Neste 9 de abril, a Bolívia completa 60 anos de sua Revolução Nacional. O golpe de Estado de 1952, planejado e liderado pela pequena burguesia do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), teve a participação espontânea e improvisada de mineiros e camponeses armados e colocou fim ao governo oligárquico marcado pelo monopólio de três empresários do estanho.

As importantes consequências que mudaram a história deste país – nacionalização das grandes mineradoras, reforma agrária, instauração do voto universal e reforma educacional –, são, porém, pouco lembradas por políticos e integrantes de sindicatos e movimentos sociais.

O nacionalismo revolucionário de seis décadas atrás deixou raízes com muitas semelhanças e muitas diferenças. Naquela época, depois da insurreição popular, a classe média que efetivamente subiu ao poder combatia o colonialismo e pregava a unidade territorial a partir do centralismo político e da “bolivianidade” homogênea, ignorando os povos originários indígenas.

Com isso, a recente onda de transformações no país, desde o primeiro mandato do presidente Evo Morales Ayma, a partir de 2005, é que está sendo considerada a verdadeira revolução democrática e cultural.

Essa denominação, atribuída por acadêmicos, militantes e a própria população, ganhou força após a eleição do líder de origem aymara e a aprovação da nova constituição do Estado Plurinacional da Bolívia, em 2009, que reconhece em seus artigos os direitos coletivos das “nações e povos indígenas originários camponeses” em todo o “pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico” que os caracteriza.

Em teoria e na opinião dos dirigentes do MAS (Movimento ao Socialismo), partido de Evo e que detém a maioria quase que integral nos governos municipais, departamentais e central, nunca houve na história do país um período em que essa parte da população realmente fosse incluída. No entanto, a oposição analisa a situação atual como extremamente delicada, chegando a garantir que a Bolívia nunca esteve tão divida quanto agora, em que, das 36 etnias existentes no país, somente os aymaras (cocaleiros) e os quechuas, do ocidente boliviano (região dos andes e do altiplano), têm força verdadeira.

Segundo Leonilda Zurita, secretária de relações internacionais do MAS e presidenta departamental da legenda em Cochabamba, o partido é coordenado exclusivamente pelas organizações sociais, profissionais e intelectuais.

“Os pobres, discriminados e humilhados são os donos desse novo processo de mudança liderado por Evo, com total participação de pequenos agricultores, movimentos de mulheres indígenas-camponesas, comunidades interculturais, operários mineradores, comerciantes e ferroviários”, lembra.

“Definimos nossa Constituição Política do Estado consultando, como nunca, ao povo, que a aprovou com 62% dos votos e, desde então, passamos de uma república colonial a um estado plurinacional. Nesse momento, todos se sentem dignificados e respeitados, aqueles que eram esquecidos agora têm voz, os irmãos indígenas antes desprezados, odiados e discriminados hoje são reconhecidos e defendidos na lei. Pela primeira vez o presidente está visitando cada canto deste país e temos muito investimento para obras públicas vindo de países parceiros à nossa luta, como Cuba, Venezuela e Brasil”, avalia.

Nesses mais de seis anos de mandato, a dirigente reconhece que o movimento de transformações tem sido lento, mas considera essa velocidade necessária. “Um processo de mudança não acontece da noite para o dia, o presidente está semeando aos poucos ao dar apoio a empresas e microempresas, construindo obras, hospitais, complexos esportivos e estradas para a integração e o desenvolvimento do país.

Na constituição estão todos os nossos direitos e essa já é a maior conquista, mas sabemos que temos debilidades e que falta muito o que fazer, como elaborar as regras e estatutos departamentais”, completa Leonilda.

Críticas

Esses êxitos não são um consenso. Para Oscar Mercado, assembleísta da aliança de oposição “Todos por Cochabamba”, a situação do departamento, por exemplo, não mudou nos governos anteriores, nem neste. “Na minha percepção, a gestão atual nos fez caminhar ainda mais para trás.

Prevemos problemas bem básicos e sérios para um futuro próximo, como falta de água e energia se não tivermos rapidamente investimentos e obras nesse sentido, além das outras questões nacionais de desemprego, segurança e narcotráfico”, afirma.

