Enquanto o regime militar se estabilizava no Brasil em 1970, não só pela repressão amparada no AI-5 , mas também mercê dos êxitos econômicos inesperados,  aumentava, dia a dia, o número de exilados brasileiros em Santiago. Teriam chegado a dez mil. 

Lá encontraram, no ano de 70, uma fase de grande euforia, marcada  pela vitória da Unidade Popular que elegeria o primeiro Presidente marxista na América Latina, em plena Guerra Fria e contra os interesses dos Estados Unidos;  o  ano seguinte foi  de esperança, ao se conhecerem os primeiros indicadores de desempenho da economia divulgados pelo Ministro Pedro Vuskovic e de aceitação do Governo Allende; o terceiro, 1972, de mãos à obra, com intensa mobilização de toda a comunidade exilada nos trabalhos voluntários, de forma a compensar a boicote de setores empresariais, e de incorporação em ações estatais ou político-partidárias; e o ano de 73, até o dia 11 de setembro, dia do golpe,  de grandes apreensões .

“Em 1973, a inflação chegou a cifras de 381,1%, os produtos básicos de consumo desapareceram das prateleiras, o desemprego crescia assustadoramente e a produção e o valor da moeda de então, o Escudo Chileno, em proporção inversa, caíam de forma vertiginosa.”
                                             

Os brasileiros, mergulhados na vida cotidiana do Chile, iam aprendendo melhor a língua, os costumes, as variantes culturais e, sobretudo, a especificidade da via chilena. Alguns casamentos. Todo o começo é sempre difícil.

Mas havia as compensações: A paisagem fascinante, a vida organizada, as comidas – o pastel de choclo, as empanadas, os “locos” – e muita poesia musical, estimulada pela presença de Pablo Neruda nas manifestações e espetáculos.

Politicamente,  foi muito difícil entender aquela obstinação que tinham os chilenos com a estabilidade institucional do país. Ela fora convertida em mito pela esquerda chilena. Ela confiava pia e sagradamente que a profissionalização de suas forças armadas, há 40 anos distante de qualquer intervenção, jamais seria capaz de fazer o que fizeram em outros países do continente. A via chilena, enfim, era um dogma, que o Presidente Allende, levou, coerentemente, às últimas conseqüências. 

Anos mais tarde, indaguei, em Porto Alegre, numa Mesa Redonda sobre Economia, na Assembléia Legislativa,   em que participava com Pedro Vuskovic, se Allende, enfim, não sabia do golpe. Ele, Ministro, confiou-me que sim, Allende pressentia, e que chamara as lideranças que o sustentavam advertindo-as para o imperativo de uma ação revolucionária das instâncias Partidárias, vez que ele, jamais o faria, pelo juramento à Constituição. Não houve resposta.

O mito da estabilidade as paralisara totalmente. Um pequeno mas atuante grupo, à esquerda da Unidade Popular, o MOVIMIENTO DE IZQUIERDA REVOLUCIONÁRIA – MIR-  , altamente consciente da gravidade da situação política que se deteriorava ao longo de 1973, comprometendo a sobrevivência do Governo, em decorrência de boicotes empresariais,  greves nos transportes e “acaparamientos”, que consistiam em retiradas de produtos básicos das prateleiras e seu depósito em “escondites”, tentava , em vão, uma mudança de rumos. Mas poucos lhes davam ouvidos. A “via chilena”se consagrara , acima de qualquer questionamento. Insólita, como a qualificou Fidel Castro, em visita – incômoda- ao país. Mas imperativa.

Toda esta trajetória da Paixão e Morte da Via Chilena , não foi apenas vivenciada pelos brasileiros que lá estavam. Hoje ela está fartamente avaliada em diversos livros e Teses acadêmicas, como,por exemplo,  “Salvador Allende e o mito da estabilidade chilena”, de Ana Cristina Augusto de Souza, na qual se pode encontrar farta indicação bibliográfica. Naquela época, porém, cada grupo a avaliava segundo sua ótica política própria.

A “aristocracia” exilada, mais antiga e acomodada nos órgãos internacionais sediados em Santiago ou na Universidade , quando não no próprio Governo, como Conceição Tavares, José Serra, Fernando Henrique Cardoso, pactuou firmemente com o mito da estabilidade. Todos eles tiveram um papel importantíssimo na colônia pela crítica ao regime militar no Brasil e apoio à “Caixinha”.

