Escracho ou esculacho? Você decide. Porque, de repente, eles estavam por toda parte. Cartazes, pichações, faixas, imagens desenhadas ou pintadas no asfalto da rua.

Pois é das ruas que se trata, de uma nova significação do espaço público normalizado pela “boa vizinhança” e pela operação sistemática de produzir o esquecimento para apagar, das memórias individuais e coletivas, os últimos traços de medo que teimavam em sombrear a alma vazia desses homens sinistros.

Pouco importa, nesse caso, a privacidade do “lar, doce lar”, a solenidade do local de trabalho. É preciso botar a boca no trombone e assinalar essa geografia do “antilugar”, do “não lugar”, desvelar esse inconsciente de uma história que teima em reaparecer quando muitos a imaginavam sepulta.

Os espectros dos desaparecidos são o GPS real que guia essas alegres levas do Levante. Boa parte das centenas de jovens e representantes de familiares de desaparecidos da ditadura que se espalharam em manifestações políticas contra o esquecimento e a impunidade de torturadores e outros responsáveis pelas ações do aparato de terrorismo do Estado durante a ditadura militar em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Belém, Fortaleza, não viveu aqueles anos.

Isso é tanto mais notável quanto virou ideia fixa repetir que o Brasil é o país da desmemória. Quantos Harry Shibatas precisarão ser ainda desmascarados? Porque é certo que esse médico-legista coqueluche da “legalização” dos extermínios praticados por agentes da Oban e do Deops não foi caso único no amplo aparato do terror instalado pelos serviços da inteligência do regime militar.

Quantos mais foram cúmplices dos perpetradores, administrando a ciência médica a serviço da “otimiza ção” das dosagens de tortura? Quantos juramentos de Hipócrates rasgados sem nenhuma punição dos conselhos regionais ou nacional de medicina?

O escracho é uma manifestação legítima e eficaz. Comprovou-se isso na Argentina, no Chile e no Uruguai. Não deve pretender a violência física da invasão de domicílios ou ataques diretos aos homens sinistros.

Apenas desmascará-los em praça pública, in absentia. Não pode, de modo nenhum, ser um movimento a substituir ou a se sobrepor à Comissão da Verdade, que certamente em breve iniciará seus tão relevantes trabalhos.

É, na verdade, um livre momento de expressão e desabafo da sociedade civil organizada. A informação precisa e atualizada, a rapidez e leveza de sua estrutura de mobilização, em que a internet joga, como em outros exemplos recentes de democracia direta, um papel decisivo, bem como a imaginação criadora de suas variadas formas, esses são seus ingredientes de sucesso.

Pode-se dizer que, defronte à decrépita sessão nostalgia do Clube Militar, no dia 29 de março, ensaiou-se igualmente um escracho.

Evitar o confronto e a violência física, no entanto, deve ser sempre um objetivo no sentido de ampliar seu entendimento e simpatia pela opinião pública. Os homens sinistros sempre foram mestres na arte da provocação: não é o caso de entrar no seu jogo, nem de lhes oferecer pretextos banais. Os matadores dos porões da ditadura não merecem nenhum pedestal da fama, mesmo que perversa.

Mereceriam, sim, a imputação nos crimes contra a humanidade em que estão diretamente envolvidos, conforme o entendimento assentado pelo direito humano internacional e pelos tratados e acordos da ONU e da OEA dos quais o Brasil é signatário. Mas tal questão é objeto de outras instâncias, e a Comissão da Verdade é passo significativo no sentido de sua desejável revisão.

Jamais o escracho deve se importarefas que lhe são de todo impróprias ou inalcançáveis. Sua força maior reside, justamente, em sua completa extraoficialidade. É um ato político. É uma prática pedagógica. E isso por si só é muito.

Lembre-se de que nem só de apontar a geografia “normalizada” dos homens sinistros é feita a agenda criativa do escracho. Em Buenos Aires, por exemplo, tiveram peso considerável na revisão da história os escrachos feitos diante da tenebrosa Garagem Olimpo e da oficina mecânica Automotores Orletti, ambos centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio (CCDTEs) da ditadura argentina, placidamente instalados no bairro de classe média Flores.

Eu, quando passo ainda hoje ao lado do lugar que abrigou a infernal Oban, no plácido bairro do Paraíso, em São Paulo, sinto o coração gelar.

Mas quantos moradores saberão que lá também terá sido o cenário do maior CCDTE do Brasil? Pouquíssimos, certamente. O mesmo se poderia dizer, para ficar em outro exemplo emblemático, a respeito da “Casa da Morte” em Petrópolis, até hoje mantida como propriedade privada.

Os espectros dos mortos e desaparecidos da ditadura continuam a assombrar, como anjos da memória, a incúria e a arrogância dos que se julgaram deuses da vida e da morte nos bastidores da ditadura. Os escrachadores de hoje não pretendem ressuscitá-los.

Apenas inscrever seus nomes à luz do dia e da história. E com alegria jovial, contra os homens sinistros, repor cada uma das imagens sobreviventes possíveis de nos restituir verdades do tamanho de cada uma daquelas vidas dilaceradas. 

Fonte: Portal Vermelho