A UNE como instrumento de subversão: A frente da juventude democrática contra a esquerda estudantil durante a greve universitária de 1962
As reformas de base e o movimento estudantil
No início dos anos de 1960, principalmente entre 1962 e os primeiros meses de 1964, o principal debate que dividiu as opiniões da sociedade brasileira foram as reformas de base. Essas reformas foram materializadas, dentre outras, nas propostas de reforma agrária, urbana, bancária, eleitoral e universitária. A justificativa era de que o Brasil havia chegado a um grau de desenvolvimento que exigia transformações estruturais que possibilitassem a sua continuidade por meio da “ativação da economia rural e da mobilização da econômica urbana, ampliada através” das outras reformas em marcha (1).
Como tema dessas reformas o ensino superior também era considerado superado para a realidade em que o Brasil se encontrava. Segundo o Programa de Governo para a Educação e Cultura:
“[o] país que se industrializa e necessita, cada vez mais, de técnicos de nível superior para as múltiplas tarefas de uma sociedade moderna, continuamos a manter um ensino universitário obsoleto, de alto custo e baixo rendimento, além de inteiramente insuficiente do ponto de vista quantitativo.” (2)
Para Florestan Fernandes, além da necessidade de superar a precariedade do ensino superior, também era necessário uma total “substituição do padrão aí dominante de trabalho pedagógico que fazia do labor intelectual um fim em si mesmo, divorciando-se exageradamente da pesquisa científica, do pensamento criador e da reflexão prática”. (3)
As reformas que foram propostas no campo educacional, no entanto, não foram debates exclusivos do governo ou dos intelectuais. A necessidade de mudanças no sistema de ensino também era abordada pelos reitores das universidades, professores em geral e pelos movimentos sociais. Dentre eles, o movimento universitário, que a partir da UNE, de suas congêneres estaduais e dos centros e diretórios acadêmicos, promoveu diversos debates e estudos em torno do tema, dos quais os Seminários Nacionais de Reforma Universitária (SNRU) foram os mais importantes.
Os SNRU contavam com a participação de estudantes que representavam todas as regiões brasileiras e aconteceram de 1961 até 1963. (4)
No I SNRU, realizado em Salvador, os estudantes nele reunidos analisaram a universidade dentro do contexto geral no qual entendiam que o país se encontrava. Segundo o seu resultado, exposto em um documento intitulado Declaração da Bahia, o Brasil era uma nação capitalista em fase de desenvolvimento, marcada por uma infra-estrutura agrária de bases latifundiárias, dependente das potências estrangeiras, insuficiente em seus padrões de vida e com um grande desequilíbrio regional. (5)
Quanto à questão específica do ensino superior o I SNRU apontou que:
“Universidade e sociedade se interpenetram e se interinfluenciam individualmente. Uma sociedade deformada conterá uma Universidade igualmente mutilada. Reciprocamente, uma universidade infiel às suas responsabilidades históricas estará conformando uma sociedade incapaz de auto-superar-se, insensível à auto-crítica, vedada à evolução” (6)
Para esses estudantes a forma de resolver o problema da questão universitária estava situada em um quadro maior, no qual as suas mudanças tinham que estar ao lado e em sintonia com as outras transformações que eram preconizadas pelo conjunto das reformas de base. O problema que então passou a se colocar para o movimento universitário liderado pela UNE foi de como essas mudanças seriam realizadas, e quem as realizaria.
Foi a partir do II SNRU, realizado em Curitiba, que uma proposta de como chegar aos objetivos estudantis e uma linha de ação mais concreta passou a existir.
