um instrumento de chantagem.
O partido que contou com quadros da estatura de João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Diógenes Arruda Câmara e Luís Carlos Prestes condensou a consciência possível de uma parcela expressiva das populações trabalhadoras da cidade e do campo e as melhores tradições de nossa intelectualidade. Apesar dos erros cometidos e dos percalços de seu itinerário, instaurou-se como uma constelação política nacional, como uma vontade política genuinamente nacional.
Combateu por uma legislação social justa, pela defesa da industrialização, pelo monopólio estatal do petróleo, pela educação pública fundamental e superior, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, pela proteção à infância, contra discriminação racial, religiosa e cultural, contra todas as formas de censura e obscurantismo, pela democratização da vida social e por melhores condições sociais para todos os trabalhadores. Estiveram presentes na campanha das “Diretas Já”, contribuindo para o avanço da luta democrática. O aporte que ofereceram à cultura e às ciências históricas e sociais com a difusão pioneira do marxismo é de uma relevância íntima.
Vinculados à solidariedade internacional, lutaram contra o fascismo espanhol e denunciaram sempre o colonialismo. Deram seu sangue nos campos de batalha da Itália e nas câmaras das ditaduras que macularam a dignidade nacional. Se entendemos o socialismo como desejo e tarefa de homens e mulheres, como obra coletiva dos trabalhadores, devemos reverenciar a trajetória de homens como Mário Alves, Gregório Bezerra, Henrique Cordeiro e Apolônio Carvalho entre tantos outros. Eventuais divergências táticas não justificam o esquecimento de atores que lutaram pela democracia como valor estratégico.
Ao presenciarmos a ação de sistemas despolitizantes que pretendem reduzir questões sociais e políticas públicas a problemas técnicos, que devem ser elucidados mediante a interação entre cúpulas de organismos multilaterais, agências de risco e corporações midiáticas, precisamos resgatar o legado dos que lutaram por uma vida à luz do dia, regida pelas normas de convivência pluralista e democrática. Viva a paz ! Viva a democracia! Viva o socialismo!
Fonte: Quem tem medo da democracia?
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil