Comissão da verdade e mitos da ditadura
Poucos temas mobilizam uma reação tão enfática, na internet ou fora dela, quanto o debate sobre a necessidade de se lançar luzes sobre o passado ditatorial do país e de se proceder à atribuição de responsabilidades que tal ajuste de contas implica.
A metáfora não é gratuita: trata-se precisamente de um embate entre a necessidade cívica, jurídica e humanitária de iluminar um passado de trevas, tortura e arbítrio que forças do atraso insistem em manter num limbo, fora do alcance do ajuste histórico e legal.
Com a instalação da Comissão da Verdade na iminência de acontecer e com o STF prestes a votar, na próxima quinta-feira, um recurso da OAB questionando a validade e a abrangência da Lei da Anistia, o debate se acirra e as caixas de comentários dos grandes blogs e portais se enchem de mensagens de defensores do regime militar, as quais, pelo volume, similaridade de argumentação e estilo sugerem uma ação orquestrada, que recende ao odor acre dos coturnos manchados de sangue.
Revisionismo conservador
A mídia vem, há tempos, investindo em um esforço revisionista do período ditatorial – esforço para o qual têm se deixado cooptar desde professores universitários até cineastas, além de jornalistas diversos, e cujo ponto culminante, até o momento, é a adoção, pela Folha de S. Paulo, do neologismo “ditabranda” (e a honrosa exceção que confirma a regra é a matéria de Míriam Leitão sobre Rubens Paiva).
Tal operação falseadora não é, como já dito, nova e não se dá unicamente em função da instalação da Comissão da Verdade: na verdade, desde que, durante o segundo governo Fernando Henrique Cardoso, o cientista político Carlos Nelson Coutinho cunhou a expressão “intelectuais à sombra do poder” para designar certos “experts” chapa-branca com acesso à mídia, tal fenômeno já era facilmente perceptível.
A tentativa de impor, no grito, uma visão deturpada e clamorosamente falsa do que foi o passado ditatorial no Brasil assenta-se sobre duas premissas centrais: a primeira sustenta que o golpe militar de 1964 se justificaria ante a iminência da implementação de um regime comunista no Brasil. Trata-se de uma hipótese tão apartada da realidade que nem os revisionistas a soldo das forças conservadoras – sejam eles historiadores travestidos de jornalistas ou jornalistas se passando por historiadores – ousaram sustentá-la nos caudalosos panfletos revisionistas que forjaram.
Pois João Goulart assomou ao poder democraticamente, como vice-presidente eleito, e os que, desde o momento em que a renúncia de Jânio Quadros o colocou no centro do poder, passaram a atentar contra a ordem democrática e a buscar meios para evitar sua posse são os mesmos – ou se equivalem aos – que hoje se esmeram em fazer valer a versão fantasiosa da ameaça comunista – algo a que o Brasil jamais esteve remotamente suscetível, como o comprovam tanto os informes da CIA quanto as informações advindas do PCB e do campo soviético.
Mesmo os poucos dispositivos esquerdistas com potencial de mobilização armada – como as células apelidadas de Grupo dos 11, de Brizola – só foram arregimentadas como último recurso legalista em reação às movimentações golpistas da direita, ativas durante a presidência de Juscelino Kubitschek e incessantes desde a renúncia de Jânio.
Truque da Guerra Fria
Pode-se até colocar em questão a inabilidade de Goulart ao patrocinar a sublevação e quebra de hierarquia no interior do exército e mesmo reconhecer que o discurso inflamado na Central do Brasil foi dois tons acima do que se esperaria, naquela hora incerta, de um presidente com apoio oficial claudicante.
Mas, em um país recém-industrializado e que sequer fizera a reforma agrária – de resto, inédita até nossos dias -, evocar o fantasma da ameaça comunista, como fizeram os golpistas (e hoje repetem seus defensores, não passou da repetição de um truque comum no Ocidente, à época.