Desde o I SNRU os estudantes debatiam a democratização da universidade, e um dos meios para que isso acontecesse era a participação do corpo discente nos seus órgãos colegiados. Esses órgãos eram as Congregações, Conselhos Universitários, Conselhos Técnicos e Conselhos Administrativos, nos quais os estudantes tinham direito a uma vaga, geralmente ocupada pelo presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE). O problema é que para os setores ligados a UNE, a representação de apenas um membro nesses órgãos não possibilitava que as ideias estudantis de fato tivessem representatividade. Segundo foi sintetizado por Roland Corbisier:
“Só essa participação da mocidade estudantil, hoje esclarecida e identificada com as aspirações populares e nacionais, tornará possível a transformação da Universidade em um instrumento promotor do desenvolvimento, da emancipação econômica do progresso social” (7)
Para os setores que defendiam a participação estudantil nos órgãos colegiados, havia um conflito acontecendo no interior das universidades. Interpretava-se haver uma contradição entre o novo e o velho, o revolucionário e o reacionário. Esse conflito era reconhecido a partir das identificações que se fazia do corpo universitário dirigente. Se por um lado a UNE afirmava os estudantes como a “parcela mais comprometida com o futuro, mais aberta aos novos ideais” (8), o professorado, ou grande parte dele, era considerado como “frequentemente reacionário e acumpliciado com os interesses das classes dominantes” (9). Considerava-se então que cabia aos estudantes protagonizar as mudanças que eles achavam necessárias, já que era entre eles que as novas concepções tinham mais abertura.
Munidos dessa interpretação, parte significativa das direções estudantis decidiram a estratégia de luta pela reforma universitária. A forma de iniciá-la era democratizar os órgãos colegiados ampliando a participação dos estudantes, na proporção de um terço do seu número total de membros, o que também foi chamado de co-governo. E quem daria início a essas reformas seria o próprio movimento universitário.
A primeira ação da UNE no sentido de mobilizar e tentar unificar os estudantes em torno da reforma universitária, e em especial em torno das propostas do II SNRU, foi a criação da UNE-Volante, uma caravana dos diretores da UNE e do Centro Popular de Cultura (CPC) que percorreu quase todas as capitais brasileiras realizando assembleias, reuniões, apresentando peças de teatro, debatendo a reforma universitária e defendendo a participação estudantil de um terço nos órgãos colegiados. (9) Para a UNE, era necessário que os estudantes conhecessem as análises e as propostas dos seminários que haviam sido realizados pela entidade. Segundo um de seus comunicados, enviado para os Centros Acadêmicos:
“A UNE-Volante, percorrendo todos os Estados, levará as definições sociais do movimento estudantil, instrumento seguro para prosseguirmos em nossa luta. (…) Dentro de uma perspectiva tática nossa luta será tanto mais válida quanto mais bem orientadas forem as nossas reivindicações, quanto mais bem estruturado estiver o nosso movimento.” (…) Impõe-se aqui, como tarefa imediata, nossa presença nessa reformulação, exigindo um co-governo efetivo (um terço de aluno) que dê ao estudante as possibilidades reais e válidas nos órgãos de direção da Universidade.” (11)
Ao considerarmos esse comunicado podemos concordar com o apontamento de José Luiz Sanfelice (12), de que provavelmente a UNE tivesse convicção de que os estudantes estavam ganhando novas forças e perspectivas.
Por outro lado, o cenário no qual se afirmavam as propostas das reformas de base e no qual os estudantes ligados a UNE desenvolviam as suas concepções não era homogêneo e as posições que se contrapunham à elas eram bastante fortes. Haviam setores que identificavam nas manifestações reformistas a influência do comunismo e o objetivo de subverter a ordem democrática, além de um radicalismo extremo.
Essas interpretações tinham origem tanto no contexto internacional quanto no nacional. No plano internacional a Guerra Fria colocava em confronto as duas superpotências mundiais, os EUA e a URSS. Quanto ao Brasil e a América Latina, eram um teatro secundário até que a Revolução Cubana arrastou todo o Continente para o centro do embate. (13)
Identificado o perigo internacional do comunismo e o crescimento nacional dos movimentos de esquerda, os setores mais conservadores e as fileiras do anticomunismo passaram a se organizar e se traduziram em algumas organizações com importância preponderante no Brasil. Duas dessas organizações foram o Instituto Brasileiro de Ação de Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Juntos, o IPES e o IBAD lideraram ações de contenção da influência das organizações de esquerda em diversos movimentos e segmentos sociais. Também lançaram filmes, revistas, estudos e livros de propaganda contrária ao comunismo. (14)
No interior das organizações estudantis a maior influência que existia naquele momento era da esquerda, em especial de um setor político com origem na Juventude Universitária Católica (JUC) que havia se consolidado na direção da UNE a partir de 1961, com a eleição de Aldo Arantes, então membro dessa organização. Em seguida, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) também exercia influência. Para fazer frente ao avanço dessas organizações dentre os estudantes, o IPES, e em especial o IBAD, se empenharam em “uma difícil e dura campanha de contenção e desagregação dirigida especialmente contra a UNE” (15). Sua atuação principal se dava por meio do Movimento Estudantil Democrático (MED) e da Frente da Juventude Democrática (FJD), patrocinada pelos IPES e dirigida por ativistas estudantis de direita.
