Brotaram dos fatos cumulativos um recado direto à direita militar que, aferrada aos seus dogmas e mistérios, esmerou-se ao proteger seus fascistas e torturadores, aqueles que, gestados no ventre da besta mais imunda, imolaram inúmeras vidas no apodrecido altar do anticomunismo.

E, não obstante a lenta e acanhada atividade institucional, que ainda gagueja no comparativo a outros países latino-americanos, a História segue implacável com os que violentam o curso natural da liberdade. Prima em acossá-los até o limite da vã reação a um irrefreável percurso.

A resistência e a persistência diante dos obstáculos ocasionados pelo obscurantismo, entretanto, não podem ser aferidos pelos indicadores do sucesso na localização e identificação de vestígios físicos dos guerrilheiros.

Apenas dois — Maria Lúcia Petit e Bergson Gurjão Farias — foram identificados e homenageados em 1996 e 2009, denotando, até pelo largo espaçamento, mais que o grau de dificuldade determinado pelos facínoras que realizaram “operações limpeza” Brasil afora, a tibieza e a pusilanimidade do projeto de estado-nação ainda vigente, em seus tímidos passos da memória e da verdade.

Estúpidos gorilas, porém, apenas abanaram a chama da exaltação à memória da luta que se fincou nas raízes da derrocada do seu regime de exceção. Por ironia, incrementando, ao alimentar sua antítese, novas e belíssimas páginas produzidas em verso e prosa acerca da oportunidade e do heroísmo da Guerrilha do Araguaia — em qualidade e quantidade efervescendo, a cada crepúsculo, renascendo.

Desde a primária e brutal ocultação de corpos que encontra seu paradoxo na fertilização do espírito e do imaginário — que, de modo progressivo e inexorável, resgata à vida, no seu mais elevado sentido, a inumação dos revolucionários — diretamente ao panteão dos grandes brasileiros construtores do Brasil. Do país de hoje e do seu futuro, à imagem e semelhança dos ideais de democracia, justiça, soberania e igualdade abraçados pelo Programa da ULDP (União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo).

Nesta obra de resgate, reapresentamos aqui um naco da História fincada no solo araguaio sob o inspirado bordão “a semente brotará”, um texto publicado na 4ª reedição do Caderno da Guerrilha do Araguaia, quando se completavam 32 anos do seu início e um novo momento na busca histórica se anunciava.

Que medo você tem de nós

“Quando o muro separa uma ponte une/Se a vingança encara o remorso pune/Você vem me agarra, alguém vem me solta/Você vai na marra, ela um dia volta/E se a força é tua ela um dia é nossa/Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando/Que medo você tem de nós, olha aí/Você corta um verso, eu escrevo outro/Você me prende vivo, eu escapo morto/De repente olha eu de novo/Perturbando a paz, exigindo troco/Vamos por aí eu e meu cachorro/Olha um verso, olha o outro/Olha o velho, olha o moço chegando/Que medo você tem de nós, olha aí/O muro caiu, olha a ponte/Da liberdade guardiã/O braço do Cristo, horizonte/ Abraça o dia de amanhã, olha aí” (Canção entoada pelos guerrilheiros: Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro)

Assim falava o poeta, muito em voga nos tempos do regime militar. E assim fala hoje, décadas depois. No início de 2004, Paulo César Pinheiro, com cerca de 800 composições gravadas e aproximadamente 1.500 na fila de espera, respondeu a uma pergunta sobre a mais marcante música do período, com essas palavras: “Pesadelo, sem dúvida. Contaram que durante a Guerrilha do Araguaia, na selva, eles cantavam Pesadelo. Dizem ter sido a música que mais ajudou, nessa fase de luta armada, a todos eles, a mais forte politicamente que a gente fez, e a única direta, sem subterfúgios, sem metáforas, que passou (NR: na censura do regime militar)”.

Nessa guerreira inspiração, mesmo após o seu final, muitas lutas foram paridas pela Guerrilha do Araguaia, que teve seus fundamentos instalados a partir da metade dos anos 1960, e deveria – de acordo com a tradição imposta pelo colonizador – ser apenas mais um episódio esquecido das lutas do nosso povo, pelos séculos adentro. Entretanto, não foi o que se passou.

Marcante epopeia

No início de 1975 o governo do general Ernesto Geisel declarou oficialmente encerrada a sua “guerra suja” – que rompeu todos os conceitos e princípios da Convenção de Genebra –, mas, desacatando a determinação do regime fascista, esse assunto passou a dominar as lutas e o imaginário da população sul paraense e adjacências, e de todo e qualquer cidadão brasileiro que teve notícia do conflito.

Não houve, nas décadas que se seguiram, como falar de resistência e luta sem uma menção à epopéia do Araguaia. Também se sucederam as expedições, as investigações e os depoimentos voltados para o desvendamento das circunstâncias em que tombaram os comunistas e os moradores do Araguaia – pelo resgate dos seus corpos.

Uma pergunta básica rondou o respeito e até a simples curiosidade pela imagem dos guerrilheiros e pelo fio que os conduzia pelos labirintos da política: afinal, que gente era essa que, com o destemor dos guerreiros gregos mirmídones de Aquiles, levava ao desespero as tropas oficiais, mobilizando-as em proporções nunca vistas e merecendo uma caçada que levou a Guerrilha até os limites do massacre da Lapa, em 16 de dezembro de 1976? Até os limites dos não revelados segredos da luta, pois esta nunca cessou, as lendas e verdades recobrem os guerrilheiros de mistérios que o tempo apenas começa a descortinar.

Resistência: cultura construída

No espírito guerrilheiro do Araguaia, nunca houve trégua. Os generais, mesmo com assessoria estrangeira, enfrentaram com imensos prejuízos e dificuldades a guerra no Araguaia contra homens precariamente armados e com uma experiência militar incipiente, ainda que adaptados à selva e profundamente ligados ao povo da região.

Ressentiam-se também do impacto causado pelo formidável desempenho, em 1974, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), legenda do povo unido na qual se abrigavam quase que invariavelmente as tendências políticas de oposição à ditadura e que impôs ao outro partido (a Arena, da base parlamentar do regime) uma derrota acachapante nas urnas. A alta oficialidade mais reacionária mal disfarçava o medo de que a resistência armada ressurgisse de alhures.

(Essa preocupação foi apenas confirmada após o massacre da Lapa, em 16 de dezembro de 1976, e a apreensão dos documentos em debate no Comitê Central, particularmente “Grande Acontecimento na Vida do País e do PCdoB”, no qual Ângelo Arroyo apresentava uma análise do confronto e lições que levavam adiante a luta armada como desafio voltado para a derrubada do regime militar e sua substituição por um outro, fundado na liberdade e no respeito aos direitos do povo).

Aterrorizada com tão grandes preocupações relacionadas à luta guerrilheira, a ditadura não conseguiu, entretanto, impedir que, em 1975, um pequeno contingente de mulheres, formado em especial pelas que não haviam sido atingidas diretamente pela repressão, se reunissem para comemorar o Ano Internacional da Mulher. Nessas circunstâncias, foi lançado, no Rio de Janeiro, o primeiro Manifesto pela Anistia e o Movimento Feminino Pela Anistia e Liberdades Democráticas (MFPA).

Renovada produção literária

A pugna pela anistia ampla, geral e irrestrita foi articulada ao levantamento, acompanhamento e divulgação, dentro e fora dos presídios e do País, da situação dos presos políticos, exilados ou banidos, e desaparecidos – desses, mais da metade guerrilheiros. As informações sobre as lutas – em especial relativas à Guerrilha do Araguaia – saíam das prisões mediante relatos de sobreviventes e de quadros comunistas prisioneiros do regime. Nessa situação, o cárcere passou a ser o centro irradiador da agitação que pregava a restauração das liberdades e o fim do regime militar.

