Nada simboliza melhor a derrocada do imperialismo japonês no desfecho da 2ª Guerra Mundial (1939/1945) do que a foto do Imperador Hirohito (1901/1989) curvando-se perante o General MacArthur (1880/1964).

Nada sintetiza melhor os jogos de trapaças e execuções do que a falsificação da mesma imagem para ocultar os interesses do coronel Watanabe (Eiji Okuda) de manipular a comunidade nipônica num lugarejo do interior de São Paulo.

É a mesma imagem servindo-se, a um só tempo, para dar veracidade a dois fatos históricos, com objetivos diferentes.

Com apenas a mudança da legenda da rendição em 02/09/1945 a história adquire outro caráter. A imagem torna-se espelho de dupla face. E o que vale para o leitor é o que ele lê não a construção da fotomontagem.

É este jogo de veracidade e falsificação que dita a narrativa de “Corações Sujos”, sobre as consequências da derrota japonesa na II Guerra Mundial.

A partir de diferentes visões da rendição nipônica, o diretor brasileiro Vicente Amorim estrutura sua narrativa, mostrando o poder da falsificação e da manipulação.

A foto, no entanto, é só um dado neste castelo de mentiras. O cel. Watanabe vale-se dos rígidos códigos de ética e honra japoneses para opor os dois grupos de imigrantes: os kachigumis que não aceitam a derrota e os makegumis que a admitem, por isto são os “corações sujos”.

Ele, Watanabe, monta, sobretudo, a mística do exército imperial invencível e do Imperador imortal. Seus propósitos terminam por atestar as fragilidades dos ditos códigos e desmitificar Hirohito, dado ao castelo de palha por ele montado.

Durante o conflito bélico entre as forças aliadas, lideradas por União Soviética e EUA, e os países do Eixo nazifascista (Alemanha, Itália e Japão), apenas a elite tinha acesso à informação em meio aos algodoais do interior paulista.

O Governo Vargas (1930/1945), que no princípio flertara com o Eixo, mudara de lado, e, a exemplo dos Estados Unidos, confinara os imigrantes nipônicos, pondo as forças de segurança para vigiá-los, mesmo após o término da 2ª Guerra Mundial.

Filme muda seu eixo central

Ainda assim, Watanabe age como um comandante que tenta manter alta a moral de sua tropa, para não submeter-se ao inimigo. Usa, para isto, a cultura milenar japonesa. E transforma o fotógrafo Takahashi (Tsuyoshi Ihara) num samurai para executar os makegumis. Ele, Watanabe, é o xogun, chefe militar, e Takahash seu soldado.

O samurai era, no início (1100), coletor de impostos no Japão feudal, depois se tornou soldado, até extinguir-se em 1867. É ele, o samurai Takahash, que entrará em crise, sem cumprir o ritual. Seu código de honra, o bushido, exigia que, ao fracassar, tinha de suicidar (seppou), cortando o estômago com a katana (espada), mas o subverte.

Takahash é, assim, o herói que perde o amor de sua companheira Miyuki (Takako Tokiwa) e a noção de honra e precisa se redimir. Sua história é, na verdade, o eixo central do filme, embora a dupla Amorim/David França tente mostrar sua derrocada sob o olhar da garota de 11 anos, Akeni (estréia da brasileira Celine Fukumoto).

Mas ela não intervém na história, é apenas vítima. E, deste modo, sua presença e a relação Takahash/Miyuki se tornam subtramas que enfatizam as falácias de Watanabe.

É a memória de Akeni retendo a perda do amor (caso Takahash/Miyuki), a proibição do ensino do japonês aos filhos dos imigrantes, as execuções dos makegumis e, inclusive de seu pai, Shure Sugata (Sasaki) e a dor de sua mãe Naomi (Kimiko Yo). Mas a narrativa se divide em vários fios, como os de Shure, de Aoki e de Matsuda (o imigrante Ken Kaneko).

E o que era o centro, a memória, se transforma na história do fotógrafo que virou samurai. Então, deixa de ser drama e vira, sem dúvida, thriller com instantes do samurai de Kurosawa, em “Sanjuro”(1962). Basta observar as lutas e os ângulos de câmera.

Esta tentativa de dotar o filme de um olhar japonês rende boas sequências, algumas memoráveis. Principalmente a de Takahash na estação. É quando ele se dá pela manipulação a que o submete Watanabe. E estaca-se na plataforma da estação passando ao espectador a dimensão de sua tragédia.

É um instante mágico de cinema e da disciplina do ator nipônico Tsuyoshi Ilhara (“Cartas de Ywo Jima”), que transmite as nuances de seu personagem sem histrionismo. É superlativo numa época em que a interpretação serve apenas ao estrelismo.

Porém, “Corações Sujos” é um filme linear, que recente, na primeira parte, da tipificação do lugarejo, da produção do algodão e do cotidiano dos personagens para situar melhor a história. Entra logo na ação, com cortes rápidos, que turvam as intenções de Takahash, que passa por radical mutação.

Apenas nas duas partes subsequentes, as cenas decantam e as intenções de Watanabe ficam claras. E mostram que Takahash perdeu mais que a honra, perdeu a amada. Nem o tempo o eximiu de culpa pela tragédia provocada pela falsa honra e ética imperial, na qual ele chafurdou.

“Corações Sujos”

Brasil. Thriller. 2010. 115 minutos. Fotografia: Rodrigo Monte. Roteiro: David França Mendes, baseado no livro-reportagem homônimo de Fernando Morais (2000). Direção: Vicente Amorim. Elenco: Tsuyoshi Ihara, Takako Tokiwa, Eiji Okuda, Shure Sugata, Kimiko Yo, Celine Fukumoto, Ken Kaneko.

Fonte: Portal Vermelho