Os importantes livros de Elio Gaspari sobre a ditadura militar serão relançados. O jornalista decidiu divulgar, ao mesmo tempo, documentos que utilizou para escrevê-los.

Com algum impacto na mídia, decidiu tornar pública a gravação de uma conversa de outubro de 1963 do presidente John Kennedy com o embaixador Lincoln Gordon. Lá pelas tantas, o presidente pergunta se uma intervenção militar norte-americana seria aconselhável, isto é, se o governo dos Estados Unidos da América deveria depor o então presidente brasileiro, João Goulart. A gravação prova algo que já sabíamos: Kennedy autorizou o apoio político e militar aos conspiradores brasileiros que dariam o golpe de 1964 – que, este ano, completará 50 anos.

Muitos jornalistas me ligaram perguntando o que eu achava. Expliquei que já conhecíamos a decisão de Kennedy, inclusive esta gravação, mas ponderei que a revelação paulatina de novos documentos sempre é importante. Como é sabido, os documentos sigilosos, em países como os EUA e o Brasil, vão sendo revelados aos poucos, conforme o passar do tempo. Assim, é certo que, ao longo dos próximos anos, acumularemos, cada vez mais, novas informações sobre o golpe de 1964, seja por meio da documentação brasileira, seja em função dos papéis do Departamento de Estado ou outras agências norte-americanas.

Eu também disse outra coisa aos jornalistas, mas nenhum jornal a publicou. O mais importante, para mim, não é a gravação de Kennedy, mas a decisão de Gaspari de divulgar seus documentos. Infelizmente, Elio Gaspari resolveu divulgar uma seleção do que possui. Não sabemos se tudo será aberto.

Gaspari recebeu sua documentação porque granjeou a confiança de próceres do regime militar, os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, que foram secretariados por Heitor Ferreira de Aquino. Ele recebeu de Golbery, em 1985, 25 caixas com aproximadamente 5 mil documentos. Eram papéis que Heitor Ferreira acumulara. O mesmo Heitor organizaria o arquivo de Ernesto Geisel, cerca de 4 mil papéis. Gaspari também contou com quase 20 entrevistas com Geisel e inúmeras com Golbery e com seu amigo Heitor Ferreira. Pôde também consultar o diário de Aquino, que registrou suas impressões por quase 30 anos, compondo “o mais minucioso e surpreendente retrato do poder já feito em toda a história do Brasil”. Finalmente, contou ainda com cerca de 300 horas de gravação das conversas de Geisel (audiências e diálogos informais desde a formação do governo nos últimos meses de 1973 até a posse em março de 1974).

O historiador tem a obrigação de comprovar o que diz indicando suas fontes. O jornalista tem o dever de preservar as suas. A primeira imposição é de natureza científica, a segunda, ética. Há, entretanto, alguns complicadores: quando um historiador tem acesso a documentos que invadam a privacidade das pessoas, deve preservá-las da exposição pública, sobretudo se ainda vivas e se os dados forem irrelevantes para a pesquisa. Essa é uma questão ética pouco discutida pelos historiadores. Por outro lado, se um jornalista tem acesso a documentos que digam respeito a violações de direitos humanos, por meio de um acordo com os responsáveis por tais delitos, certamente também enfrentará um dilema ético difícil de resolver.

Não sei como solucionar tais questões. Instituições arquivísticas privadas costumam receber acervos com cláusulas de tempo. Por exemplo, um político pode doar seus papéis à Fundação Getúlio Vargas e pedir que eles só sejam divulgados 10 anos após sua morte. Por outro lado, se eu fosse amigo do ex-presidente Collor e ele me desse seus documentos pedindo que eu só os divulgasse parcialmente, após certo tempo, eu não os aceitaria. Felizmente, não sou amigo de Collor.

(*) Texto publicado no blog “Brasil Recente”