Nessas circunstâncias, foi singular a reunião, no Instituto Penal Paulo Sarasate (em Fortaleza), de presos políticos como José Duarte, Rogério Lustosa, José Genoíno Neto, entre outros, que ampliavam, com sua presença, o impacto das notícias para fora da prisão e estimulavam a organização em seu exterior. Contribuíam significativamente advogados que transitavam por todo o País, estruturando a defesa de seus constituintes, a exemplo do então Luiz Eduardo Greenhalgh – que viria posteriormente, de um outro modo, a abraçar a causa do resgate dos guerrilheiros.

O MFPA passou a atuar em diversos estados da Federação, organizando democratas e patriotas de diversos ramos de profissões liberais, mulheres trabalhadoras, estudantes secundaristas e universitárias, mães de presos políticos, e incorporando os homens até o surgimento do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). A promulgação da limitada Lei da Anistia, no dia 28 de agosto de 1979, não conteve a luta pelo esclarecimento do paradeiro das vítimas do regime, chegando à realização de um segundo Congresso do CBA, dessa vez no Brasil (em Salvador; o primeiro fora realizado pelos exilados em Roma, em junho de 1979).

Essa ofensiva incluiu até a solicitação de audiências com ministros da Justiça da ditadura, ações judiciais de responsabilização contra a União, de retificação de registros de óbitos e Habeas Data. E, cada arremate de inéditas informações, era acompanhado por uma nova produção literária.

Da luta política à cultura da luta

Daí surgiram inúmeros escritos, em verso e prosa, embalados ao solo do fascínio exercido pelo contingente de homens e mulheres que ousou encarar o sol e a selva de frente, oferecendo uma contribuição decisiva para o fim da ditadura e restauração das liberdades democráticas. Essa farta literatura foi produzida e passou a dividir espaço nas livrarias e estantes, intensificando-se a cada expedição feita à região.

A nossa cultura foi paulatinamente contagiada pelo exemplo dos guerrilheiros do PCdoB, vistos como legítimos sucedâneos dos lutadores que semearam nossa História com sua rebeldia, energia revolucionária e entusiasmo inexcedível pela esperança de um mundo novo cantado em verso e prosa.

Após inúmeras reportagens, artigos e livros publicados, o cinema ganhou sua primeira película a partir de uma singular experiência do diretor de “Conspiração do Silêncio”, Ronaldo Duque, vivida em 1977 – cerca de dois anos após o final dos combates no Araguaia. Duque foi para Marabá com a missão profissional de montar uma estação repetidora de TV para a prefeitura local. Naqueles dias, um caudaloso inverno desalojou de suas casas os moradores da Velha Marabá e abrigou essas vítimas da enchente no estádio municipal.

Nas rodas em torno da fogueira, aos goles de uma “cachacinha” para aquecer, Duque sorveu também, estupefato, as notícias de uma guerra que desconhecera até então, narrada em tom quase conspirativo. Depois, presenciou uma situação patética, quando um homem-câmera que trabalhava na repetidora ultrapassou os limites da mesma “cachacinha” e executou numa vitrola o disco militar para mobilização de emergência.

“Foi um Deus nos acuda”, contou Duque, lembrando o aperreio da situação com a chegada dos oficiais e soldados, agressivos, armados até os dentes. Se, dois anos depois, o ambiente ainda era aquele, então essa guerra tinha que virar filme – raciocinou. Daí pra frente sua guerra particular para levar a Guerrilha do Araguaia às telas percorreu quase trinta anos.

Buscas contínuas

Ao longo de mais de três décadas, contadas a partir do seu crepúsculo, adentrando por um novo século, o partido protagonista da Guerrilha, o PCdoB, os familiares e seus advogados, os sobreviventes da guerrilha, os repórteres e historiadores, buscaram continuamente, junto ao povo da região, o esclarecimento dos fatos ocorridos no Araguaia e a localização dos corpos dos guerrilheiros – jovens e velhos comunistas, operários, camponeses, estudantes, engenheiros, geólogos, médicos e de outras profissões liberais que se internaram na selva – um terreno mais favorável ao enfrentamento da ditadura, resistindo por cerca de três anos às investidas militares das três armas.

No balanço oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, subordinada ao Ministério da Justiça do primeiro governo Lula, 61 pessoas morreram durante o conflito e seus corpos estão enterrados em cemitérios clandestinos da região.

Porém, de acordo com o depoimento do coronel Pedro Correia Cabral (autor do romance “Xambioá – Guerrilha do Araguaia” que serviu como piloto da Força Aérea na região do conflito) e de outras fontes militares, cerca de 50 desses corpos foram reunidos num único local da Serra das Andorinhas, na área onde operava o comando militar das Forças Guerrilheiras do Araguaia (FORGA), cobertos com pneus e gasolina, e queimados, numa evidente tentativa de apagar a história e incinerar quaisquer vestígios de um pensamento nacional e social libertário no País.

A Caravana de 1980

Como efeito sucedâneo da luta acumulada em defesa da anistia, a primeira incursão montada para o resgate da história e dos corpos dos guerrilheiros ocorreu em 1980, ainda em plena vigência do regime militar e quando o medo contaminava mais o ambiente. Essa caravana reuniu familiares e amigos dos guerrilheiros executados pela ditadura, além de militantes do PCdoB.

A Caravana foi articulada pelos movimentos de Anistia nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Ceará, Pará e Espírito Santo, em conjunto com os parlamentares comprometidos com a defesa dos direitos humanos no Brasil. Daí resultou um grupo de 20 pessoas – a maior parte com graus de parentesco próximos aos guerrilheiros – que, nos últimos dias do mês de outubro de 1980 e entrando pelo mês de novembro, rumou para o Araguaia com o objetivo de obter informações sobre os protagonistas da resistência armada. Sua organização contou com forte empenho do Comitê de Anistia de Belém do Pará e em especial de Paulo Fonteles – assassinado posteriormente pelo latifúndio e sua UDR –, representando a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

“Paulo, como era por nós chamado carinhosamente, foi o nosso cicerone, guia e também segurança. Conhecia mais do que ninguém todas as áreas que percorremos, demonstrando que já havia transitado antes por ali, pois trabalhava como advogado dos trabalhadores rurais, defendendo-os nos conflitos com os grileiros do sul do Pará” – lembra Noélia Ribeiro, uma das organizadoras da caravana, irmã da baiana Luzia Reis, que pertenceu ao destacamento C.

Foi nessas viagens que Fonteles fez o reconhecimento, identificou e selecionou as áreas, povoados e pessoas de interesse para que os familiares pudessem conhecer, entrevistar e obter informações.

Cordão de isolamento

Narra Noélia, resgatando o momento pulsante da Caravana:

“Paulo era uma pessoa extraordinária, destas que jamais esquecemos. Traçou todo o roteiro do nosso trajeto. Em várias ocasiões, percebemos que éramos observados, acompanhados, vigiados, mais acintosamente na região do Castanhal da Viúva, área em que Osvaldão foi executado. Todos os participantes da Caravana eram pessoas determinadas a obter sucesso na viagem, corajosas e destemidas.

Mas confesso que, mesmo conscientes da grande razão que nos fazia andar por toda aquela região, considerada à época área de segurança nacional onde havia ocorrido uma guerra de guerrilhas, onde tombaram, foram presos e torturados, nossos entes queridos e populares da região, às vezes tivemos medo. Ao anoitecer, ficávamos sempre próximos uns dos outros, não conseguíamos dormir facilmente.

Certa vez, em um dos povoados mais no interior da mata, o único local viável para dormirmos era uma casa de farinha sem paredes dos lados. Jogamos nossas redes pelo chão e dormimos todos juntinhos. Na verdade, não dormimos, só repousamos. Então pudemos avaliar como viveram nossos guerrilheiros.