A greve universitária
A greve nacional por um terço teve início dia 1º. de junho e o jornal Última Hora atribuiu ênfase a decisão do Conselho Nacional de Estudantes em “lançar mão do recurso extremo a fim de verem atendidas as suas reivindicações” (16). A efetivação da greve, no entanto, era parte de um cenário de efervescência no interior das universidades. Os estudantes da Universidade Mackenzie, em São Paulo, estavam com as aulas paralisadas desde o início de maio, reivindicando que a instituição fosse federalizada. (17) Na Faculdade de direito da Universidade de São Paulo (USP), a greve era direcionada contra um concurso de Cátedra que os estudantes eram contra. No final de maio, a União Estadual dos Estudantes (UEE-SP) incorporou as reivindicações estudantis dessas duas universidades e foi decretada uma greve geral no Estado que em junho ainda estava vigorando.
No Rio de Janeiro, os alunos da Faculdade Nacional de Direito também estavam em greve contra a proibição de uma conferência patrocinada pelo Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) e os alunos da PUC em greve contra a demissão sumária do Professor de Direito Civil da Instituição. (18)
No Paraná, as aulas também estavam suspensas desde o início de maio, reivindicando antecipadamente a participação de um terço nos colegiados. (19) Em Fortaleza, os estudantes também estavam em greve e na Bahia, Pernambuco e Paraíba as mobilizações estudantis vinham sendo constantes.
Com o decreto da paralisação nacional da UNE, o movimento incorporou e unificou a grande maioria das reivindicações que já existiam, o que significou um peso considerável logo no seu primeiro dia. Nos outros Estados, a paralisação foi acontecendo gradativamente, conforme os Conselhos Estaduais de Estudantes se reuniam para deliberar a parede.
Por outro lado, o meio universitário, mesmo no auge inicial da greve por um terço, não era homogêneo ou unitário. Apesar de alguns grupos frontalmente opostos à UNE terem se manifestado favoráveis a paralisação, especialmente na Guanabara, (20) na Universidade Mackenzie e na PUC, em São Paulo, grupos de alunos das Faculdades de Direito se posicionaram publicamente em favor de furar a greve. (21) No Paraná, nas cidades de Ponta Grossa e Londrina também haviam estudantes contrários a greve, além de um movimento pró-plebiscito, que a partir de um grupo estudantil de Curitiba passou a exigir da União Paranaense dos Estudantes (UPE) uma votação geral, justificando que essa era a oportunidade de todos os universitários se expressarem em relação a paralisação, proposta que foi tachada como traidora e divisionista pela UPE. (22)
No entanto, os movimentos que se opuseram à greve não se tornaram nacionais e foram sendo ofuscados pelas assembleias dos centros e diretórios acadêmicos e pelas intervenções das entidades estudantis estaduais, que foram continuamente ratificando a decisão da UNE e as resoluções do II SNRU. Nesse contexto inicial, a FJD surgiu como a primeira organização radical de oposição a greve, que apesar de não ter aglutinado um número significativo de estudantes, se manteve na imprensa nacional assinando longos comunicados nos quais denunciava a infiltração comunista internacional na direção da UNE e os objetivos da entidade em conturbar o panorama nacional.
