Falta alguém em Nuremberg
Tenho, volta e meia, escrito sobre a Comissão da Verdade. Pelejado contra o espectro do pijamato, que não se conforma com o fato, sequer, de se pretender o resgate de nossa memória histórica. E as vozes espectrais, nesses momentos, saem dos porões, emergem dos subterrâneos, e pretendem buscar argumentos que justifiquem a ditadura.
Isso aconteceu recentemente, quando escrevi um artigo para o jornal A Tarde, de Salvador, sobre os militares e a democracia. Não há ditadura justificável. Todas elas, vistam a roupa que vestirem, pretendem substituir o povo, acreditam-se, cada uma a seu modo, detentoras da verdade, portadoras do saber, e acostumam-se com essa condição até que a população, de uma forma ou de outra, as substituam por formas democráticas de governar.
Foi o que ocorreu com a ditadura no Brasil. NĂŁo vamos nos esquecer: foram 21 anos de terror, de arbĂtrio, de tortura, de subtração de quaisquer traços do Estado de Direito, de supressĂŁo completa das liberdades, desaparecimento de pessoas.
Como não lembrar disso tudo? Como não resgatar a verdade? Como não tomar conhecimento dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro? Como não nominar os criminosos, ao menos isso? Achei extraordinário que jovens tenham se articulado, nos últimos dias, para começar a revelar alguns torturadores que desfilam pelas ruas do Brasil como se fossem pacatos cidadãos e cumpridores da lei.
É curioso como esses torturadores se relacionam com os fatos histĂłricos. É como se fosse possĂvel apagar o que fizeram, pura e simplesmente. NĂŁo deve ser muito agradável a filhos, netos, esposa, quem seja do cĂrculo mais Ăntimo, surpreender-se com o monstro com quem moram e convivem, aquele que parecera atĂ© ali um pacato cidadĂŁo.
Como? Meu pai, você foi mesmo um torturador? Meu avô, você tirava sangue das pessoas? Não, eu só interroguei, será a provável resposta. Ou eu só anotava. Não, eu só prendia. Sei lá o que responderão.
Talvez seja o Ăşnico preço que venham a pagar – a revelação da verdade. É sĂł o que pretende a ComissĂŁo da Verdade, a rigor. E afinal, o STF, contrariando tudo que o Direito Internacional preconiza, resolveu anistiar os torturadores, deixar de considerar os crimes de tortura, seqĂĽestro, desaparecimentos de pessoas como imprescritĂveis.
A bem da verdade, nĂłs nĂŁo demos os passos que outros paĂses deram. Muitas nações que viveram experiĂŞncias de ditaduras, semelhantes Ă nossa, avançaram muito mais. A presidenta Dilma, quando chancelou a Lei da ComissĂŁo da Verdade disse, com propriedade, que cada PaĂs tem sua prĂłpria histĂłria, sua dinâmica, sua evolução caracterĂstica. É verdade.
O Brasil é uma nação complexa, e os processos históricos raramente são abruptos. Reclamam mais tempo, e muita vezes o que chamaria de direitos da impaciência não são atendidos, ao menos não o são prontamente.
Em todo caso, nĂŁo custa lembrar que na Argentina, a Enguia – como era chamado o general Videla – está preso e ficará na cadeia atĂ© o fim de seus dias, que nĂŁo está longe pois ele já ultrapassou há bom tempo a casa dos 80 anos. Junto com ele, há vários outros assassinos, torturadores cruĂ©is, que tambĂ©m estĂŁo atrás das grades. Isso tambĂ©m aconteceu no Uruguai, como foi possĂvel, tambĂ©m, ver o cruel Pinochet amargar prisĂŁo no Chile, para lembrar alguns exemplos.
No Brasil, nĂŁo Ă© disso que se trata. Ao menos nĂŁo o Ă© atĂ© que haja alguma modificação da decisĂŁo do STF, do meu ângulo, uma decisĂŁo absurda, que contraria, como já dito, o Direito Internacional, e os mais elementares princĂpios dos direitos humanos.
Se houve um Tribunal de Nuremberg, por que não haver justiça em relação aos torturadores brasileiros? Lembro-me de haver lido um livreto, de Davi Nasser, denominado “Falta alguém em Nuremberg”, referindo-se a Fillinto Muller, o comandante das torturas no Estado Novo, um dos supliciadores do respeitado, extraordinário revolucionário Carlos Marighella. Faltam muitos em Nuremberg.
O que dizer de um Carlos Alberto Brilhante Ustra, desfilando PaĂs afora, como se nĂŁo tivesse supliciado covardemente tantos brasileiros e brasileiras? Faltam muitos em Nuremberg.