Nós, participantes da Caravana ao Araguaia, em outubro de 1980, vivenciamos inéditas e inesquecíveis emoções, no sentido doloroso – e às vezes comovente e gratificante. Desde que chegamos a Belém do Pará, a Marabá, Metade, Bacaba, São José, Piçarra, Vila Nova, Pau Preto, Araguaína, Xambioá, São Geraldo…

Em Boa Vista dos Perdidos (povoado criado pelos guerrilheiros) fomos recebidos em festa. A população local organizou um almoço ao ar livre, no meio da rua. Em outros povoados, sentimos as pujantes atitudes de solidariedade, vontade de colaborar, a coragem de algumas pessoas que se aproximavam para dizer que conheceram Jana, Valquíria, Áurea, Dina, Dinaelza (Mariadina), Wandick (João), todos executados. E falavam sobre os guerrilheiros com carinho e saudades.

Outros nos hospedavam como era possível – pois não existiam pensões ou hotéis por onde andávamos –, na casa de farinha, no barracão, na sala ou cozinha da sua própria casa. Tomávamos banho nos igarapés, armávamos nossas redes e repousávamos. No povoado de Vila Nova, fizemos uma grande reunião com lavradores que nos procuraram para conversar, saber notícias. Queriam informações, orientações – fornecidas pelo Paulo Fonteles.

Em algumas regiões verificamos que a semente ficou plantada e floresceu. Em outras, constatamos nitidamente a marca de enorme coerção e pavor nos populares. Conseguimos obter informações inéditas sobre os locais de corpos enterrados, em cemitérios clandestinos e oficiais (Veja fotos). Também realizamos várias entrevistas com pessoas corajosas e até sequeladas pela guerra – como foi o caso do Lauro, entre outros –, que conviveram com alguns dos guerrilheiros. Esses moradores relataram fatos e ocorrências que testemunharam.

Entretanto, no Castanhal da Viúva, o Paulo Fonteles nos alertou acerca do comportamento ao entrarmos nessa região, considerando que era uma área de grande risco apesar dos seis anos transcorridos desde os últimos embates. Alertou-nos que deveríamos falar pouquíssimo e, sobretudo, ouvir. Lá foi assustador. Todos tivemos medo. Até o Paulo.

Percebemos uma vigilância sobre nós – forte, ostensiva e próxima. Muitos de nós chegamos a nos arrepiar. Paulo estava sentado ao meu lado no caminhão que nos transportava e procurávamos transmitir serenidade para o grupo. Nós, os mais jovens (à época, eu tinha 29 anos), e militantes do PC do B, nos sentíamos responsáveis por todos. Entre estes, destacavam-se, além do Paulo, eu, Vitória Grabois e Diva Santana.

As pessoas mais idosas, em particular pais e mães de guerrilheiros mortos ou desaparecidos, estavam visivelmente transtornadas: o senhor Edgar, dona Irene, D. Helena, Sr. Pedro, D. Júlia, D. Cirene, Tia Rita, D. Alzira, entre outros. Aproximei-me do Paulo e disse-lhe estar arrepiada. Ele mostrou-me os seus braços, dizendo-me baixinho: ‘também estou’. E confessou: ‘Aqui eu tenho medo; cuidado, não devemos fazer comentários’. Nessa área era como se a guerrilha ainda existisse.

O Exército permanecia – de forma disfarçada, mas atento, vigilante. Local esquisito. A escassa população existente nos poucos povoados tinha medo de que nos aproximássemos… e de se aproximarem e falar conosco. Conseguimos poucos contatos e quase nenhuma informação nova. A população vivia ali sob forte pressão.

Em muitas ocasiões sentimos a situação de perigo. Inicialmente em Marabá, na missa que assistimos, rezada por Dom Alano (Arcebispo), para ‘todos os mortos da guerrilha do Araguaia’. Neste dia havia a presença acintosa do exército à paisana dentro da igreja, entre os populares.

Na saída, todos os que tinham consciência do risco que corríamos naquela viagem sentiram receio, o que nos fez ter cautela e observar os arredores. Também em Bacaba, quartel e local de torturas de guerrilheiros, inclusive com cemitério clandestino e prováveis sepulturas da Jana e de outros. (Posteriormente, soubemos que o exército deu fim aos corpos, cujas sepulturas nos haviam sido indicadas, retirando, cremando e arremessando as cinzas em áreas de garimpo onde reinava o Curió).

Pairava em todos nós, lá no fundo do coração, uma tênue esperança, de uma notícia, informação, de alguma luz ou sinal de vida de algum dos entes queridos, do amigo, do companheiro guerrilheiro, apesar de sabermos todos mortos.

No final, parte dos membros da Caravana seguiu para Brasília onde haveria um Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia. Enquanto ocorria a Caravana, em alguns estados se realizavam vigílias dos mortos e desaparecidos. Especialmente do Araguaia, devido à importância do fato ocorrido. Tornava-se fundamental a divulgação máxima da realização da Caravana, até porque o governo naquela época fazia um cordão de isolamento em toda a região”.

De acordo com a revista IstoÉ (edição 1798, de 24/03/2004), preocupados em 1980 com uma caravana liderada pelo advogado Paulo Fonteles que foi ao Araguaia localizar vestígios de guerrilheiros, os agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) montaram uma operação para amedrontar os moradores que pudessem fornecer informações sobre cemitérios clandestinos.

As descobertas de Fonteles

Numa de suas principais conclusões, Fonteles, que produziu um impressionante relato do legado histórico da Guerrilha, desenhou o perfil político do combate e dos guerrilheiros, declarando que o povo da região ligou-se a eles em alto nível. Foi quando, pela primeira vez, na Caravana de 1980, o “silêncio da massa” foi rompido.

“O objetivo da Caravana era buscar informações sobre aqueles que perderam suas vidas e desapareceram nas barrancas do Araguaia. Quase ninguém da região acreditava no sucesso da viagem. O povo, porém, falou. Pouco ainda, é verdade. Em certos lugarejos, o Exército foi de casa em casa, ameaçando quem falasse. Mas os que falaram apontam numa só direção; o povo da região apoiou e participou da Guerrilha”. Fonteles descreveu para a Tribuna da Luta Operária a atitude de um jovem camponês, que recitou, de memória, um “romanço” da guerrilha – bem no centro da área do conflito – para os membros da Caravana.

“Senhores, peço licença/Me ouça com atenção/Vou falar sobre o Brasil/Da atual situação/De um camponês cá do Norte/Que sendo valente e forte/Ainda passa fome/Me corte a língua a facão/Me jogue no meio do inferno/No meio do caldeirão/Pra ser frito em óleo quente/Misturado com sal quente/E ser comido pelo cão/Agora vou começar/Não deixo para depois/Quem tem massacrado o povo/Não vai nem comer arroz/Quem semeou tempestade/Não vai colher bondade/Vai pagar em três por dois”

Fonteles confirmou um fato já descrito por Ângelo Arroyo: centenas de lavradores, castanheiros, pequenos comerciantes, barqueiros, artesãos, foram presos. Povoados, como São Domingos das Latas (hoje São Domingos do Araguaia, levando em sua bandeira as armas dos guerrilheiros) e Palestina, presenciaram a prisão de quase toda a população. Em um só dia foram presas (por meses) 150 pessoas – torturadas até a náusea, à loucura ou à morte:
“Só se pode chegar a uma conclusão: centenas de prisões queriam dizer que centenas de moradores haviam se ligado à Guerrilha, em alto nível. Muitos deles, dezenas talvez, nunca voltaram. Hoje, creio, já podemos afirmar que uma grande parte da população apoiou a Guerrilha com informações, alimentação e calçados. E outra parte, menor, porém expressiva, participou, da União pela Liberdade e os Direitos do Povo, integrando-se na própria luta guerrilheira. Por isso a Guerrilha sobreviveu tanto tempo. Ainda é cedo para precisar a dimensão dessa participação popular. Só quando os moradores não tiverem mais medo de falar, nem de se identificar com aquela jornada de lutas, então se saberá”.