A FJD contra a UNE durante a greve
As ações da FJD e de grupos contrários a UNE e ao avanço das esquerdas no interior das entidades estudantis não eram novidade em 1962. Desde 1956 a FJD promovia denúncias contra a influência comunista nos meios estudantis, quando relatou aos órgãos de segurança que dois membros da União Internacional dos Estudantes (UIE), em visita ao Brasil, traziam material subversivo e instruções comunistas aos brasileiros. (23) Em 1958, no contexto das mudanças internas que ocorriam nas entidades estudantis, a FJD passou a denunciar o caráter comunista dos encontros universitários, principalmente nos Estados de São Paulo e do Paraná. (24)
No entanto, o ano de 1962 começou com ações mais violentas. Logo no início do ano a sede UNE foi metralhada pelo Movimento Anticomunista (MAC) e um grupo de anticomunistas tentou ocupar a sede da Rádio Farroupilha, em Porto Alegre. A ação do MAC criou um alarde geral na imprensa (25) e acirrou os ânimos contrários a esse tipo de ação. No mês de abril, durante uma conferência do deputado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, na sede da UNE, estudantes que discordavam da política praticada pela entidade atacaram os participantes com pó de mico, pimenta do reino e bombas de ácido sulfúrico. Esses acontecimentos contribuíram para o acirramento das relações entre as esquerdas estudantis e as suas oposições durante a greve por um terço.
A FJD, ainda no dia 1º de junho, publicou o seu posicionamento oficial em relação a parede estudantil. Segundo a organização, a greve da UNE era uma manobra comunista, criminosa e impatriótica. Afirmava ainda que:
“na base das falsidades comuns a tática revolucionária do Kremlin, o movimento paredista é apresentado como resultante de motivos relevantes, isto é, desejo de participação no conselho das universidades, solidariedade aos estudantes perseguidos, reforma universitária e outros pretextos, quando a greve geral decorre de ordem expressa da União Internacional de Estudantes (UIE), em Praga, que determinou aos seus agentes – traidores dos estudantes – que perturbem o ambiente para tornar possível a eclosão revolucionária dos operários (greves) e camponeses (guerrilhas).” (26)
Logo depois, em 17 de junho, outro comunicado de grande circulação da FJD afirmava que a greve da UNE era organizada por agentes comunistas a serviço da guerra civil, e afirmava que nas sedes dos centros acadêmicos existiam armas leves e revolveres. (27)
Ainda no mesmo mês, a FJD deu início a uma campanha para que a UNE fosse expulsa da antiga capital brasileira. Segundo o comunicado, intitulado Manifesto da FJD contra a permanência da UNE no Rio de Janeiro, (28) a organização sugeria que a entidade nacional dos estudantes transferisse sua sede para Brasília, ou para “Moscovita, matriz ideológica do internacionalismo nacionalista, fabricantes de greves, lutas de rua, agitação e invasão de escolas” (29) . Segundo o comunicado, a mudança da “minoria corrupta de comunistas arruaceiros da UNE” para Brasília se faria com as verbas de 385 milhões que ela recebia do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Até meados de julho, a FJD publicou outros comunicados que circularam em torno das mesmas denúncias, incluindo a intenção da UNE em cubanizar o Brasil (30). A organização também manteve a campanha de expulsão da sede da entidade, incluindo encontros com o Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que tinha um discurso similar ao da FJD em relação a transferência da UNE, e que também recebia atenção da imprensa.
No entanto, a partir da segunda quinzena de julho, as motivações dos discursos da FJD passaram por alterações, porém mantendo o mesmo conteúdo. A forma como essa organização entendia a participação das esquerdas nas entidades estudantis não estava relacionada apenas com uma concepção anticomunista doutrinária. O discurso da FJD também se relacionava com a militância política que a organização desenvolvia nos meios universitários e com as disputas eleitorais das entidades estudantis. Nesse contexto, como a reivindicação por um terço não era atendida, a greve se prolongou, coincidindo com o XXV Congresso da UNE (31), centro nacional dessas disputas e que iria eleger a nova diretoria da entidade. Ao anticomunismo da FJD na imprensa foram acrescidas as divisões internas do movimento universitário, o que provocou divergências e cisões mais nítidas em seu interior.
A partir do início do congresso da UNE, ao lado dos comunicados da FJD começaram a circular também as posições da Aliança Democrática Estudantil (ADE), de grupos estudantis ligados aos setores mais conservadores da Igreja Católica e das Mães, apelando contra a participação dos comunistas na UNE (32). Além das disputas estritamente estudantis, Carlos Lacerda e o reitor da Universidade do Paraná, Flávio Suplicy de Lacerda, deram início a uma forte campanha contra a greve por um terço, na qual também qualificaram a UNE como um centro comunista.
