Capítulos da história da Ação Popular (2ª PARTE)
A AP e o golpe militar
O golpe militar também atingiu a AP que se desorganizou momentaneamente. Vários de seus dirigentes tiveram de deixar o país. José Serra, presidente da UNE, se refugiou na embaixada da Bolívia e seguiu para o Chile. Paulo Wrigth e o padre Alípio de Freitas entraram na embaixada do México, depois de passarem por este país, foram para Cuba onde ficaram até 1965.
Vinícius Caldeira Brandt, ex-presidente da UNE, estava em Paris e não pôde regressar. Então, ao lado de Sérgio Bezerra, Maria do Carmo e Carlos Walter Aumond, formou uma base da AP na Europa. Este grupo entrou em contato com o marxista francês Louis Althusser. Nos anos seguintes enviaram ao Brasil textos desse autor que foram traduzidos por Duarte Pereira e publicados sob o título Polêmica Althusser: Garaudy – Marxismo segundo Althusser. Talvez esses tenham sido os primeiros trabalhos de Althusser lançados entre nós. Nesta mesma linha, a AP divulgaria os textos de introdução ao marxismo da chilena Marta Harnecker, então discípula de Althusser.
Betinho e Aldo Arantes exilaram-se no Uruguai onde participaram do comando revolucionário organizado por Brizola, que pretendia realizar um levante armado baseado na Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Neste seleto grupo estavam, além dos dois representantes da AP, Neiva Moreira, Paulo Schilling e Max Costa. Existia outro comando composto por militares nacionalistas. No Uruguai também se exilou Jair Ferreira de Sá, que alguns anos mais tarde teria um importante papel no interior da AP. Outros membros importantes da organização que permaneceram no Brasil, gradualmente, foram entrando na clandestinidade.
Antes que o núcleo dirigente da AP deixasse o país e se refugiasse no Uruguai, foi formada uma coordenação nacional provisória a partir da coordenação regional de São Paulo da qual participaram Walter Bareli, Sérgio Vassimon, Sérgio Mota, Chico Whitaker e Egydio. Whitaker, escolhido para ser o coordenador-geral, foi preso logo em seguida.
O que levou os olhos da repressão se voltarem em direção à AP foi o seu envolvimento na fuga de cabo Anselmo da embaixada do México, onde estava exilado, ocorrida no dia 22 de abril. Os planos, combinados por telefone, foram gravados pela polícia. E no dia seguinte foi preso num apartamento de militantes da AP. Em seguida caiu Cosme Alves Neto, do secretariado da AP, que havia organizado a operação de resgate de Anselmo.
As divergências surgidas quanto à tática de resistência a ser adotada contra a ditadura levaram que, depois de 11 meses, Aldo e Betinho se separassem do grupo de Brizola e voltassem ao país. Antes de partir o ex-governador gaúcho forneceu uma quantia de 5 mil dólares para que os dois preparassem um esquema de luta armada no Brasil, mas eles empregaram o dinheiro no trabalho de reorganização da AP. Quando comunicaram a decisão a Brizola, as relações entre eles ficaram um pouco abaladas.
Em 1965, finalmente, a direção nacional voltou a se reunir em território brasileiro e indicou Aldo Arantes para a coordenação-geral no lugar de Betinho, que tinha problemas de saúde, e em dezembro lançou o jornal Revolução. Os outros dirigentes eram Sérgio Motta, Paulo Wright, Carlos Aumond e Duarte Pereira.
O primeiro objetivo estratégico estabelecido pela Resolução de 1965 foi “a criação de um dispositivo armado”. O caráter da revolução brasileira era definido como “socialista de libertação nacional”, uma formulação original. Para as correntes comunistas ortodoxas as tarefas ligadas à libertação nacional estavam vinculadas ainda à primeira etapa da revolução, democrático-burguesa. Para as correntes esquerdistas, pelo contrário, não se justificaria falar em libertação nacional para um país plenamente capitalista, como o Brasil. Aqui a revolução e as tarefas a serem realizadas eram socialistas. Por isso, não foram poucos os que criticaram a formulação estratégica dos apistas. A própria AP a partir de 1966 retificaria essa posição ao aderir ao marxismo-leninismo-maoísmo.
A Ação Popular passaria a se organizar através de comandos – substituindo o antigo sistema de coordenações. A reunião de 1965 aprovou uma resolução política que colocava a AP no campo das organizações que defendiam a luta armada com principal método para se derrubar a ditadura. A referência naquele momento era o movimento guerrilheiro desenvolvido em Cuba contra o ditador Fulgêncio Batista. Muitos militantes que eram contra a luta armada – e defendiam a concentração na luta institucional ou a dissolução da organização num movimento mais amplo – se afastaram.