Repositório da libertação

Hoje, mais de trinta anos depois, já se pode saber com uma maior segurança, como vimos nas diversas experiências de contato com a população do Araguaia e como veremos adiante. Entretanto, para saber tudo, seria necessário, como pensava Fonteles, o mais profundo grau de integração com a luta dos camponeses do Araguaia.

Fonteles narrou ainda a chegada da Caravana à região dos Caianos, no povoado de Boa Vista do Pará, fundado pelo dirigente guerrilheiro Paulo Rodrigues, os camponeses gritavam a plenos pulmões: “Esta é a terra da liberdade, nós estamos colhendo a semente que eles plantaram”. Disse ele: “Centenas de camponeses fizeram uma verdadeira festa de confraternização. Muitos andaram horas para abraçar os caravaneiros. E numa região onde a Guerrilha teve menor densidade política e militar, pois muito cedo, o Destacamento C, dos Caianos, deslocou-se para a região da Gameleira e Faveira. Mesmo assim, setores expressivos da massa apoiaram os guerrilheiros”.

Na época, Fonteles já constatava que, em todo o Sul do Pará, se desenvolvia um dos movimentos de massas mais ricos do Brasil, no qual milhares de camponeses erguiam seus punhos, e não raro as armas, para lutar pelo direito a terra, em oposição ao latifúndio e aos grandes grupos econômicos.

Naquele momento, os camponeses da área haviam conquistado importantes vitórias, a exemplo do que ocorreu no Baixo Araguaia, onde se implantou o Destacamento C da Guerrilha (dos Caianos), onde mais de 250 mil hectares de terras foram apropriadas pelo povo, numa verdadeira guerrilha das massas. “Nos últimos doze meses mais de 30 pessoas, na grande maioria pistoleiros, morreram neste conflito. A Guerrilha do Araguaia foi, incontestavelmente, a sementeira desta extraordinária luta camponesa”, concluiu.

Mas, acrescentava, “Esta importância não se limita ao movimento camponês do Sul do Pará. A Guerrilha do Araguaia é o repositório mais importante da luta armada do povo brasileiro pela sua libertação. Confirmou que esta luta é viável para combater o regime tirânico em nosso País. Pouco mais de meia centena de revolucionários, com apoio e participação das massas foram capazes de enfrentar durante quase três anos o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, o diabo”.

O Araguaia presente

Dos anos 1970 aos dias atuais muita água passou sob a ponte. Quando, em dado momento, se pensava que o tema caíra no esquecimento, ao gosto da elite brasileira, aflorou renitente uma nova revelação.

Mas, desde o início dos combates, em abril de 1972, foram numerosas as tentativas frustradas de divulgação dos acontecimentos, vedadas e identificadas pela famigerada tarja preta da censura, pelos jornais Opinião (experiência que durou até 1974, quando eventualmente era possível ler um comunicado das FORGA no mural da redação) e Movimento (a partir de 1975, censurado sucessivamente na redação e, em seguida, constrangido a enviar seus originais aos censores da ditadura).

Posteriormente, o próprio jornal Movimento e o gaúcho Coojornal viriam a tratar do tema com regularidade, publicando matérias, entrevistas e depoimentos.

Na fase dos combates, essas experiências de jornalismo independente ou alternativo, como se dizia, eram por sua vez encorajadas pelo destemor dos guerrilheiros. Nas redações havia uma sede pelas notícias desse “front”. E os comunistas não deixavam por menos. Com todas as dificuldades, pernas de muitas léguas e mãos ágeis levavam novidades.

Entre as primeiras reportagens sobre a guerrilha do Araguaia está uma sequência publicada em 1979 pelo jornalista Fernando Portela no Jornal da Tarde – que deu origem ao seu livro, “Guerra de Guerrilhas no Brasil”. Depois, excetuando-se referências menores ao episódio, passaram-se muitos anos até que o jornal O Globo, apresentando efetivamente novas descobertas, publicasse, em 1996, uma série de reportagens com fotos inéditas.

Entretanto, nos últimos anos do século passado e nesta primeira década do século 21, a dedicação ao tema cresceu de tal modo que não se passam dias sem que uma novidade incremente o cenário de disputa entre publicações da grande imprensa — como ocorreu com as revistas brasileiras de maior circulação na primeira metade de 2004, com a divulgação de depoimentos inéditos de oficiais e soldados envolvidos no processo repressivo dos anos 1960 e 1970.

A “reciprocidade” da Anistia

No período que sucedeu a Guerrilha, merece destaque o modo como o silêncio dos militares vem sendo progressivamente quebrado. Os fatores explicativos dessa intensidade possuem diversos vetores articulados.

Estão na distância determinada pelo tempo histórico; no afrouxamento do código e do pacto do segredo entre os oficiais e seus subordinados; no esgarçamento da chamada Comunidade de Informações; ou, ainda, contraditoriamente, na certeza da impunidade — emblemática na desenvoltura do coronel reformado do Exército Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, principal quadro militar do massacre de dezenas de guerrilheiros e de centenas de moradores, carcereiro do sonho do Araguaia, que optou pela continuidade das suas ações numa outra esfera, a eleitoral.

Entretanto, com o pano de fundo do controle aurífero na região de Serra Pelada, controlada por ele desde 1980, quando foi nomeado interventor do garimpo pelo general de plantão na Presidência da República, general João Baptista Figueiredo.

Como prêmio Curió ganhou uma cidade e continuou semeando execuções. Curió fundou Curionópolis (PA), que se emancipou de Marabá em 1988, exercendo o mandato de prefeito após uma longa folha de serviços prestados ao regime fascista numa região onde fez muitas vítimas entre os garimpeiros, mantendo-se indiferente a quaisquer sinais de mudança — que de fato não ocorreram.

Rastro sanguinário

Exemplo disso foi o assassinato de Antônio Clênio Cunha Lemos, presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada, em Curionópolis, na madrugada do dia 17 de novembro de 2002, com cinco tiros, dois dos quais na cabeça. Dois anos antes, seu sucessor, Raimundo Benigno Moreira, havia sido esfaqueado em Serra Pelada.

A execução resultou da disputa entre dois grupos rivais de garimpeiros pelo controle da Cooperativa dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp), um dos quais — hegemônico — ligado ao ex-deputado federal e ex-interventor de Serra Pelada. Aconteceu às vésperas das eleições para escolha da nova diretoria da Coomigasp, inscrita uma chapa de oposição ligada ao Sindicato dos Garimpeiros de Serra Pelada, liderado até então pela vítima.

Muitos garimpeiros chegavam à região para votar contra a permanência do grupo de Curió à frente da Cooperativa. Curió agiu para barrar a entrada dos garimpeiros no local do enterro, armar trincheiras nas margens da estrada e queimar uma ponte para impedir a passagem de veículos.

Antes de morrer, Lemos denunciou que, caso algo ocorresse contra ele, o culpado seria o prefeito Sebastião Curió. Estava marcada para o dia 19 de novembro de 2002 uma reunião na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (CDH), quando Lemos apresentaria uma lista com 41,2 mil garimpeiros que pediam reintegração à Cooperativa.

O então presidente da CDH, deputado federal Orlando Fantazzini, foi a Curionópolis acompanhado de agentes da Polícia Federal para elaborar um relatório sobre a situação e se reunir com os garimpeiros e parlamentares da região. No dia 20 de novembro, lideranças locais, representantes da OAB e da Igreja, se reuniram com o governador do então governador do Pará, Almir Gabriel, e escolheram uma comissão que buscaria uma solução pacífica para o conflito.

