Tortura e sintoma social
Fruto dos abusos históricos que aparentemente “perdoamos” sem exigir que opressores e agressores pedissem perdão e reparassem os danos causados, o ressentimento instalou-se na sociedade brasileira como forma de “revolta passiva” (Bourdieu) ou “vingança adiada” (Nietzsche), ao sinalizar uma covarde cumplicidade dos ofendidos e oprimidos com seus ofensores/opressores.
A mágoa “irreparável” do ressentido indica que ele sabe, mas não quer saber, que aceitou se colocar em uma condição passiva diante dos abusos do mais forte; por covardia, por cálculo (“mais tarde ele há de reconhecer e premiar meu sacrifício”) ou por impotência autoimposta, o ressentido acaba por se revelar cúmplice do agravo que o vitimou.
É importante ressaltar, entretanto, que o ressentimento não abate aqueles que foram derrotados na luta e no enfrentamento com o opressor, e sim os que recuaram sem lutar e perdoaram sem exigir reparação.
O expediente corriqueiro – por má-fé ou mal-entendido? – de chamar de “ressentidos?” aqueles que não desistiram de lutar por seus direitos e pela reparação das injustiças sofridas não passa de uma forma de desqualificar a luta política em nome de uma paz social imposta de cima para baixo.
Nossa tradicional cordialidade, no sentido que Sérgio Buarque de Hollanda tomou emprestado de Ribeiro Couto, obscurece a luta de classes e desvirtua a gravidade dos conflitos desde o período colonial.
*Maria Rita Kehl é psicanlista, autora de diversos livros, como O tempo e o cão (Boitempo, 2009), ganhador do prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Não Ficção em 2010. Foi nomeada integrante da Comissão da Verdade.
Fonte: Portal Vermelho