Tendo no congresso da UNE um espaço para expor e disputar as suas posições, a FJD, por meios dos seus comunicados, passou a tentar aglutinar estudantes e a denunciar as restrições que os democratas supostamente sofriam durante o encontro. Tiveram início as denúncias dos planos de agitação comunista no próprio congresso estudantil. A FJD passou então a se reafirmar como defensora da democracia e opositora do comunismo nos meios estudantis e se apresentou aos universitários como a promotora de uma “maratona cívica em favor da libertação dos estudantes brasileiros”, na tentativa de livrá-los dos “grilhões da minoria russificada que empolgou a direção da UNE” (33). Nesse sentido, ao lado das denúncias de que a minoria comunista da UNE tentava “corromper, coagir, amedrontar e perseguir a maioria dos estudantes democratas, brasileira e nitidamente anti-soviética”, se mantiveram as acusações contra o que se entendia ser a “inimiga do estudo, que recebia contribuições do peronismo internacional (Brizola) e conduzia o congresso com assessoria de técnicos comunistas da Rússia, China e Checoslováquia, autênticos espiões” (34).
Ao final do congresso, ainda com a continuidade da greve por um terço (já chegando ao seu terceiro mês e bastante desgastada), os discursos que se formaram em sua oposição, e em especial contra as esquerdas no congresso da UNE, tiveram reflexos imediatos. Da Escola Superior de Agricultura surgiu um telegrama “repudiando as atitudes esquerdistas da entidade” (da UNE) (35). Na Universidade Mackenzie, alguns centros acadêmicos reuniram os seus cursos em assembleias e se desligaram da UEE-SP e da UNE, de modo geral aprovando cartas de repúdio as ações da entidade, que entendiam ser subversivas. Mesmo em faculdades onde as esquerdas eram bastante fortes começaram a surgir oposições, como na Escola Politécnica da USP. Em Santa Catarina, Paraná e Recife também começaram a surgir movimentos de retorno às aulas e em alguns casos, de oposição a UNE (36). No Rio de janeiro e na Guanabara, estudantes de diversos centros acadêmicos da PUC se desligaram ou se colocaram em oposição a UNE, lançando o Movimento Solidarista Universitário (MSU), que se opunha ao comunismo e aos extremismos. Os centros acadêmicos das faculdades da Nacional de Medicina, Engenharia e Odontologia também se desligaram da UNE. O rompimento mais expressivo, no entanto, aconteceu no início de novembro, quando a coluna Encontro Universitário, do Jornal do Brasil, divulgou os resultados da votação para a União Metropolitana dos Estudantes (UME), do Rio de Janeiro: Vitória foi da renovação (37). Mesmo sem os votos de faculdades cariocas importantes, que haviam rompido com a UME e a UNE, a oposição derrotou a esquerda, dando início a uma sequência de vitórias da oposição em outras entidades estaduais.
Conclusão
Ao tentar uma análise sobre o discurso anticomunista nos meios universitários, o presente artigo buscou entender as formas como FJD concebeu as esquerdas estudantis. Ao mesmo tempo, também buscou compreender o movimento universitário a partir de um espaço heterogêneo, marcado pelas diferenças e pela disputa das entidades estudantis entre grupos políticos opostos, que em última instância, nos anos de 1960, representaram de um lado as forças de esquerda, e de outro, as forças que discordavam e se opunham ao que se considerava ser a influência do comunismo. A reflexão sobre o tema parte da análise colocada por Daniel Aarão Reis (38), de que:
“Os estudantes em geral, e tão pouco, os estudantes universitários em particular, não constituem um todo monolítico, infensos à divisões políticas. São atravessados pelas questões que agitam a sociedade, e não podem ser reduzidas à problemática de classe”
Nesse sentido, os setores da esquerda estudantil que tentavam formar as frentes únicas nas entidades estudantis, unindo os diversos grupos que possuíam algum ponto em comum, passaram a sofrer oposição acirrada em algumas faculdades e em importantes entidades estudantis, das quais algumas foram conquistadas pelas oposições (39). Não raro, essas oposições traziam em seu discurso versões do anticomunismo, como foi o caso do MSU no Rio de Janeiro, que além de ter vencido rapidamente as eleições para diversos centros e diretórios acadêmicos na PUC-RJ, foi ativa na campanha que derrotou as esquerdas na UME-RJ, em 1962 (40). Nesse sentido, podemos considerar que o discurso e as formas de organização anticomunistas nos meios estudantis seguiram uma tendência similar ao anticomunismo mais geral que se desenvolveu no Brasil. Segundo Sá Motta (41), o anticomunismo comportava em seu interior formas diferenciadas de organização, assim como formas diferentes de conceber o comunismo e combatê-lo. Em relação aos meios universitários, a FJD foi apenas uma dessas organizações e defendeu apenas uma das muitas versões contrárias às práticas políticas da UNE.