Serra Pelada para ianques

Em vão. Hoje, as evidências apontam ainda mais solidamente para a razão fundamental de tanta violência que se abateu sobre a população daquela região: a cobiça internacional — e particularmente dos EUA — sobre os preciosos minérios amazônicos.

Em julho de 2004, sob o título “Garimpeiros vendem parte de Serra Pelada para americanos”, a Folha de São Paulo (04/07/2004) noticiou que o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral) considerou ilegal um contrato celebrado entre a Coomigasp e uma mineradora norte-americana, que envolveria a exploração de uma jazida de 180 toneladas de ouro e investimento de US$ 240 milhões.

O DNPM, autarquia subordinada ao Ministério das Minas e Energia, anunciou que o contrato não apresentava valor legal, pois a cooperativa não havia “nenhum direito” sobre o aproveitamento de bens minerais em Serra Pelada. A Coomigasp afirmou que seriam exploradas mais de 20 toneladas de ouro ocultas em uma montanha de entulho — atividade também vetada pelo DNPM.

Efetivamente, a Coomigasp, liderada por Curió, assinou contrato com a empresa norte-americana de lapidação de pedras preciosas Phoenix Gems no dia 5 de junho de 2004. O contrato foi assinado na vila de Serra Pelada (a 150 km de Marabá) entre o representante da empresa, Brent Smith, e Josimar Elízio Barbosa, presidente da Coomigasp, e ficou sob os cuidados do gabinete do prefeito de Curionópolis, o Curió, fundador da cooperativa.

A Phoenix se comprometeu a entregar US$ 40 milhões aos garimpeiros, a título de empréstimo, até 31 de julho, e a doar US$ 200 milhões assim que a cooperativa obtivesse do DNPM a concessão dos direitos minerais na área. Sem o documento, poderia explorar apenas os rejeitos abandonados pelos garimpeiros — na avaliação de Curió, cerca de seis toneladas de ouro.

De acordo com a FSP, o negócio reativou a disputa pelo espólio do maior garimpo já descoberto no Brasil. O presidente da Coomigasp disse que somente os associados estariam representados no acordo, inspirado na fórmula de Curió, que distribuiu terras aos bate-paus que o ajudaram no combate à Guerrilha. Cada um receberia R$ 45 mil em dinheiro, mais uma casa no valor de R$ 16 mil numa nova vila a ser construída.

Por causa desse entendimento, o presidente do Sindicato, Benigno Moreira, ameaçou invadir Serra Pelada com 30 mil garimpeiros, recuando apenas diante do compromisso do governo federal de buscar uma solução. Barbosa já circulava então por Serra Pelada com três seguranças.

Ouro e violência

Muito mais que uma mera coincidência, a história de Serra Pelada começava em 1976, no ano seguinte à proclamação oficial do fim da Guerrilha do Araguaia, quando um geólogo do DNPM encontrou amostras de ouro no sul do Pará — de acordo com o jornalista Ricardo Kotscho em “Serra Pelada, uma ferida aberta na selva”. O sigilo foi quebrado em 1977, quando a CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), que tinha direitos sobre a jazida, anunciou a existência de ouro. Em 1979, o ministro de Minas e Energia da ditadura, Shigeaki Ueki, confirmou oficialmente a existência do ouro na Serra de Carajás.

Em 1980, levas de migrantes se deslocaram para o Pará e invadiram o garimpo — pertencente a uma subsidiária da Vale, a Docegeo. Em 21 de maio de 1980, o governo federal promoveu uma intervenção na área, já ocupada por 30 mil garimpeiros, evidentemente comandada pelo então major Curió, o eleito das intervenções consideradas estratégicas pelo regime militar.

Em 1981, a CVRD tentou reaver a posse da área, após o esgotamento dos depósitos de ouro na superfície, mas os interesses eleitorais da ditadura (eram 80 mil garimpeiros) prorrogaram a exploração. O garimpo foi reaberto em 1982, Curió foi eleito deputado federal e apresentou um projeto de lei que permitia aos garimpeiros mais cinco anos de atividade.

A violência prosseguiu, impune, agora derramando o sangue dos que lutavam pelo ouro. Em 1987 os garimpeiros interditaram a ponte rodoferroviária sobre o rio Tocantins, exigindo que o governo rebaixasse a cava do garimpo. A PM do Pará — a mesma do massacre de 21 camponeses em Eldorado de Carajás (ou Curionópolis) — desimpediu a ponte deixando, de acordo com a fonte oficial, três garimpeiros mortos, e, de acordo com os garimpeiros, mais de 60.

Em março de 1992, o governo não renovou a autorização de 1984, e o garimpo voltou a ser concessão da CVRD. Em 1996, os garimpeiros invadiram a mina, mas uma operação do Exército e da Polícia Federal, já no rumo da privatização da CVRD, pôs fim à obstrução de 171 dias nos acessos a Serra Pelada.

“Pau da Mentira” na cena egípcia

Do início dos anos ‘80 aos dias atuais, Curió manipulou desde as origens um formigueiro humano que lembrava uma cena egípcia na construção das obras faraônicas. E ainda domina uma terra desolada pelas humilhações e assassinatos que tem como símbolo uma árvore amazônica que, por decreto municipal, nomeou “Pau da Mentira”.

E, por decreto, esteve presente com uma estátua em uniforme camuflado do Exército (do tempo da Guerrilha) na sede da cooperativa dos garimpeiros. Entretanto, nenhum decreto apagou seus crimes e a miséria contagiante que restou em torno da sua imagem — herança viva da ditadura e de seus sucedâneos no poder.

No primeiro trimestre de 2004, a Tribuna da Imprensa (04/03/2004) publicou um relato de Curió que informava: a operação para eliminar Osvaldo Orlando Costa, o “Osvaldão”, e Dinalva Oliveira Teixeira, a “Dina da Guerrilha”, foi definida numa reunião do presidente Emílio Garrastazu Médici com o Alto-Comando do Exército, a partir de uma força especial composta de 150 homens. Curió, que comandou essa tropa, confirmou a morte de “Dina” — que os garimpeiros do Sindicato de Serra Pelada dizem ter descoberto um kimberlito (a rocha matriz do diamante) —, ocorrida no dia 24 de julho de 1974: “Ela entrou em combate numa emboscada. Só posso dizer isso”.

E afirmou que “Osvaldão” (o qual, diz Zezinho do Araguaia, tinha fama de excelente minerador), então com 36 anos, também tombou numa emboscada: “Ele morreu num açaizal. Levou um tiro no peito e tombou. Logo em seguida, foi montado um aparato para retirar o corpo. Um helicóptero içou o corpo, mas por acidente, a corda arrebentou e o corpo caiu de uma altura de nove a dez metros, quebrando o fêmur esquerdo”.

Curió admite “16” execuções

Apesar de Curió sempre atribuir ao comandante do Exército a versão oficial sobre a Guerrilha, o general Médici dizia que era ele quem sabia sobre a guerrilha. Reclamando, então, das acusações e cobranças dos familiares dos desaparecidos sobre as torturas e a falta de informações sobre os locais onde estariam os corpos, Curió declarou: “Não sou responsável por mortos. Não sou coveiro. A minha missão era infantaria e operações especiais. Os meus mortos eu sei onde estão sepultados. Foram 16 homens”.

Após quase três horas de gravação, o agente do CIE, afirmou: “Estou tranquilo. A Lei de Anistia é ampla, geral e irrestrita, dos dois lados. Araguaia é um caso fechado meu”.

