A madeira da canoa há muito fora coberta de piche. Ostras ou carapaças do que restara de conchas do rio, incrustadas de uma ponta a outra da madeira, tornavam o uso do remo penoso, inda que a fadiga não se mostrasse nos rostos suados.

Àquela hora, a couraça de crustáceos roçando no capim coincidia com o zumbido das carapanãs. O ruído não os fez ungir-se de cálculos, deu-lhes alívio por se verem apeados da popa com espaço para uma pessoa, da caverna com dois dedos de água, da proa pesada, com aparência de monstro sob a crosta de moluscos.

– Vamos dormir aqui mesmo? – quis saber Darinho.

Era o mais novo, Darinho. Optara pelo tranco da mata depois que testemunhara o trator da usina passar sobre a capoeira de seu pai. Lá, a memória acudindo-o no frescor do rio, cultivara com o pai um roçado pequeno mas prenhe de inhame-cará.

– Tem outra ideia?

Julião, o mais velho, remara duas horas sem deixar escapar um gemido das juntas do corpo; só os músculos dos braços, a força dos punhos dando conta do credo que o movia. Sua mulher, Anita, viajara sentada na frente do remador, de costas para ele, crendo-se também segura no credo promissor.

À resposta de Julião, Darinho nada disse; só a memória cavoucando Guilhermina. Casara-se há três anos. No primeiro coito emprenhara-a com a cumplicidade do juízo, e do viço brilhoso dos talos verdes nas covas do inhame. O filho, à altura da conversa abafada pelas carapanãs, com a mesma idade da núpcia no cartório. Da última vez que a coitara, há dois meses, também não tivera desvelos com espermas erradios. Tinha dúvidas se Guilhermina emprenhara outra vez.

A barraca fora montada sem cobertas de lona, com palhas secas de coqueiro entrançadas de improviso. As estacas, em cima e nas duas laterais, foram cortadas com facões trazidos fora das sacolas. Os cortes na madeira roliça, verde, misturando-se ao ruído noturno da mata de Japumim.

Julião tirou do alforge duas preás moqueadas, acendeu um fogo cuidando que em volta não ficasse mato ou folhas secas. A carne demorou a assar; o cheiro reiterou-lhes as crenças.

Quando Julião e Anita, juntos, deitados, feito dois mocós espreguiçados, sem tenção nos predadores, calaram-se, Darinho cuidou que estavam espreitando os passos distantes dos soldados. Antes que Julião sentenciasse alguma ameaça, disse:

– Quero ver Guilhermina…

– Psssiu… – ordenou Julião.

O ruído do motor fez-se ouvir na curva do rio, a uma légua dali. O concerto dos bichos na mata, já noitinha, estabilizara-se. Quem os ouvisse pela primeira vez, decerto experimentaria pânico. Ouvidos treinados distinguiam vida no balbucio do vento ou mesmo de alguma fera. Já o ruído de um motor tinha o efeito de desestabilizar a rotina dos bichos no mato.

– Pssiu… – insistiu Julião.

O barco flutuou bem à frente do improvisado acampamento, inda que no meio do rio. Uma luz forte percorreu toda a margem, e fixou-se na canoa, na popa da canoa. Ouviu-se a explosão do artefato lançado do barco. A canoa se fez em pedaços, restando inteiro o bico da proa.

Os três se levantaram, cada um carregando sua sacola e o alforge. Julião tinha uma espingarda de dois canos; Anita, um revólver calibre 32; Darinho, uma espingarda de um cano. Convinha não atirar para não dar conta de sua posição. Correram para dentro da mata. Deu tempo de ouvir a rajada de metralhadoras que os alcançou por trás, a dois metros de cada um.

Não dormiram. Sem a canoa, teriam que caminhar muito para encontrar com o outro grupamento. À noite, cobertos pelo mato fechado, deitaram numa clareira. Podiam ser descobertos visto que na clareira estavam nus de paredes ou de cobertas improvisadas. Não tinham comida, e não estavam seguros de que uma anta abatida não os deixaria localizados pelos soldados.

Pela manhã, foram surpreendidos por doze guerrilheiros do outro grupamento. Darinho reconheceu Dogival, da povoação de Japumim.

– Guilhermina, ela está grávida!?

Fonte: Portal Vermelho