Creio que um dos últimos responsáveis por ela , aliás,  foi o nosso saudoso conterrâneo Paulo Renato,  funcionário da OIT, cuja temperança política não fazia par com o destemor e espírito de solidariedade que demonstrou nos dias cruciais do Golpe. Muitos lhe devem a vida. Eu lhe devo a fidalguia de ter acompanhado minha segunda esposa, chilena, acusada pelo ex-marido como terrorista e seqüestradora de uma filha, a um Tribunal.

Outros segmentos dos brasileiros, enfim,  acomodavam-se em seus respectivos grupos políticos. E com a quantidade de gente que já lá estava em 1973, era impossível fazer qualquer classificação. Uma coisa, porém, é certo: Tirávamos lições.

A primeira lição que aprendemos no Chile foi sobre a importância da democracia. A esquerda brasileira vinha de uma formação estalinista, propensa a descartar qualquer importância às Instituições e ao Estado, tomados como burgueses. Mesmo com as tensões da Via Chilena e seu posterior fracasso, começamos a dar um valor crescente à construção da democracia como um valor universal.

E ao Estado como instrumento social. Pouco depois, Carlos Nelson Coutinho nos brindaria como um artigo, no Brasil, com este título e que inauguraria o arejamento da esquerda com o contributo gramsciano da  importância da hegemonia e não apenas do Poder para o socialismo.

Outra lição importante, para todos nós, foi a compreensão das alianças, corolário do anterior, na montagem de estratégias de Poder. Pudemos perceber, na experiência chilena, que numa sociedade moderna a classe média e suas representações políticas têm um papel importantíssimo, que pode ou não viabilizar estratégias de mudança.

Digo até, que essa foi uma lição decisiva para pensadores  marxistas ortodoxos, como Emir Sader e Marco Aurélio, na montagem de estratégias de governabilidade do Governo do PT no Brasil, a partir de 2004.

Decisivo foi também o entendimento de uma dialética interna da esquerda, quando,  dentro e fora de um Governo , há fronteiras a serem respeitadas. Muitos até debitam o enfraquecimento de Allende às divergências internas da UNIDADE POPULAR ou à existência de uma ultra-esquerda, o MIR, que lhe teria solapado o vigor ideológico. Ledo engano!

As divergências internas foram extremamente salutares ao regime e o MIR, conquanto de extrema esquerda, e fora do Governo, jamais abriu baterias contra a pessoa do Presidente Allende. Pelo contrário, conta-se que a Guarda Pessoal de Allende era feita por militantes do MIR. Nada parecido com o que hoje presenciamos na cena brasileira, na qual  , a cada defecção escorre um filamento de ódios incontidos.

Finalmente, os tempos idos e vividos no Chile realimentaram a esquerda brasileira de um elemento decisivo na sua decantação humana: a solidariedade. Talvez até pela necessidade. Mas foi um fato, talvez extraviado. 

As portas se abriam a cada um que chegava, amizades se fortaleciam no apoio a pessoas que deixavam para trás família, maridos ou pais presos, empregos, estabilidade. Refinava-se o ingrediente básico de uma visão de mundo mais fraterna, curiosamente destacado sempre pelo próprio Allende, ao  frisar, incansavelmente,  que tudo deveria começar no coração de cada chileno.

Tenho o orgulho de ter, nesse processo, aberto não só nossa casa a muitos camaradas, maioria gaúchos exilados, com os quais me reaproximei,  não tanto em obediência à fórmulas doutrinárias de socialismo, mas ao reconhecimento de valores humanos como caráter, coragem , determinação e amizade.

No dia 11 de setembro de 1973, tudo acabou. Nas cinzas do La Moneda , Palacio Predencial bombardeado, as últimas palavras del “Chicho” , testemunhando a barbárie:

E o paradoxo de ter, com o fracasso da “Via Chilena”, enterrado a ilusão militarista e condoreira da esquerda do assalto ao Poder. A partir de então, surgia na América Latina uma nova esquerda, francamente aberta a comprometida com a democracia, só tática, mas estrategicamente.

Fonte: Sul21