Outros oficiais simplesmente ressurgiram das sombras. Em seu livro “O coronel rompe o silêncio” o jornalista Luiz Maklouf Carvalho apresentou o oficial reformado Lício Augusto Ribeiro Maciel (“Dr. Asdrúbal”) – então major-adjunto do CIE, considerado individualmente o militar de maior responsabilidade nas execuções efetuadas na terceira campanha promovida contra a Guerrilha do Araguaia, a partir de outubro de 1973.

Com 74 anos em 2004 esse militar assumiu, com seu grupo, a autoria de apenas quatro execuções e se disse vítima de um tiro no rosto, desferido por uma guerrilheira que logo após foi fuzilada – seu quinto assassinato.

O coronel teria decidido falar a pretexto de “fazer um acerto de contas com essa página inglória de nossa história”; revela a participação do general Nilton Cerqueira; admite que comandou o grupo que prendeu José Genoíno. Mais militares que nunca haviam falado sobre sua participação no Araguaia, como o coronel Aluízio Madruga e os generais Álvaro Pinheiro e Arnaldo Braga falaram pela primeira vez e são revelados os nomes de vários oficiais que atuaram na guerrilha — entre esses, Wilson Romão, diretor da Polícia Federal no governo Itamar Franco, e Taumaturgo Sotero Vaz, ex-comandante militar da Amazônia.

Mistérios militares

Ainda em 2004, a revista Época (edição nº 3012, de 01/03) apresentou os depoimentos de quatro soldados que indicavam os locais onde estariam enterrados quatro jovens combatentes guerrilheiros, informando que, do natal de 1973 ao final de 1974, a ordem foi executar os militantes do PCdoB que permaneciam na área, revelando detalhes sobre as execuções. Aí a Convenção de Genebra foi atirada pelos militares de Médici e Curió à lata do lixo.

As testemunhas Raimundo Pereira, Josean Soares, Antônio Fonseca e Elias Oliveira foram à região do confronto com a reportagem da “Época” e apontaram locais, acompanhados pelo secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda.

Josean, que serviu no 52º BIS de Marabá e estava em Xambioá em 1974, narrou os maus tratos que os soldados sofriam nas mãos dos seus superiores e os atos que estes praticavam contra civis. Os soldados relacionaram as atrocidades contra os guerrilheiros e moradores da região: tortura, execução sumária de prisioneiros, decapitação de cadáveres, corpos atirados em cemitérios clandestinos ou em áreas inóspitas como a Serra das Andorinhas, etc.

Os soldados narraram detalhadamente a prisão e execução de Walquíria Afonso Costa; de Telma Regina Cordeiro Corrêa, a ‘‘Lia’’, e de Áurea Valadão, ambas levadas para viagem sem volta de helicóptero. Confirmaram detalhes sobre a morte de Osvaldo Orlando da Costa, o ‘‘Osvaldão’’ pelo mateiro Arlindo Vieira da Silva, o ‘‘Piauí’’, e o tempo que o guerrilheiro Daniel Ribeiro Callado, o ‘‘Doca’’, antes de desaparecer, ficou preso nas bases do Exército.

O governo federal anunciou que tentaria localizar, em Xambioá, as ossadas de Osvaldão, de Pedro Alexandrino de Oliveira Pires, o ‘‘Peri’’, de Áurea Elisa Pereira Valadão e de um morador recrutado pelo PCdoB, conhecido como Batista. Entretanto, Nilmário Miranda alimentou poucas esperanças de encontrar os guerrilheiros, mesmo avaliando que os depoimentos marcam um novo momento — pois, integrantes das Forças Armadas jamais haviam apontado covas de comunistas mortos no Araguaia.

Porém, qualquer descoberta ainda dependeria de exames dificílimos — pois, nas três expedições oficiais realizadas desde 1991, onze ossadas saíram da região, mas apenas Maria Lúcia Petit foi reconhecida.

E prosseguiu a publicação de fontes que podem efetivamente desvendar os mistérios militares.

Cortando “nas juntas”

Segundo a revista IstoÉ — na mesma edição 1798 (de 24/03/2004) que revelava as apreensões quanto à Caravana de 1980 —, em meados de 1973 o general Emílio Garrastazu Médici reuniu-se com o ministro do Exército, general Orlando Geisel, e seu sucessor na Presidência, Ernesto Geisel, no Palácio do Planalto, para tratar do extermínio da oposição, decidindo utilizar “todos os meios para eliminar, sem deixar vestígios, as guerrilhas rurais e urbanas, de qualquer jeito, a qualquer preço”.

E apresenta alguns elementos dos grupos de exterminadores formados a partir daí: os coronéis do Exército Paulo Malhães, José Brant Teixeira, e Aldir Santos Maciel, e os ex-cabos Félix Freire Dias e José Bonifácio Carvalho — que continuam vivendo, segundo a revista, na clandestinidade.

As atrocidades foram relatadas à revista pelo ex-sargento Marival Chaves, que de 1967 a 1985 trabalhou no DOI-Codi de São Paulo (até 1976); nos Batalhões de Infantaria de Selva, de Imperatriz e de Manaus (de 1977 a 1980); e no CIE (de 1981 a 1985). Ele acompanhou as ações comandadas por Brant Teixeira e Paulo Malhães, que “circulavam por todo o País e estavam envolvidos nas principais operações de prisão, execução e ocultação de corpos do CIE” e que, “no Araguaia, participaram da Operação Limpeza, escondendo os cadáveres dos guerrilheiros”.

Em 1981, Marival trabalhou em Brasília com o cabo Félix Freire Dias, que contou como cortava os corpos das vítimas em Petrópolis. Entre elas estava o ex-deputado federal Rubens Paiva, preso no dia 20 de janeiro de 1971, no Rio de Janeiro. O cabo Dias “apostava com outro carcereiro quantos pedaços ia dar o corpo de determinado prisioneiro executado. As impressões digitais eram as primeiras partes a serem cortadas”.

Os pedaços dos corpos, cortados nas juntas, eram colocados em sacos plásticos e enterrados em lugares diferentes para dificultar a localização. Designado para a Guerrilha do Araguaia, o cabo Félix Dias integrou-se à tropa de execução do coronel Curió. Do mesmo esquadrão passou a fazer parte ainda o cabo José Bonifácio Carvalho. “Os dois faziam todo tipo de trabalho sujo para o Curió, que os presenteou com a presidência e a vice-presidência da Cooperativa de Garimpeiros de Serra Pelada”.

Depoimentos secretos

Ainda de acordo com a revista Isto É, o relatório Hugo Abreu confirma a “Operação Limpeza” (denunciada pelo coronel Pedro Correia Cabral), que começou em janeiro de 1975 com “as transferências dos corpos dos guerrilheiros enterrados junto às bases militares do Exército para diversos outros pontos”. Revela-se também que a ocultação de ossadas se estendeu para regiões onde tombaram guerrilheiros de outras organizações.

Com uma série de reportagens publicada no segundo semestre de 2002 sobre a Guerrilha do Araguaia, incluindo-se documentos do arquivo pessoal de um coronel do Exército, o Correio Braziliense conquistou o Prêmio Esso Regional Centro-Oeste 2003, com o jornalista Eumano Silva à frente de uma equipe de repórteres.

As reportagens revelaram os nomes de 32 agentes da repressão participantes da Operação Sucuri e divulgaram depoimentos secretos de guerrilheiros presos obtidos sob tortura, e fotos dos combates. Além disso, foi publicado um documento que prova a existência de registros sobre a Guerrilha do Araguaia nos arquivos militares desde março de 1972.

As reportagens historiaram o processo dos familiares de 22 militantes comunistas desaparecidos no Araguaia, com fundamento no relatório oficial Ministério da Guerra, de cinco de janeiro de 1975. Seu início remonta a 1982, quando os familiares constituíram o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh e ajuizaram uma ação contra a União visando à busca e indicação das sepulturas de seus parentes, a lavratura dos atestados de óbito e o translado dos corpos para um sepultamento digno.

