Guerrilha do Araguaia é debatida no memorial da resistência em SP
“O presente nada mais é do que a continuação do passado, o passado e o presente são espelhos frente ao outro”, foi assim que o Procurador da República, Andrey de Mendonça, iniciou o debate sobre os 40 anos da Guerrilha do Araguaia.
O evento aconteceu no Memorial da Resistência no dia 14 de abril, reforçando o compromisso firmado entre entidades que pretendem romper o silêncio sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar no Brasil.
O caso do Araguaia ganhou destaque. Primeiro devido à cobrança da Corte Interamericana de Direitos Humanos que exigiu respostas pelo assassinato e desaparecimento de 62 pessoas durante a guerrilha. Agora há uma batalha judicial.
A ação do Ministério Público Federal (MPF), encaminhada no dia 14 de março de 2012, inaugurou a primeira denúncia contra o militar Sebastião Curió por crime de sequestro qualificado de cinco pessoas que estão entre os desaparecidos.
Justiça de Transição
O procurador Andrey de Mendonça integra o grupo de trabalho “Direito à Memória e à Verdade do MPF” e é um dos autores da ação contra Curió. A medida endossa o processo que inclui países que passaram por regime autoritário e violação dos direitos humanos chamado de Justiça de Transição.
Trata-se, entre outras coisas, da revisão das medidas tomadas pela instância judicial no período que ocorreu crimes de lesa-humanidade e hoje devem ser reparados.
O Brasil aderiu voluntariamente ao tratado com a Corte Interamericana e é conveniente que sejam transparecidas a importância de tal cumprimento. Será preciso romper com o “truque ilusionista”, conforme sinalizou Andrey de Mendonça.
A Corte questiona o fato do Brasil ainda manter suas ações baseadas do texto da Lei da Anistia de 1979. As limitações que impedem a investigação e julgamento dos crimes cometidos são motivos para que a lei seja questionada.
Direitos Humanos
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos existe para que sejam preservados os direitos humanos. É isto que obriga o Brasil a investigar e dar uma resposta aos familiares dos desaparecidos do Araguaia e a outras centenas de casos.
Até o momento as decisões jurídicas ainda não cumpriram esse direito assegurado pela Corte. O Brasil diz que cumpre, mas não está cumprindo. Foi isso que o procurador chamou de “truque ilusionista”.
Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia, avaliou que o que aconteceu em 1979 foi um “pacto autoritário”, fundado na tentativa do esquecimento, impedindo a investigação individualizada dos casos e com a ideia de impunidade.
O que houve foi uma luta paralela protagonizada pelos familiares em busca de informações junto aos ex-presos e perseguidos políticos.
Foi essa batalha que garantiu as características democráticas no processo de abertura política. As conquistas têm sido amadurecidas ao longo desses anos pós-anistia. A medida de “reparação” às vítimas desencadeou diversas ações que tiveram, entre outros efeitos, a busca pela verdade. Isso contraria a versão da história oficial, ainda defendida por diversos setores da sociedade brasileira.
Reparação
Para atender o compromisso com as vítimas, destaca-se a criação da Comissão da Anistia a qual adotou o processo de “reparação” inicialmente rechaçado pela ala conservadora, mas que avançou nos processos de investigação e indenização de vítimas.
O trabalho desenvolvido pelo governo em parceria com membros da sociedade civil também enriqueceu o processo de Justiça de Transição, conforme destacou Paulo Abrão.
Entre os alcances concedidos pela reparação, está o rompimento com a falácia da “ditabranda”, termo utilizado para reduzir a gravidade da ditadura militar no Brasil. “Como se fosse possível medir pela pilha de corpos que uma ditadura é capaz de produzir, sem falar dos traumas”, assinalou Abrão. Essas e outras atitudes demonstram o rompimento com o silêncio.
História Registrada
A Comissão da Verdade entra com um papel importante, pois, além de investigar, poderá produzir grande contingente de informações. Contar a história dos que resistiram à ditadura poderá fornecer materiais para estudo.
Isso poderá servir para nova tese de antropólogos, por exemplo, e romper com a hipótese de que o povo brasileiro se resume nas características do “homem cordial”, aquele acomodado, que abaixa a cabeça, que consente, que se conforma.
Pairou no ar durante o evento algumas perguntas. Que falta faz os desaparecidos do Araguaia? Que falta faz quem torturou e quem matou? Para a primeira pergunta, ao ser exibido o documentário “Camponeses do Araguaia: a guerrilha por dentro”, foi possível assistir relatos importantes, a respeito do trabalho que esses jovens, apelidados de “paulistas”, fizeram ao prestar serviços à população, a qual, em sua maioria, eram pessoas carentes.