Naquele tempo, podia até colar, a depender do público – e a imprensa colaborou intensamente para tal -, mas sabe-se hoje, com absoluta certeza, que se tratou de uma alegação que não se sustenta minimamente, desmentida por documentos históricos e que jamais efetivamente se constituiu em justificativa para rasgar a Constituição, derrubar um presidente eleito e, pela força das armas, encastelar-se no poder. (Onde, aliás, a permanência por longos 20 anos fornece a evidência maior de que nunca se tratou de combater uma imaginosa ameaça vermelha, mas de interesses outros.)
E a violação da ordem democrática pela força equivale a um salvo-conduto a legalizar a resistência e a luta contra os usurpadores da lei, pois não reagir contra quem tomou o poder ilegalmente é não apenas um ato covarde, mas civicamente desonroso.
A fantasia da lisura
A segunda litania bramida pelos defensores da ditadura nos fóruns democráticos sustenta que os anos em que os homens de farda estiveram – a ponta de baioneta e sem a legitimidade do voto – no poder foram caracterizados pela lisura administrativa, em contraposição a um presente em que o lulopetismo – e só ele – infectou o país com o vírus da corrupção sistêmica.
A ideia de que não havia corrupção ou de que esta fosse menor durante o governo militar é ilógica, irreal e risível. Pois pertence à lógica elementar, inteligível por qualquer ser humano de capacidade cognitiva próxima da mediana, a constatação de que um Estado autoritário onde vicejam a censura à imprensa e o controle dos órgãos de fiscalização pelas próprias forças ditatoriais no poder é incomparavelmente mais suscetível à corrupção do que qualquer governo eleito, sujeito aos mecanismos de controle e fiscalização republicanos e aos pesos e contrapesos entre poderes que a democracia impõe.
Mas não é preciso limitar-se ao terreno das suposições – ainda que óbvias – para fazer tal constatação: há fatos em abundância a sustentá-la, não obstante a amnésia seletiva e a premissa equivocada que marcam o debate.
A amnésia diz respeito à sucessão de escândalos de corrupção, malversação de dinheiro público e conivência com atos fraudulentos que foram três dos traços distintivos do regime de arbítrio: os casos Globo-Time Warner, Luftalla, Eletrobrás, Transamazônica, Capemi, Brasilinvest, Calmon de Sá, Escândalo da mandioca, INAMPS, Coroa-Brastel, Proconsult, Ferrovia do Aço, entre tantos outros.
Isso para citar os que, ainda que de forma restrita e atrasada – e a despeito da censura – chegaram ao conhecimento público, pois a montanha de dinheiro gasta em obras faraônicas – como a usina de Itaipu e a ponte Rio-Niterói – e o aumento exponencial da dívida externa brasileira durante o regime constituíram duas das maiores fontes potenciais de enriquecimento ilícito dos usurpadores do poder – e dos tecnocratas que os serviram -, as quais jamais foram submetidas a uma auditoria externa independente que comprovasse ou desmentisse as graves suspeitas que sobre elas pairam.
Herança maldita
Para se ter apenas uma ideia do grau de corrupção do Estado no período ditatorial, um mero vislumbre da ponta do iceberg, basta atentarmos para o fato de que a maioria dos políticos e das oligarquias conservadoras que hoje, justa ou injustamente, têm seu nome comumente associado, na boca do povo, a mamatas, negociatas e corrupção germinaram sob as sombras silenciosas da ditadura.
Foi, ainda, durante o período ditatorial que o Maranhão se tornou uma espécie de capitania hereditária dos Sarney, a Bahia quase um feudo de Antônio Carlos Magalhães, Santa Catarina o burgo dos Bornhausen, e que São Paulo foi governado por Paulo Maluf, para ficarmos em quatro dos mais representativos exemplos de políticos regionais que angariaram, com a chancela militar, um poder desmedido em seus estados – o que, ao atentar contra o equilíbrio democrático, constitui um evidente obstáculo à transparência e à auditoria pública dos atos governamentais.