Durante praticamente todas as aparições na imprensa, a FJD manteve a mesma motivação, o anticomunismo. Desde 1956, quando denunciou o perigo que representava a chegada dos universitários da UIE ao Brasil, até 1980, quando denunciou que o XXXII Congresso da UNE era “uma monumental reunião de agitadores” (42), com a participação de terroristas, representantes do Imperialismo Soviético e de Havana. Em suma, a estratégia era qualificar os setores da esquerda estudantil como agitadores, sempre estabelecendo alguma ligação alarmante entre a agitação social, comunismo e ligações internacionais. Dentro desse propósito geral, a FJD articulou o seu discurso aos contextos políticos pelos quais o Brasil passou, e ao mesmo tempo, às disputas travadas no movimento universitário.
No tocante a forma como essa organização concebeu o movimento universitário como um todo, e em especial a UNE, é possível afirmar que a FJD não se opunha diretamente as entidades estudantis, mas sim aos movimentos de esquerda que tinham maioria em suas direções. Para essa interpretação, contribui a militância da própria FJD, que disputava as eleições estudantis das mesmas entidades que ela considerava como centros de agitação. Também identificou-se que conforme as oposições foram vencendo as eleições de algumas entidades estaduais, os centros e diretórios acadêmicos que anteriormente haviam rompido com a subversão e o esquerdismo dessas entidades, foram gradativamente se religando à elas, como aconteceu na UME, do Rio de Janeiro.
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Este artigo foi apresentado no V Seminário de Pesquisa do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina realizado entre os dias 18 e 29 de outubro de 2011, no Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH/UEL)
Notas
* Mestrando pelo PPGH da UNESP/Assis. Bolsista CAPES.
(1) RIBEIRO, Darcy. (1994) “Nossa herança política”. In: FREIXO, Adriano de; MUNTEAL, Oswaldo; VENTAPANE, Jaqueline (Org.). O Brasil de João Goulart: um projeto de nação. Rio de Janeiro: PUC-Rio/Contraponto, 2006, pp. 207-208.
(2) Programa de governo para educação e cultura (1961), Educação e Ciências Sociais, Ano VI, vol. 9, nº. 17, Maio – Agosto, p. 14.
(3) FERNANDES, Florestan (1960). “Dados Sobre a situação do ensino”. Revista Brasiliense. nº. 30, Julho – Agosto, p. 112.
(4) Não consideramos nesse trabalho, em detrimento do recorte temporal, o I Seminário de Reforma do Ensino (1957) e o I Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior (1960).
(5) Declaração da Bahia. In: FÁVERO, Maria de Lourdes de A.. A UNE em tempos de autoritarismo. Rio de Janeiro: Ed. URFJ, 1994, pp. 3 – 9.
(6) Idem, p. 17.
(7) CORBISIER, Roland. Reforma ou revolução? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 129.
(8) Declaração da Bahia, Idem, p. 27.
(9) CORBISIER, p. 129.
(10) A UNE-Volante. In: CASTILHO, A. (Org.) Apesar de tudo UNE REVISTA: elementos para uma história da UNE. São Paulo: Edições Guaraná e DCE-Livre USP “Alexandre Vanuchi Leme”, s.d., s/p; Folha de São Paulo, primeiro caderno, 12/03/1962, p. 6.
(11) As Uniões Estaduais dos Estudantes, Centros Acadêmicos e Diretórios Acadêmicos, idem, s/d, s/p.
(12) SANFELICE, José Luis. A UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez, p. 37.
(13) MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917 – 1964). São Paulo: Perspectiva/ FAPESP, 2002, p. 231.
(14) DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 6ª. Ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2006, p. 174-175.
(15) Idem, p. 300 – 302.