Onde não havia escola, os militantes deram aula. Os que haviam estudado na área de saúde, puderam prestar assistência médica e odontológica, entre tantas outras ações relatadas.
Essa necessidade de atender pessoas resultou na aproximação com os moradores. Daí partiu a difícil tarefa de explicar para tanta gente que o país passava por uma ditadura e em que isso implicava.
Tabu
Se hoje esse assunto ainda é um tabu nas escolas e nos meios de comunicação, não é difícil imaginar como era na década de 1970. Romualdo Pessoa, autor do livro “Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas”, afirmou que era um dos tantos jovens que não sabia o que se passava no país, quando se mudou da Bahia para Goiás.
Ao chegar, na década de 1980, aderiu ao movimento estudantil, quando o assunto da guerrilha ainda estava latente. Ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCdoB), justamente de onde partiu a iniciativa da guerrilha e a indicação de militantes para a região Araguaia.
O episódio lhe despertou curiosidade. O desafio para Romualdo Pessoa foi escolher o tema para sua tese, já que tinha em mente, primeiro, escrever sobre a Guerra de Canudos. Havia similaridade entre as histórias, no que diz respeito à truculência do Estado ao dizimar populações.
Ele acabou optando pela Guerrilha do Araguaia. Primeiro tratou de esclarecer que a guerrilha não era o “foco”. Tratava-se de uma leitura da experiência de Mao Tsé-Tung, durante a guerrilha na China, o que se comprovou após o depoimento dos moradores.
Surpreende o tempo de resistência dos militantes a uma estrutura muito mais poderosa. Romualdo Pessoa acaba de publicar a segunda edição do seu livro com mais detalhes a respeito da truculência do Estado que utilizou grande número de agentes militares que mataram os integrantes da organização.
Cerca de 3 mil pessoas, entre policiais e soldados, estiveram envolvidas nas ações que resultou em 62 mortos e desaparecidos, sem contar nas centenas de pessoas que foram torturadas e humilhadas. Muitos ainda estão vivos e deram seu depoimento.
Para entender a opção pela luta armada é preciso estar alerta para o erro do anacronismo. Olhar para o passado com o olhar do que vivemos hoje, em plena construção democrática, seria um grande erro.
É preciso ter em mente a conjuntura política da época e inclusive reconhecer que os que morreram lutando contra a ditadura são parte da conquista democrática de hoje, conforme analisou Romualdo Pessoa.
Desaparecidos
Durante as escavações na região do Araguaia foram encontrados os restos mortais de Maria Lucia Petit e Bergson Gurjão Neto. Ainda é preciso encontrar outros 60 corpos. Está sob a responsabilidade e autoria do Major Curió o paradeiro de cinco: Maria Célia Corrêa (Rosinha); Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca); Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Cordeira Corrêa (Lia). Todos eles foram vistos pela última vez na dependência militar comandada por Curió.
Estavam presentes no debate sobre a guerrilha José Morais Silva (Zé da Onça), presidente da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia e José Dalmo Ribas, irmão de Antônio Ribas (desaparecido). Além desses, havia outros personagens presentes e seus testemunhos poderão fazer parte dos novos capítulos da história a ser contada.
O Brasil agora vive a fase de aprofundamento das relações democráticas e o debate em torno do passado deverá ser de toda a sociedade, conforme defendeu Paulo Abrão.
A Guerrilha do Araguaia foi abordada durante o evento intitulado “Sábado Resistente”, organizado pelo Núcleo de Preservação da Memória Política em parceria com a Fundação Maurício Grabois. Foi colocada em pauta a ideia de que os direitos humanos sejam a base para todos os fundamentos jurídicos.
O direito ao luto e a homenagem ao antepassado é uma tradição desde a Antiguidade. O empenho dessas ações realizadas serve para garantir o direito à memória, à verdade e à justiça.
O Estado, no auge da ditadura, chamava os que se opunham de terroristas e justificava a violência como instrumento para “restabelecer a paz nacional”. Acontece que o direito à rebeldia em casos de regime autoritário é garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos oficializada em 1948. Os desaparecidos do Araguaia lutaram por melhoras no seu país.
Os que cometeram crimes gozam da liberdade e estão escondidos. Mas eis que surgiu uma nova juventude, os “aparecidos políticos”, sinalizando suas moradias e cobrando que a história seja esclarecida. Trata-se de um novo momento. Fica em aberto a segunda pergunta. “Que falta faz quem torturou e quem matou?”
Fonte: Nucleo de Memória