O resgate da História

Esse processo teve seu coroamento no dia 30 de junho de 2003, quando a juíza da 1ª Vara Federal de Brasília, Solange Salgado da Silva Ramos de Vasconcelos, assinou a sentença (307/2003) que determinou a quebra do sigilo das informações militares de todas as operações referentes à Guerrilha do Araguaia, informando “onde estão sepultados os restos mortais dos familiares dos autores da ação, mortos na guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em local a ser indicado pelos autores, fornecendo-lhes, ainda, as informações necessárias à lavratura das certidões de óbito”.

A juíza determinou também a apresentação de “todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à guerrilha, incluindo-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, à captura e detenção dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerrilheiros mortos, aos procedimentos de identificação dos guerrilheiros mortos quaisquer que sejam eles, incluindo-se as averiguações dos técnicos/peritos, médicos ou não, que desses procedimentos tenham participado, as informações relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informações relativas à transferência de civis vivos ou mortos para quaisquer áreas”.

E determinou “à ré que, sendo necessário, proceda à rigorosa investigação no prazo de 60 (sessenta) dias no âmbito das Forças Armadas, para construir quadro preciso e detalhado das operações realizadas na Guerrilha do Araguaia, devendo para tanto intimar a prestar depoimento todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado de quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à época, informando a este juízo o resultado dessa investigação”.

E completou: “Ultrapassado o prazo de 120 dias sem o cumprimento integral desta decisão, condeno a ré ao pagamento de multa diária que fixo em R$ 10.000,00 (dez mil reais)”.

Internacionalista Castiglia

Além da citação que a União recebeu, diversos outros apelos foram endereçados ao governo federal ao longo do tempo. Em novembro de 2003, o italiano Antonio Castiglia, irmão do único estrangeiro que atuou Guerrilha do Araguaia, Libero Giancarlo Castiglia, foi recebido em audiência pelo ministro-chefe da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu.

Castiglia veio ao Brasil para averiguar as circunstâncias do desaparecimento de Giancarlo, presumivelmente no natal de 1973, num ataque do Exército às forças guerrilheiras do Araguaia – o mesmo no qual tombou o ex-deputado na Constituinte de 1946, Mauricio Grabois. Antonio Castiglia veio ao Brasil a pedido da mãe, de 87 anos, que deseja, antes de morrer, dar um enterro digno ao filho guerrilheiro.

Antonio soube, em Roma, que o governo federal criou uma comissão interministerial para investigar os locais onde os guerrilheiros desaparecidos foram enterrados e reuniu esperanças. José Dirceu reafirmou o compromisso do governo de resgatar a dívida com os guerrilheiros que lutaram pela democracia no Brasil. Castiglia colheu sangue para auxiliar na identificação do corpo do irmão (DNA) caso seja encontrado.

(Sabe-se de Líbero Giancarlo Castiglia que nasceu em San Lúcido, Cosenza, na Itália, em quatro de julho de 1944, filho de Luigi Castiglia e de Elena Gibertini Castiglia. No Brasil, fez curso de torneiro mecânico e trabalhava como operário metalúrgico no Rio de Janeiro. Com o golpe militar de 1964 sua militância política o levou à clandestinidade. Costumava praticar alpinismo com Elza Monerat no Morro da Urca. No natal de 1967 chegou à região do Araguaia, estabelecendo-se como comerciante na localidade de Faveira, onde tinha também um pequeno barco a motor).

Patético sigilo eterno

A comissão interministerial criada em outubro de 2003 com a missão de investigar o desaparecimento de guerrilheiros do Araguaia num prazo de 180 dias, foi integrada pelos ministros José Dirceu, Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Nilmário Miranda (Direitos Humanos), José Viegas (Defesa) e Álvaro Ribeiro da Costa (Advocacia Geral da União). Para gerar o Decreto 4.850, de 02/10/2003, que criou a comissão, o governo federal se apoiou em outro decreto presidencial (4.553, editado em 27/12/2002).

Este ampliava os prazos de segredo de todas as categorias de documentos públicos – reservado, confidencial, secreto e ultrassecreto – permitindo, ainda, que aqueles considerados ultrassecretos tenham sigilo aumentado por prazo indefinido “de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado”.

As críticas ao decreto argumentam que seu dispositivo ampliou o número de autoridades com o poder de classificar os documentos como “ultrassecretos”, antes restrito aos presidentes da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Depois seriam incluídos os ministros de Estado e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Afirmam também que existem no Decreto nº 4.850 pelo menos cinco referências ao Decreto do “sigilo eterno”, o que garantiria à Comissão Interministerial o poder de selecionar os fatos que serão divulgados à sociedade, como no período da ditadura militar, comprometendo o pleno conhecimento da nossa História.

Para o então ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomaz Bastos, em entrevista concedida ao Jornal do Brasil (02/11/03), a meta seria outra: “Nosso objetivo, vontade, e a determinação do presidente da República, é que os parentes localizem os restos mortais de filhos, pais irmãos. Vamos reconciliar a Nação consigo mesma, virar essa página”.

Entretanto, o mais adequado, nesse caso ainda seria a revogação do Decreto nº 4.553 e o cumprimento estrito da sentença judicial, o que contribuiria para uma sintonia maior do governo brasileiro em relação a outros governos de países vitimados pelas situações de ditadura e que passaram em revista as leis casuísticas promulgadas pelos que violaram — sobretudo de modo sangrento — as liberdades democráticas e a soberania em nome da sua “segurança nacional”. É esta certamente a melhor maneira de reconciliar uma Nação com sua História.

Pinaud: “Exigência dos heróis”

O pensamento do então presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, João Luiz Duboc Pinaud, caminhava nesse rumo. Aposentado compulsoriamente, durante a ditadura militar quando exercia a cátedra de Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense (UFF) e atuava como Juiz de Direito, ele foi presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, integra a Comissão de Direitos Humanos no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e passou, em 2004, a presidir a Comissão, que pertence à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Pinaud aconselhou a população que foi envolvida, de alguma forma, com a Guerrilha do Araguaia, a “acabar com o silêncio”, protocolando todos os casos para efeitos de indenização. Trata-se de “virar esta página da nossa História com toda a transparência”, afirma. “Os mortos, os que foram heróis naquela luta, exigem isso e ninguém tem o direito de ofuscar, de apagar e de esquecer o que aconteceu”.

Ele revelou que ao assumir os trabalhos da Comissão percebeu a “complexidade” do processo, sentenciando: um dos principais problemas para elucidar esse traço da História brasileira é a falta de comunicação entre a Comissão, os familiares (dos guerrilheiros) e os moradores da região que participaram direta ou indiretamente da luta guerrilheira.

Nessa mesma linha, o governo federal passou a discutir a elaboração de um decreto para tornar disponíveis documentos classificados até hoje como sigilosos. Sabe-se, por exemplo, que a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), que herdou os arquivos do extinto SNI, guarda documentos com informações sobre a Guerrilha do Araguaia.

Na contramão dessa necessidade, o ministro Jorge Félix, da Segurança Institucional, defendera em 2003 o sigilo permanente de documentos “mais sensíveis” em mãos do governo. Contra isso, Pinaud disse que pretendia a colaboração das Forças Armadas, pois “esta questão não pode ficar nebulosa”. E afirmou ao Diário Vermelho que interessa às Forças Armadas “a apuração rigorosa, transparente e cidadã”.