Mas, insista-se, não é disso que se trata. Trata-se, com a Comissão da Verdade, de resgatar nossa memória, de não permitir que nada seja jogado para debaixo do tapete, tenho insistido nisso, e não pretendo parar porque julgo de minha responsabilidade histórica, militante, fazer isso. Experimentei pau-de-arara, choque elétrico, afogamento, sei como agiram os torturadores. Passei quatro anos numa prisão, como milhares de outros brasileiros.
Fui companheiro de tantos que morreram ao longo do caminho, e a lembrança deles, os sonhos que plantaram, nos convidam a nĂŁo permitir que nada daqueles sonhos e daquela luta sejam relegados ao esquecimento e que nenhum crime daquele tempo seja ignorado. No mĂnimo isso: revelar a verdade, entregá-la por inteiro ao povo brasileiro.
Eu me impressiono, e sei que volto a um assunto sobre o qual já escrevi aqui, mas não custa repetir, com o fato de que os representantes do pijamato ainda queiram falar em dois lados. Só houve um lado sob massacre, apenas um. Só houve uma ditadura, e ditadura dispensa adjetivação. Ela nunca tem nada a ver com democracia, com decisão do povo.
Se houve resistĂŞncia, e houve, aconteceu por conta do legĂtimo direito de se opor ao arbĂtrio, direito consagrado internacionalmente, e que vem, se quisermos, desde tempos imemoriais, e que está assinalado historicamente atĂ© na Constituição americana, cuja nação nasceu graças Ă resistĂŞncia armada. Pobre do povo que nĂŁo Ă© capaz de resistir ao arbĂtrio, Ă s ditaduras, que nĂŁo Ă© capaz de lutar pelas liberdades.
Navegar é preciso, viver não é preciso. Sob ditaduras, lutar é preciso, viver não é preciso. Ou, para garantir a vida e as liberdades, impõe-se arriscar tudo – e nós, milhares de jovens, sobretudo, jogamos nossas vidas para enfrentar o monstro armado, que sufocou inteiramente as liberdades por mais de duas décadas.
E aà fomos presos. E aà fomos mortos. E aà fomos seqüestrados. E aà tivemos nossos corpos sangrados, dilacerados. E aà vimos nossas crianças desamparadas, muitas delas também torturadas. Vimos mulheres sendo afrontadas de todo modo, inclusive sexualmente.
Vimos militantes serem empalados. Vimos tantos se exilarem. Vimos tantos se suicidarem, nĂŁo suportando o volume de sofrimentos que lhes era imposto. A ditadura foi o terror que sufocava as liberdades. SĂł havia esse lado.
E quando saĂamos da tortura, os que sobreviviam, Ă©ramos submetidos a simulacros de julgamento, e passávamos anos da prisĂŁo. Como dois lados? SĂł houve um que cometeu crimes.
Nossas reações, nossa luta pela liberdade e contra a ditadura, estavam amparadas no direito Ă resistĂŞncia, consagrado ao longo da histĂłria. E, alĂ©m disso, a ditadura nos impĂ´s punições absurdas, draconianas. SĂł falta que pretendam, como alguns argumentam, que paguemos novamente, embora, como já dito, nĂŁo tivĂ©ssemos cometido crime algum já que estávamos exercitando um legĂtimo direito.
A Comissão da Verdade será um momento forte de nossa história. Esclarecedor. Virá à luz uma grande parte das atrocidades da ditadura. Quem tem medo da verdade? Nossa verdade está a nu – é a verdade da resistência. Não temos nada a esconder.
Nos orgulhamos por ter resistido, por ter alumiado a escuridão, por tentar demonstrar que havia caminhos para derrotar a ditadura, por mostrar que mais cedo ou mais tarde ela seria batida pela força do nosso povo.
Pagamos com sangue. Tantos dos nossos foram mortos, e sempre mortos covardemente porque o torturador, olhado pelo ângulo moral, Ă© um covarde. NĂŁo Ă© um soldado em combate. É um ser desprezĂvel que massacra outro sem que este possa se defender.
É esse covarde que agora o Levante da Juventude está mostrando para a sociedade brasileira, desnudando-o. Insisto: não temos nada a esconder. Trata-se, agora, de revelar o lado da ditadura. Mostrar a verdade. Como diria Gramsci, o revolucionário não precisa mais do que da verdade.
É ela que virá à tona com a implantação da Comissão Nacional da Verdade, cujos integrantes deverão ser nomeados, esperamos, nos próximos dias. Que venha, com toda sua força histórica. Para resgatar a memória dos que tombaram, dos que lutaram, e para revelar a verdadeira face dos 21 anos de ditadura.
Fonte: Blog VioMundo



