Samuel tomou conhecimento dos assassinatos na praça de Paulista. Ele esperava o ônibus da Alumínio SA, que o deixaria na fábrica em Igarassu, onde com orgulho vestia o seu macacão. Ao ver as fotos no jornal pendurado na banca, ele não conseguiu reprimir a exclamação:

– Caíram! Meu Deus …

Ato contínuo foi lendo com raiva e ansiedade: “equipes especiais dos órgãos de segurança cercaram no último dia 9 um ‘aparelho’ numa chácara em Camaragibe, utilizado como centro de treinamento de guerrilha. Dada ordem de prisão os terroristas que ali se achavam reunidos reagiram a bala. Após cerrado tiroteio, foram encontrados no aparelho dois terroristas mortos. Dois outros conseguiram fugir …”.

– Mentira, canalhas – resmungou. E olhou para os lados. Era como se a praça, a avenida, a feira de Paulista, estivessem vazias. Porque desconheciam o cinismo da manchete estampada no jornal.

– Isso é uma canalhice! – Samuel conteve-se, à força, para não gritar. Quanto sofrimento coberto pelo silêncio. Ele o sabia: Vevê há uma semana fora arrancado da casa dos pais por soldados. Num sequestro, pode-se dizer, à maneira de quem toma da família um cão danado. Agora ele aparecia como terrorista, morto, porque teria trocado balas com a repressão. Isso acusava também a falsidade das circunstâncias da execução de Cíntia.

Desde que entrara para a clandestinidade, tornado-se operário, não mais a vira. Tomaram caminhos paralelos. Ainda assim, sabia-o, a prática da organização não era a de treinamento de guerrilha em chácara, pelo menos no grande Recife. Haviam sido assassinados sob tortura, desarmados, isso era evidente.

A bonequinha de milho fora machucada até o último sopro de vida. Samuel sentiu-se tomado por um profundo desprezo, um desdém por sua própria segurança. “A revolução há de responder”, ele se disse, em voz baixa. Ergueu-se. Sentia-se cheio de coragem, mas não no sentido vulgar que é dado a essa qualidade.

Nada de fanfarronice, de pabulagem, ou de se sentir melhor e mais alto que o comum da gente. Apenas estava tomado pela decisão de fazer o que era preciso ser feito. Sem ostentação, mas com uma naturalidade prenhe de raiva. Como dizer, decompondo essa raiva? – angústia, paixão, amargura. Ele não queria que chegasse a sua vez, de morrer amordaçado sob a dor – isso ele não queria.

Mas se esse fosse o único e possível preço … que raiva o invadiu por tão estreita opção, que não se liberava nem se deixava expandir para um campo de luta aberto. Ele se dizia, sem articular em vocábulos: “chama-me, convicção, e eu te responderei. Mas, luta, dá-me pelo menos a lealdade de armas claras no duelo.

Sem canalhice, sem essa brutal infâmia. Sem ter de optar entre o amor por minha particular humanidade e a humanidade do amor geral, histórico. Eu não quereria sacrificar os olhos de quem mais quero à minha convicção. Mas a isso nos impelem. Canalhas…”. E gritou, a todos e a ninguém, em frente à igreja de Santa Elizabete:

– Filhos da puta!

Baixou o rosto, e numa convulsão autônoma ficou com as mãos apertando-se nos bolsos. Quase não ouviu o ônibus da Alumínio buzinando.

João chegou no trabalho afundado. Desejava, porque estava triste, afastar de si todo e qualquer convívio, ao mesmo tempo que gostaria da compreensão por seu estado de tristeza, numa parca esperança de solidariedade.

Era necessário, no entanto, e aí o seu rosto não sabia que face vestir, era necessário no entanto ostentar frieza, indiferença, como se não soubesse da notícia dos jornais, para que o rosto de dor não lhe atraísse suspeita, assemelhando-o aos companheiros mortos. Sabia-o na inteligência, – como dizer? – por instinto primário, animal, que o insinuar de um sorriso cúmplice com os assassinatos da manhã seria bem-vindo.

Mas um frio no estômago lhe interditava essa possibilidade. “Disse-lhe Pedro”, vinha-lhe num tormento: “Por que não posso eu seguir-te agora? Darei a minha vida por ti. Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim?”. A pergunta lhe chegava num espanto, incrédula: “Darás a tua vida por mim?!”.

Entrou no escritório. Sentou-se, abriu a gaveta, fechou-a, tirou a capa da máquina, sem saber como a partir de tais movimentos rotineiros iria tocar o seu dia. Ouviu, do chefe janota:

– Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?

Abriu e fechou a gaveta, fechou e abriu, cabisbaixo, imergindo todo nesse ir e vir. Um perfume enjoado, ativo, mistura de repelente e álcool, chegou-lhe próximo:

– A puta era até bonitinha. Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu, João?

– Eu? – “Darás a tua vida por mim?” pensou – Não vi o jornal hoje.

Um bolo azedo lhe subiu à boca.

– Trocaram tiros com a polícia… São afoitos.

Era como um cerco. Deviam ter desconfiança dele, e vinham com armadilha, estimulando-o, para que se traísse pelo coração na goela.

– Vocês se lembram da bomba no aeroporto? Tem que matar mesmo. Eu nuca vi terrorista ter cura – dizia um velho, que João sabia ser um funcionário desonesto.

– Mocinha tão bonita … – acrescentava outro, em falsa piedade – …desencaminhando jovens de família.

“Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor em silêncio”, bateu-lhe na mente. E rosnou:

– Os jornais mentem muito. – “Com a ternura e raiva e um bem guardado no mais íntimo segredo”, os seus olhos quiseram marejar. Conseguiu mantê-los num seco frágil.

– O quê, o que você disse? – voltou-se o chefe.

Quis responder com voz alta e firme, “eu disse que os jornais mentem”. Mas a voz, teimando em lhe sair num fio, que era a expressão do seu real embaraço, tropeçou nas sílabas:

– (Eu) diis-se que os (jor)nais (es)tão meentindo…

– Como é que você disse?

João sorriu, para a sua desgraça e inferno sorriu, como um menino espancado em frente a visitas. A fortaleza evadira-se do peito. Em luta, restou-lhe um meio sorriso, procurando ganhar tempo para o desvencilhar do enredo. E como os segundos de um embaraço multiplicam-se na angústia, a sua inteligência descobriu uma terceira via: ele deu de ombros, e declarou num ar de quem fala coisa de pouca importância:

– Esses jornais… de vez em quando eles inventam. A gente tem que dar uns descontos.

– Ah! mas eles eram terroristas. Isso não é mentira, é?

“Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes”. João virou-se e procurou começar a bater a máquina. As lágrimas teimavam em lhe vir aos olhos.

– Mas eles não eram terroristas? – ouviu de novo. “Disse-lhe Pedro: por que não posso eu seguir-te agora?”. E era como se o indivíduo que estava às costas lhe dissesse: tu também és um deles.

E o seu silêncio frente à pergunta, “eles eram terroristas, isso não é mentira, é?”, soava como a resposta “Eram. Mas eu não sou um deles”. As teclas da máquina ficaram embaciadas. Então ele se levantou da cadeira com um nó na garganta pronto a desatar. E, tendo saído para fora, chorou amargamente.

* Do romance “Os corações futuristas”.

Fonte: Blog da Boitempo