Essa autêntica “herança maldita” legada pela ditadura, na forma do poder excessivo angariado por tais oligarcas, acabou por impor, na prática, aos governos democráticos que a sucederam a aliança com tais forças regressivas como forma de garantir a governabilidade – processo, aliás, que tem lugar já no momento zero da redemocratização, com a colocação do ex-líder arenista José Sarney, então no recém-fundado PDS, como vice na chapa do candidato à Presidência Tancredo Neves, o de suspeitosíssima morte.
Assalto à moral
Isso tudo para ficarmos no âmbito da degeneração da ética administrativa e da corrupção enquanto apropriação indébita do bem público. Pois nada se compara, em termos de corrupção moral, com a prática de tortura contra pessoas indefesos – muitas vezes meros suspeitos -, rotineiramente praticada pelo Estado ditatorial e por um longo período de tempo.
Trata-se de crime contra a humanidade e de terrorismo de Estado e, como tal, segundo o Direito Internacional, não prescreve nem está sujeito à anistia imposta pelo regime militar como condição sine qua non para efetivação da abertura política – que, ainda assim, foi extremamente lenta e eivada de arbitrariedade e truculência.
Convém ressaltar que a esquerda brasileira não só nunca recorreu ao crime bárbaro da tortura como exibe , há tempos, certo pudor em se valer da denúncia explícita da violência das torturas para angariar apoios. Trata-se, no meu entender, de um erro de estratégia.
É preciso que o cidadão comum, os homens e mulheres que não acompanham política, e as gerações que, quase 30 anos após o fim da ditadura e da publicação do livro Brasil, Nunca Mais não têm noção histórica precisa de quais eram os métodos do aparelho de repressão – contingente que alguns estimam em 75% da população – sejam informados acerca do grau de violência física e tentativa de anulação psicológica que foi impingido por forças oficiais a suspeitos rendidos.
A Comissão da Verdade tem por fim precípuo impedir a prorrogação da tortura, tanto na forma de método policial investigativo por excelência- sobretudo quando o suspeito é pobre -, quanto na forma que, desde a ditadura, vem incidindo nas famílias dos “desaparecidos”, às quais é negado o direito de saber do paradeiro de seus entes queridos, o que impede que pais e mães exerçam o direito sagrado de velar condignamente filhos cujo “crime” foi ousar lutar contra um regime ilegitimo.
Questão de tempo
O acerto de contas com o passado ditatorial do país é, por fim, uma tarefa imprescindível para as próprias forças institucionais militares, para que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica tenham a oportunidade de redimir-se pelo passado de arbitrariedades, mostrarem-se engajados na defesa dos valores democráticos e estabelecerem um novo padrão de relacionamento com a opinião pública – como o lúcido grupo de oficiais que, ao contrário de seus pares nos clubes militares, divulgou um manifesto apoiando a Comissão de Verdade dá mostras de reconhecer. Nesse sentido, o que a Comissão da Verdade proporciona é o avesso do revanchismo.
Tudo somado, esses defensores da ditadura que ora proliferam nos fóruns midiáticos não têm, portanto, credenciais morais para acusar quem quer que seja de corrupção nem, muito menos, razão a sustentar a imaginosa superioridade moral que atribuem ao regime de exceção em relação àquele em que os governantes são escolhidos diretamente pelo voto popular.
Podem espernear à vontade, mas o ajuste de contas com o passado ditatorial é inevitável: pode ocorrer em breve, se o STF honrar a lei, a história e o povo a que serve e se o governo sair de sua pasmaceira e nomear, o quanto antes, os membros da Comissão da Verdade; pode vir a demorar ainda mais. Mas, como ocorreu nos países vizinhos, será efetivo e civicamente histórico.
Fonte: Blog do Altamiro Borges