No Chile, Médici fez o serviço sujo para Washington
O programa doméstico de [Salvador, presidente do Chile] Allende em si era problema suficiente para Washington, mas foi sua política externa que mais alarmou [Henry] Kissinger, então assessor de segurança nacional de [Richard] Nixon.
Pobre, remoto, esparsamente habitado e com um formato estranho, o Chile, Kissinger uma vez brincou, era um dardo apontado para o coração da Antártica. Com a eleição de Allende a tentativa de Kissinger de dividir o mundo entre esferas estáveis de influência ficou ameaçada.
O Chile restabeleceu relações com Cuba e trabalhou para livrar a Organização dos Estados Americanos do domínio dos Estados Unidos. Allende logo se tornou líder do desafio econômico do Terceiro Mundo ao Primeiro, através de organizações como o G77, o Movimento Não-Alinhado e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento.
Estes grupos fizeram propostas específicas — eles queriam preços fixos para as commodities do Terceiro Mundo, um banco mundial de energia capitalizado pelos países ricos –, mas foi um princípio moral que dirigiu suas demandas: o Ocidente tinha com eles uma dívida, a ser paga através da transferência direta de capital, tecnologia e propriedade intelectual, até que a economia global fosse reequilibrada.
O princípio seria testado por Allende na questão do pagamento por nacionalizações de interesses mineradores dos Estados Unidos. Desde que o México assumiu os bens da Standard Oil nos anos 30, Washington tinha aceitado o direito das nações de expropriar propriedade estrangeira, desde que restituição satisfatória fosse paga.
Mas o governo de Allende insistiu que ‘lucros excessivos’ — qualquer coisa acima de 12% do valor da companhia — deveriam ser deduzidos da compensação. O Chile assumiu as operações das companhias mineradoras Anaconda e Kennecott e, quando os valores foram calculados, ainda apresentou [às empresas] faturas vencidas a pagar.
Os aplausos em pé que Allende recebeu, principalmente de delegados do Terceiro Mundo, na Assembleia Geral da ONU de 1972, quando ele justificou o conceito de excesso de lucro, foi um turning point na história dos direitos de propriedade internacionais. Washington decidiu que sua tolerância ao nacionalismo econômico do Terceiro Mundo tinha durado muito.
As nacionalizações do Chile, o secretário do Tesouro de Nixon, John Connally, disse, ameaçavam provocar uma bola de neve de expropriações similares na região, com as quais Washington não poderia mais lidar caso a caso.
Havia a metafísica do ódio a Allende, que foi além das questões econômicas e de segurança nacional. “Nos anos seguintes”, Kissinger escreveu em 1968, “as mais profundas ameaças à política estadunidense não serão físicas, mas morais e psicológicas”.
E então chegou Allende, com seus óculos de aro grosso e parecendo bem vivido para um revolucionário. Um dedicado marxista que também era um dedicado democrata, ele não se encaixava no mundo bipolar de Kissinger. Ele não era cru, nem cozido.
“Acho que ninguém do governo [Nixon] entendeu o quanto Kissinger era ideológico em relação ao Chile”, um assessor do Conselho de Segurança Nacional declarou certa feita. “Ninguém entendeu totalmente o quanto Henry [Kissinger] via Allende como uma ameaça muito mais séria que [Fidel] Castro.
Se a América Latina se desvencilhasse, nunca aconteceria por causa de Castro. Allende era um exemplo vivo de reforma social democrática na América Latina. Todos os tipos de cataclismas aconteceram, mas Kissinger temia o Chile”.
[O repórter] Seymour Hersh, baseado numa conversa com outro integrante do Conselho de Segurança Nacional, escreveu que o que Kissinger mais temia sobre Allende não é que ele ganhasse a presidência, mas que no final do mandato o processo político funcionasse e ele, Allende, fosse derrotado. O socialismo, e menos ainda o marxismo, nunca poderia parecer compatível com democracia eleitoral.
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Tanya Harmer, em O Chile de Allende e a Guerra Fria Interamericana deixa de lado argumentos sobre quem foi culpado por determinados episódios da Guerra Fria. Em vez disso, ela considera o contexto amplo. No caso do Chile, significa examinar as ações revolucionárias de Cuba e contrarrevolucionárias do Brasil, tanto quanto os chilenos, nos eventos que levaram à queda de Allende.
Harmer visitou numerosos arquivos em vários países e conduziu entrevistas com vários jogadores-chave. No entanto, não importa quanto ela afaste as lentes as ações dos homens da Casa Branca continuam condenáveis.
O timing da queda de Allende foi determinado pelos eventos no Chile, mas a ‘pequena vantagem’ que Washington deu aos oponentes dele, como o chefe da diplomacia de Nixon na região colocou, foi crítica.
De acordo com Harmer, um “amplo plano de desestabilização” foi colocado em andamento antes da posse de Allende e não terminou enquanto ele não morreu. Washington financiou jornais anti-Allende, deu dinheiro através de terceiros para sindicatos de oposição, aumentou a ajuda para os militares, sabotou a economia e promoveu ações clandestinas “para dividir e enfraquecer” a coalizão Unidade Popular [de Allende], além de financiar através do Partido Nacional, conservador, a criação do grupo paramilitar Patria y Libertad, um esquadrão da morte que rapidamente ‘escapou do controle’.
Kissinger não planejava os eventos no Chile. Não precisava: Harmer demonstra que o regime militar direitista do Brasil, em si um produto de um golpe apoiado pelos Estados Unidos, tomou a iniciativa. O presidente do Brasil, general Emílio Garrastazu Médici, foi pessoalmente convencido por Nixon em uma visita a Washington em dezembro de 1971.
“Há muitas coisas”, Nixon disse ao general, “que o Brasil como um país sulamericano pode fazer que os Estados Unidos não podem”. A atual presidente do Brasil, Dilma Rousseff, passou parte dos três anos em que Allende estava no poder na cadeia, inclusive um período de 22 dias quando foi torturada com choques elétricos — uma das coisas que os militares brasileiros podiam fazer que, naqueles dias, os Estados Unidos não podiam.
Algumas pessoas argumentam, como [o historiador Mark] Falcoff, que a Casa Branca queria um governo interino liberal no Chile e não teria como prever a brutalidade do regime de Pinochet. Harmer enfatiza que Washington “queria um regime autoritário modelado na ditadura brasileira e uma guerra contra a esquerda como único remédio para o dano cometido pela presidência de Allende”.
Washington estava preocupada com o fato de que “os líderes militares chilenos não são suficientemente brasileiros, nem em sua determinação para reprimir a esquerda nem em seu sentido de missão ideológica”. Não precisava ter se preocupado.
O governo da Argentina caiu, derrubado pelos militares, três anos depois do golpe chileno e nas duas décadas seguintes a região se tornou sinônimo de terror político.
Fonte: Viomundo