Fui preso em 1964 pelo coronel Cascais, da Polícia Militar. De extrema direita, professor do Colégio Brasileiro, dirigido pelo mestre Pedro Silvestre, educador de muitas gerações de amazonenses, Cascais foi nomeado Chefe de Polícia pelo novo governador Arthur Cezar Ferreira Reis, representante maior do golpe militar no Amazonas, a partir de sua indicação pelo marechal Castelo Branco, eleição e posse.

O exercício do comando da Polícia Civil na época corresponderia ao cargo hoje exercido pelo secretário de Segurança Pública do Estado, de grande importância naqueles tempos de Manaus província, cidade que não hospedava mais do que 300.000 habitantes.

Varei a primeira noite da prisão no gabinete de Cascais, que ficava no andar superior de um prédio antigo e então bastante conhecido, localizado na Rua Marechal Deodoro.

Respondi, junto com Valdir Barros, do Sindicato dos Empregados da Construção Civil e aluno do Colégio Rui Barbosa, preso na mesma ocasião, a um longo interrogatório. Imputavam-me o delito de ter mimeografado e distribuído uma carta do deputado Almino Affonso, vinda do exterior, onde amargava doloroso exílio, após a cassação de seu mandato de representante do povo amazonense na Câmara Federal.

Também suportei a acusação de pertencer ao ‘velho partidão’ e de desenvolver ações subversivas no seio do movimento estudantil local, com articulação de âmbito nacional.
As respostas, sempre negativas, eram respondidas com firmeza e convicção, ainda que permeadas por sucessivas ameaças feitas pelo comissário Walter Rodrigues, que efetuara nossa prisão.

‘Vamos logo fazer o serviço com os meninos, doutor-chefe’, ‘o jipe está ligado, esperando, e no pau de arara todos eles falam’, dizia o policial, ávido, mais realista do que o rei, e à disposição dos novos donos do poder, sem reservas ou limites.

Mas Cascais persistia, com surpreendente paciência, na esperança de que não resistiríamos às pressões psicológicas que vinham subindo de tom a cada hora. Já madrugada alta, ainda que insistíssemos em negar tudo, fomos apresentados a um manifesto, de responsabilidade de um grupo denominado ‘Comitê de Resistência do Norte’, datilografado em espaço simples, também impresso em mimeógrafo e que tomava conta de uma página inteira.

No documento, além da conclamação de resistência ao golpe, anunciava-se a existência de um movimento constituído e organizado com bases estruturadas em toda a região amazônica, do Pará ao Acre, e que se oporia à quartelada militar, com as armas que se fizessem necessárias.

É evidente que um manifesto de natureza regional, com tamanha dimensão geográfica, haveria de provocar verdadeiro ‘frisson’ dentre os militares golpistas. Nele, passaram a enxergar uma ação ampla e conectada com todos os segmentos da sociedade, com o objetivo de criar um grande foco de oposição ao novo regime na Amazônia.

Cumpria, portanto, identificar as origens da iniciativa e qual o tamanho real do projeto, no Amazonas e nos demais Estados do Norte.

Tão surpresos estávamos nós com o Comitê que nos foi apresentado naquele momento, quanto os policiais que nos interrogavam. Não sabíamos nada a respeito, absolutamente nada.

Mesmo assim, como não poderia deixar de ser, não conseguimos esconder certo brilho de esperança nos olhos, com a proposta de resistência que imaginávamos com alguma chance de êxito, com a maior ingenuidade do mundo.

Cascais insistiu com a história do Comitê, mas em vão. Em seguida, como não conseguiu obter uma palavra sequer a respeito da ‘resistência regional’, passou a inquirir-nos sobre a participação de vários nomes nos movimentos de esquerda no Amazonas.

Também não teve o menor êxito. Lembro bem das repetidas indagações sobre a atuação de Francisco Vasconcelos, funcionário do Banco do Brasil e presidente do Clube da Madrugada.

Confesso que até hoje não consigo atinar muito bem com as razões de tanta insistência. Sereno, figura humana das mais amáveis, Vasconcelos, depois transferido para o Banco do Brasil de Santos, em São Paulo, jamais representou qualquer tipo de ameaça ao regime autoritário, embora dirigisse a mais importante organização de intelectuais do Estado e alimentasse opinião sólida sobre os acontecimentos que levaram à ruptura da ordem constitucional.

Informaram-me meses depois que o Comitê não passara de um idílica e solitária criação de Ernesto Pinho Filho, jovem advogado e servidor da Supra – Superintendência da Reforma Agrária, dirigida no Amazonas por Adel Mamede, casado com a bela Regina Pinho, cunhado do autor do manifesto e amigo de Almino Affonso, de quem recebeu a indicação para chefiar aquela autarquia.

Ernesto, vendo o dele e o nosso mundo cair, sob as botas do militarismo triunfante, recolheu-se à sua residência e redigiu sozinho o documento do Comitê de Resistência do Norte, sem consultar ninguém. Não sei o que lhe veio à cabeça e deu no que deu. Foi o último a deixar a prisão do quartel do Exército em São Jorge.

Ao sair do olho do furacão, com o tempo já um pouco mais amainado, tornou-se promotor de Justiça no Estado do Pará. Membro do Clube da Madrugada, revelou-se reconhecido contista e cronista, com produção esparsa em vários jornais da região. Faleceu em Belém no ano de 1996 e levou consigo a ideia da resistência contra o golpe.

Fonte:  Portal D24am