E acrescenta mais críticas: “depois da nova Constituição, nada do que foi prometido está resolvido, vemos um país dividido e polarizado, que não avança e tem pendências que perduram de muitos anos atrás”.

Oscar também acredita que, apesar da hegemonia do MAS, o diálogo entre cidades e governo central em busca de melhorias não flui. “Mais de 90% dos prefeitos e o governador de Cochabamba são da situação, o que deveria gerar estabilidade e facilitar a realização de planos comuns, mas isso não acontece.

Para mim, é por conta da submissão ao estado central. Me parece que ainda não assumimos a vocação autônoma que a nova constituição deu aos nove departamentos, ou seja, os políticos têm mais compromisso com os interesses partidários que com os regionais”, analisa.

Embora seja firme em suas críticas opositoras, ele enaltece a conquista da inclusão social. “Não concordo com os mecanismos para efetivar a integração social, mas de fato é um avanço, afinal somos iguais e todos devem participar e trabalhar em conjunto.

Acho que os temas de inclusão e das autonomias podem dar a este país, depois de muitos anos, a possibilidade de sair dessa situação em que estamos. O que falta é um novo senso boliviano, é atitude e compromisso de uma nova visão”, diz.

Santa Cruz

Responsável por cerca de 1/3 do PIB (Produto Interno Bruto) em 2010 e 70% do abastecimento de alimentos no país atualmente, o departamento de Santa Cruz é o único com um governador de oposição ao MAS e, por isso, posiciona-se abertamente como o mais crítico ao governo central. De acordo com Manlio Alberto Roca Zamora, secretário de desenvolvimento sustentável e meio ambiente, o modelo departamental funciona apenas no papel.

“A autonomia dada aos departamentos foi à medida dos interesses do governo, porque todas as leis autonômicas devem ser aprovadas em La Paz. Isso quer dizer que temos somente competências simples, e as decisões mais importantes são tomadas e autorizadas por um estado central”, diz.

Com relação à inclusão dos povos originários, ele é ainda mais contundente e opina que a condição plurinacional do estado é apenas uma etiqueta. “A imagem vendida lá fora, de que a Bolívia tem muito cuidado com os direitos indígenas, camponeses e originários, é um mito, um merchandising do novo governo.

Aqui no oriente, em departamentos como Beni, Santa Cruz e Tarija, percebemos uma clara ruptura no movimento: apesar de corresponderem a 2/3 das etnias do país, estão em menor quantidade de pessoas, se comparadas aos aymaras e quechuas juntos, e acabam sem voz”, diz.

Estado plurinacional

Para entender essa atual dualidade, vale a análise da combinação tensa entre indigenismo e nacionalismo do governo de Evo Morales, feita pelo sociólogo Fernando Mayorga, diretor geral do CESU (Centro de Estudos Superiores Universitários) da Universidade Mayor de San Simón, em Cochabamba, também autor do livro DileMAS.

“Estamos presenciando uma construção minimalista do estado plurinacional, feita lentamente e com muitos limites e contradições. Um exemplo é a teórica garantia dos direitos coletivos dos povos indígenas a partir da consulta prévia em algumas situações de conflito, mas a mesma constituição diz que essa votação não tem caráter vinculante, ou seja, o Estado não estará obrigado a cumpri-la”.

Segundo Fernando, o formato plurinacional está avançando devagar e esse movimento é adequado. “O Estado Plurinacional foi uma resposta à exclusão indígena na história da Bolívia.

Os avanços seguem devagar na aplicação de políticas efetivas, mas em termos normativos são claros e importantes os êxitos, apesar de a Constituição afirmar erroneamente a existência de 36 povos, quando na verdade são 36 idiomas. Enfim, é um desafio complexo construir um país novo e diferente tendo como base uma economia muito débil. Será necessário criar esse estado ao mesmo tempo em que ele é transformado”.

Em uma comparação simplista, é possível dizer que a revolução nacional de 1952 incluiu na sociedade os camponeses, que hoje têm movimentos organizados e voz ativa nas decisões governamentais, enquanto que a atual revolução democrática e cultural está integrando os povos originários indígenas, que aos poucos vai conquistando espaço, direitos e participação política.

Fonte: Opera Mundi