Em agosto deste ano, a prefeitura de Petrópolis, no Rio de Janeiro, deu um importante passo para o resguardo da memória das vítimas da ditadura brasileira (1964-1985) com a publicação oficial da declaração da “Casa da Morte” como imóvel de utilidade pública para fins de desapropriação.

Essa declaração é uma resposta às reivindicações da sociedade civil, feitas pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis e encampadas pela OAB-RJ.

A Casa da Morte foi utilizada, na primeira metade dos anos 70, como um Centro Clandestino de Detenção (CCD) pelo Centro de Informações do Exército (CIE). Estima-se que neste CCD Casa da Morte podem ter sido executados cerca de 20 presos políticos nos anos de chumbo da ditadura brasileira, a maioria destes até hoje desaparecidos, sendo que seus restos mortais nunca foram encontrados para um sepultamento digno.

Uma vítima deste CCD, Inês Etienne Romeu, saiu dali com vida e pode contar as atrocidades que sofreu juntamente com os outros detidos não sobreviventes. Foi Inês a responsável pela localização da Casa da Morte e do médico-torturador Amílcar Lobo.

Sabe-se que, durante o regime militar, esse imóvel não foi o único local destinado ao uso nefasto de torturar e matar pessoas capturadas pelo Estado. Aliás, esse tipo de violência era prática comum nas ditaduras da América Latina nos anos 70 e, juntamente com os Centros Oficiais de

Repressão/Detenção de opositores políticos, a figura dos Centros Clandestinos de Detenção (CCD) é também conhecida e já tem sido bem estudada e delineada por pesquisadores que se dedicam à temática dos desaparecimentos e torturas de presos políticos.

Na Argentina, por exemplo, as narrativas das vítimas que passaram por esses CCD são tornadas públicas. Há também estudos importantes sobre a arquitetura e a organização espacial dos CCDs e seus efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos, que fornecem subsídios importantes para as políticas públicas de valorização da memória das vítimas da ditadura.

Dentre os tantos artigos interessantes, gosto muito do texto escrito por Zarankin e Niro, que aborda a arqueologia da arquitetura dos CCD da ditadura militar argentina. Este artigo fala da violência na Argentina, mas não se distancia do que se passou no Brasil. Ao contrário.

O artigo começa com o relato intitulado “Um dia no El Vesubio”, de autoria de Niro, sobrevivente do CCD El Vesubio. Niro conta as atrocidades sofridas pelos que ali se encontravam e nas últimas linhas indica o espírito desses Centros Clandestinos de Detenção (CCD): “Tiram-me a roupa. Molham-me com um trapo com água e me atam com um cabo, no dedão do pé. Com outro cabo começam a dar máquina.

O vazio. Não sei quanto tempo dura, em realidade. Sinto que me tiram a alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado (…). Certo dia, um companheiro que tomava um medicamento devido a um problema psicológico, padecia de delírios de perseguição ao ficar sem o remédio e pedia, aos gritos, que o trouxesse. Nós pedíamos que ele se calasse para evitar reprimenda.

No entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se escutou a voz de um repressor dizendo: “De que te queixas? De teu delírio de perseguição? Mas já te agarramos…”. (“A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-1983)”.

Não por coincidência, a vontade de “agarrar/capturar” os opositores e lhes silenciar ou até lhes transformar em aliados do regime autoritário também é um traço da ditadura militar brasileira.

Em julho deste ano, um coronel reformado, que pertenceu aos quadros do Centro de Informações do Exército (CIE) e admitiu a existência da Casa da Morte, esclareceu, em entrevista a jornal de grande circulação, que a finalidade da Casa da Morte não era o extermínio das vítimas, mas “a conquista a confiança de militantes da luta armada” para que estes militantes se tornassem “espiões do regime dentro de suas organizações” 

Esse início de desapropriação, com a declaração de utilidade pública do imóvel onde funcionava o CCD Casa da Morte, é o primeiro passo para transformar esse imóvel num Lugar de Memória.

Lugares de Memória (ou Sítios de Consciência) é um termo de direitos humanos que se refere a locais que abrigam diversos meios e formas de celebração e cultuação das memórias de vítimas submetidas a atrocidades e supressão de direitos, em razão de guerra, de regimes autoritários ou de atos violentos (excepcionais e inaceitáveis) praticados em períodos de guerra ou de ditadura.

Além do valor para os direitos humanos, os Lugares de Memória têm valor histórico e cultural. No plano jurídico, por serem a materialização da memória de um período histórico, enquadram-se na concepção de sítios de valor cultural, previstos na Constituição (art.216, inc. V).

Por isso, a concepção, instalação e gestão desse tipo de local envolvem políticas públicas para os direitos humanos (com enfoque na reparação das vítimas e também para que a violência nunca mais aconteça) e políticas culturais, com ações ligadas à gestão e proteção dos bens culturais, especialmente de museus, memoriais, arquivos públicos e outras ações que ajudem a compreender a história do país durante a ditadura militar.

No Brasil, há instrumentos jurídicos para a proteção dos bens cultuais listados na Constituição: inventário, tombamento, desapropriação, registro e vigilância (art.216§1°). Além desses, a Constituição diz, no mesmo dispositivo (art.216, §1°), que são admitidas outras formas inominadas para proteção dos bens.

No caso da Casa da Morte, a escolha do município foi a desapropriação, ou seja, a opção foi de transferir para o município de Petrópolis a propriedade deste imóvel mediante pagamento de seu valor ao particular. Nas notícias recentes, há depoimento do proprietário do imóvel, que hoje é uma casa como tantas outras, sobre o descabimento da medida pela prefeitura de Petrópolis.

No entanto, o que aconteceu naquele imóvel tem um valor histórico e cultural maior que o direito deste proprietário em continuar a habitar o local. Não falo do direito à propriedade, que é um direito fundamental, garantido pela Constituição e que remanesce agora resguardado pelos procedimentos e requisitos que serão seguidos para a transferência compulsória da propriedade.

Nesse sentido, a desapropriação se fundamenta e a decisão da prefeitura de Petrópolis é idônea e legítima porque atinge o objetivo público de recordar as atrocidades para que nunca mais aconteçam, de valorizar a memória das vítimas e de resguardar a memória coletiva.

Que boa iniciativa vinda de Petrópolis! Que bom ver as reivindicações para a Verdade e Memória atendidas!

Inês Virgínia Prado Soares é mestre e doutora em Direito pela PUC/SP, procuradora da República em São Paulo e coordenadora, juntamente com Sandra Kishi, do livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro, Editora Forum, 2009. Dirige, juntamente com Marcos Zilli, a Coleção Fórum Direitos Humanos.

Fonte: Correio da Cidadania