PCdoB: presença permanente

O Partido Comunista do Brasil, além de sua presença contínua no sul do Pará, esteve em praticamente todas as expedições que incursionaram ao Araguaia ao longo do tempo. Mais recentemente, em outubro de 2001, compareceu duas vezes na região, quando foram localizados alguns vestígios ósseos que o grupo de trabalho da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, sob o comando do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh, levou para Brasília. Em 2004, acompanhou a expedição da comissão interministerial que foi à região com o mesmo objetivo. E, ainda neste ano, marca a presença da caravana da UJS (União da Juventude Socialista) às trilhas guerrilheiras.

Entretanto, nenhuma expedição poderia ter sido mais significativa para a nossa História que a de junho de 2002, quando foi realizado o último desejo de João Amazonas de Souza Pedroso — Presidente de Honra do PCdoB: que suas cinzas fossem espalhadas na região do Araguaia. Naquela data, após o repicar dos sinos e após o ato que reuniu em Xambioá a população dos municípios da região onde a Guerrilha se fez presente, ao lado dos dirigentes do PCdoB, encerrava-se um dos capítulos mais pungentes daquela gloriosa jornada de luta. Do pesadelo ao sonho que o poeta imaginou nas brumas e nas selvas do Araguaia.

Cinzas que se encontram no Araguaia

Luiz Carlos Antero
(texto publicado no Diário Vermelho no dia 25 de junho de 2002)

Naquele ensolarado 21 de junho, o adjetivo pungente foi pequeno para abarcar tudo que flutuava sobre o ambiente do grande rio e acima do gesto – de semear, em solo araguaio, cinzas de tal estirpe e tradição. Do latim pungente (que punge, comovente, doloroso, lancinante), mais que um grito pungente ou o gerundial pungitivo, bem mais que qualquer dicionário da língua portuguesa alcance. Lancinante seria o grito do guerrilheiro Adriano Fonseca ao ser executado, descrito por um guia a Eumano Silva, um gesto recortado de uma vida finda pela bestial criatura, nem de longe comparável às feras amazônicas. Ou a cena da execução de Mauricio Grabois – líder da bancada comunista na Constituinte de 1946 – no natal de 1973; “a morte de um lutador: Grabois, doente, enxergava mal e caiu atirando”, nas reminiscências de quem viu.

O desfecho para Amazonas transcendeu o comovente, o doloroso, o lancinante, pois restaram na selva seus interrompidos gestos de amor e segredos da luta. Na selva, pouco a pouco incinerada como erva daninha que se arranca do solo; extirpada e amaldiçoada pelo crime de oferecer guarida aos gladiadores da liberdade. E (Amazonas) sobe aos céus (de assalto) com a certeza que guardou no peito: não seriam encontrados sequer os ossos dos guerreiros camaradas, obliterados pelos fascistas em pontos dispersos da região e reunidos à combustão numa única fogueira. Num crepitar que acentuava o emblemático desfecho para as FORGA – as Forças Guerrilheiras do Araguaia. O símbolo das festas guerrilheiras em torno do fogo – também fogueiras -, que contemplava a sincera e disponível alegria dos rapazes e moças em brasa da mais íntegra fé revolucionária. Converte-se (Amazonas) em cinzas para encontrar-se com as cinzas dos seus.

Lendas e verdades

Pois, em cinzas tudo fora convertido. A cinzas fora reduzida a távola que aconchegava cavaleiros da mais elevada condição humana, protegidos pela mata e vivendo encantos e perigos dos semelhantes – os pássaros e todas as espécies da criação amazônica, nos movimentos, penumbra, cores e cantos de uma gentil e cúmplice natureza. E também em cinzas ficaram suas rústicas cabanas e abrigos mais recônditos, aquelas engenhosas escavações que faziam dos troncos das majestosas árvores asilos imperscrutáveis, escavados e camuflados na madeira, com prateleiras, livros, armas e provisões. Perto dos quais passavam os meganhas da reação, perdidos, nem de longe imaginando que ali estavam os gnomos e duendes a povoar de fantasmagorias os dias e as noites das tropas na escuridão da selva, temido santuário. O medo a corroer-lhes, em pesadelo, as entranhas, do imprevisível negro que virava tronco e da moça que virava flor – ante o iminente perigo.

Da flor que possuía um kimberlito, a vulcânica rocha matriz onde brilhavam os diamantes – sussurram hoje os garimpeiros de Serra Pelada; do homem-tição que dominava o segredo do ouro – que mandara em bom volume para Piçarra pelo amigo Zé Novato, diziam outros. Lendas e verdades que encerravam o mistério da metamorfose e da transformação social num único ato, e, de quebra difundiam a união pela liberdade e pelos direitos do povo. Do “tambor das selvas”, que atribuía ouvidos à noite e convertia em dardos inconfidências noturnas. Da gruta que a Serra das Andorinhas abriu para as mais secretas reuniões. Do negro Baiano – esperto barqueiro que, nas generosas águas do Araguaia e afluentes, buscava encomendas do “povo da mata”, em especial da dileta Dona Maria (Elza Monerat). Do fascínio pelos guerrilheiros. Das torturas que levaram irmã Maria das Graças ao limiar da alucinação. Dos centenas de mártires do flagelo fascista e dos buracos do Vietnã.

Espaço único do Araguaia

Ah, imperdoável gesto que converteu o canto da liberdade – e o encanto verde-floresta dos corações vermelhos – em bordão de sangue, depois cinzas! Nem o transcurso de milhares de anos-luz anistiará tanto vilipêndio e destruição.

Ali, de onde hoje repousam as cinzas de João Amazonas, muitas estórias brotaram e ainda brotarão. Semeando Xambioá, ele propalou-se – com a matéria de si – por São Geraldo e São Domingos do Araguaia (as armas guerrilheiras em seu brasão municipal), Marabá, Araguanã, Araguaína, Piçarra, Boa Vista (de onde vieram homenageá-lo os amigos de Dina e Paulo) e todas as povoações acinzentadas pela truculência de uma certa “Comunidade”. Malgrado as margens espaçosas do rio Araguaia, todas conformando um só espaço ungido pela Guerrilha e presentes à veneração de um gesto derradeiro.

Prematura apartação

À frente de Xambioá, São Geraldo, ainda em murmúrio, narra o momento que ele não queria perder. Daquele instante noturno de 12 de abril de 1972, quando a paz infinita do lugar, iluminada a vela e lamparina, foi violentada pelo seu paradoxo, do mesmo modo que as mulheres de Xambioá. A notícia não tardou, como nunca tardavam os mil olhos a enxergar no breu permanente da mata, noite e dia, e lábios a pronunciar a palavra certeira, a viajar veloz, desviando-se entre as folhas ou acima das copas frondosas do sexto continente – onde viceja a vida e onde esbarravam as bombas napalm, queimando inúteis no lugar. Ainda estavam longe as largas margens da Transamazônica e das operacionais que vinham, a cada metro, rasgando a selva. Grabois, Arroyo, Paulo, somem da cidade, deixando fumegante o jantar posto na casa de um morador. Era cedo para a guerra e tarde para voltar ao cenário da mata. Alertado por Dona Maria, Amazonas arrepiou caminho desde Anápolis e por mais 30 anos congelou as lembranças da prematura apartação. Mas passou, tanto quanto seus camaradas, a figurar no imaginário da gente Araguaia. Vivo, assim permaneceria. Humilde e generoso, diria: esse obelisco é para Grabois!

E homenagearia a todos: Carlos Danielli, Lincoln Oest, Luiz Guilhardini, Preto Chaves e tantos outros. E com razões: nenhum desenvolvimento – “pacífico” que seja – negará o perfil desses comunistas que conhecemos um dia, sobranceiros e com um sorriso aberto para a vida, dotados de coração limpo, franqueza no olhar, sincera afeição, livre criatividade, amplitude – homens de ação. O nativo bolchevique com a cara, a coragem e a história de luta do povo brasileiro.

Sim, nós temos heróis. 

Fonte: Portal Vermelho