(16) Última Hora, 01/06/1962, p. 2.
(17) Além da reivindicação estudantil pela federalização, a Universidade Mackenzie foi tema de diversos debates no Conselho Federal de Educação (CFE), que chegou a indicar uma comissão para acompanhar o caso. O relatório da comissão apontou divergências entre a Universidade e a Mantenedora na adequação de seus estatutos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e um mediador foi indicado. Em 16/11/1962, o Estatuto da Universidade foi aprovado pelo CFE como resultado feliz da mediação levada a efeito pelo nosso eminente colega, Professor Almeida Junior, em nome deste Conselho. O estatuto previa a participação de apenas um representante discente em seus órgãos. Documenta (1962), MEC, nº. 1-7)
(18) Revista Visão, 08/06/1962, vol. 20, nº. 23, p. 20.
(19) O Estado de São Paulo, 07/06/1960, p. 7.
(20) Encontro Universitário, Jornal do Brasil, 18/05/1962 – 25/06/1962, caderno B, p.14.
(21) O Estado de São Paulo, 03/06/1960, p. 17.
(22) Idem, 22/06/1962, p. 5.
(23) SEGANFREDO, Sonia. UNE: instrumento de subversão. Rio de Janeiro: GRD, 1963; Memórias Reveladas. A influência comunista no próximo congresso dos estudantes da América Latina. Cod. Id. BR,NA,RIO X9.0ESI, 3/7, 1956, p. 1.
(24) Folha da Manhã, 08/05/1958, p. 2.
(25) Folha de São Paulo, 09/01/1962, p. 01, 04 e 17; 10/01/1962, p. 01; 11/01/1962, p. 01.
(26) Idem, 01/06/1962, p. 2.
(27) O Estado de São Paulo, 17/06/1962, p. 10.
(28) Manifesto da FJD contra a permanência da UNE no Rio de Janeiro, Idem, 27/06/1962, p.6; 28/06/1962, p. 6.
(29) Idem.
(30) Idem, 06/07/1962, p.5.
(31) O XXV Congresso da UNE aconteceu no Hotel Quitandinha, em Petrópolis/RJ, entre os dias 17 e 21 de julho. A Frente Única, que reunia os setores da esquerda, saiu vitoriosa com a Eleição de Vinicius Caldeira Brandt, com 711 votos e 106 abstenções.
(32) O Estado de São Paulo, 20/07/1962, p. 10.
(33) Idem, 13/07/1962, p. 06.
(34) Idem, 20/07/1962, p. 07; 19/07/1962, p. 07.
(35) Idem, 21/07/1962, p. 5.
(36) Idem, 01/08/1962, p. 6.
(37) Encontro Universitário, Jornal do Brasil, 02/11/1962, p. 14.
(38) REIS FILHO, Daniel Aarão. In: GARCIA, Marco Aurélio; VIEIRA, Maria Alice (Org). Rebeldes e Contestadores: Brasil, França e Alemanha. São Paulo: Perseu Abramo, 1999, p. 65.
(39) MARTINS FILHO, João Roberto. Movimento estudantil e ditadura militar: 1964 – 1968. Campinas, SP: Papirus, 1987.
(40) A divulgação do manifesto do MSU recebeu ênfase da imprensa no que se referia a condenação do movimento ao comunismo, que além de encampar os defeitos do socialismo ainda é dotado de uma filosofia atéia e materialista. Folha de São Paulo, 08/05/1963, primeiro caderno, p. 15.
(41) MOTTA, 2002, p. 19.
(42) Advertência da FJD. Folha de São Paulo, 14/10/1980, p. 12.
Fontes
Folha de São Paulo, 1961 – 1963
O Estado de São Paulo, 1961, 1963
Revista Visão, São Paulo, maio – agosto, 1962
Última Hora, RJ, junho-julho, 1962
A influência comunista no próximo congresso dos estudantes da América Latina. Memórias Reveladas. Cod. Id. BR,NA,RIO X9.0ESI, 3/7, 1956, p. 1-3.
Declaração da Bahia, 1961.
Declaração do Paraná, 1962.
FERNANDES, Florestan (1960). “Dados Sobre a situação do ensino”. Revista Brasiliense. nº. 30, Julho – Agosto, p. 112-136.
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Bibliografia
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