A influência do foquismo, que vinha através de Cuba, já se fazia sentir no interior da AP nos primeiros momentos pós-golpe. Betinho conta um episódio desta fase: “Conseguimos impor nossa posição, retomamos a direção e iniciamos a fase debrayrista. Não nos livramos, porém, de uma contradição: a gente defendia a luta armada, mas continuávamos uma luta política. Estávamos assim na propaganda do foco, não na execução do foco (…). A Ação Popular, na verdade, nunca colocou em funcionamento a sua pregação armada. Fez algumas ações que não poderiam ser classificadas de luta armada”. “A primeira delas, em 66, seria cômica, se não fosse um desastre: despreparados, militantes da organização decidem assaltar um banco no interior da Bahia com o objetivo de arrecadar fundos para financiar a guerrilha. ‘Uma pessoa ficou muito nervosa na hora de anunciar o assalto e gritou da porta: Todos para o assalto que isso é um banheiro’! (…) Ele falou com aquela voz peremptória procurando disfarçar o nervosismo na firmeza da ordem (…). Deu-se um descontrole generalizado, alguém atirou e houve um morto ou ferido, não me lembro bem. Sei que essa ação nunca foi caracterizada como política. O pessoal fugiu, e todo mundo achou que se tratava de ladrões comuns, mal-sucedidos”.
Logo em seguida, em 25 de julho, militantes pertencentes à organização, sem autorização da direção, realizaram um atentado contra o general Costa e Silva no aeroporto de Guararapes em Recife, Pernambuco. Contudo, o futuro presidente-ditador mudou de planos (e de rota) e a bomba matou um almirante, um jornalista e feriu 14 pessoas. O efeito na opinião pública foi desastroso. E o comando da AP, chocado, puniu os envolvidos e se afastou definitivamente das tendências terroristas. Era preciso encontrar novos caminhos.
A princípio não houve rompimento político com os cubanos, apenas com alguns de seus métodos. Tanto é que a AP teve uma representação oficial na Conferência da Trilateral em janeiro de 1966 e na I Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), realizada em agosto de 1967 na ilha de Cuba. Nesta última estavam Betinho e Paulo Wright. Para este encontro internacional foram convidados também o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Política Operária (Polop) – estas duas últimas organizações não enviaram nenhum representante. Carlos Marighella, dirigente nacional do PCB, presente no evento, foi desautorizado a falar em nome do seu partido e pediu afastamento da direção. Em breve organizaria a Ação Libertadora Nacional (ALN), com fortíssima influência das ideias cubanas.
Do ponto de vista do Brasil, o incidente mais sério foi a desconvocação do PCdoB, por suas posições favoráveis aos comunistas chineses, que estavam em atrito com o governo cubano. Os delegados da AP, que faziam parte do Comitê Brasileiro de preparação da OLAS, protestaram contra tal discriminação, pois viram nela as mãos de Moscou. Contudo, eles aprovaram a posição da conferência favorável à luta armada que, neste caso, ia contra os interesses do chamado revisionismo soviético. “O desenvolvimento da luta ideológica no decorrer da Conferência permitiu isolar e desmascarar as posições pacifistas e oportunistas.
Neste sentido, a Conferência constituiu um marco importante na luta que vêm empreendendo os revolucionários latino-americanos contra as diversas manifestações de oportunismo e reformismo. (…) A OLAS comprovou ser um instrumento importante da luta ideológica e para a formação de uma frente anti-imperialista na América Latina”. Logo a AP mudaria sua opinião sobre essa conferência, passando a ser mais crítica em relação a ela.
AP teve uma representação oficial na Conferência Trilateral, em Cuba
Betinho ficaria como representante na OLAS por 11 meses, até 1968, quando voltou ao Brasil. Ainda em Havana ele se deixaria influenciar pelos chineses, aos quais visitava regularmente. Inspirado por eles teria escrito um texto sobre o social-imperialismo soviético, que nunca foi publicado. Neste momento as relações com a direção cubana começavam a se romper devido à adesão da AP ao maoísmo e sua posição crítica ao foquismo e ao fidelismo.
A AP foi a força política que mais rapidamente se reorganizou no movimento estudantil – até porque o PCB seu principal concorrente entrou numa grave crise interna, que afetou principalmente o seu setor juvenil. Seria justamente ali que brotariam as primeiras dissidências pecebistas (a DIs), como a de São Paulo e a da Guanabara. Já na primeira diretoria da UNE pós-golpe, a AP teria vários diretores, como Altino Dantas. Na gestão seguinte, eleita em 1966, passaria a ser indiscutivelmente a força política hegemônica, elegendo José Luiz Guedes para a presidência e fazendo maioria na diretoria.
No embalo, ainda em 1966 a AP criou o Movimento Contra a Ditadura (MCD), que tentaria se constituir numa frente política contra o regime militar, mas que não conseguiu incorporar outros setores e acabou sendo desfeito algum tempo depois. Ele, no entanto, impulsionaria a campanha pelo voto nulo na eleição daquele mesmo ano.
Aderindo ao marxismo-leninismo-maoísmo
No segundo semestre de 1966, Aldo Arantes esteve na China. Ali fez várias reuniões com os dirigentes comunistas chineses e voltou com inúmeras anotações organizadas por temas, como: movimento camponês, movimento operário, guerra popular, partido de vanguarda e frente única. Elas ficaram conhecidas como os “textos amarelos”, devido à cor da capa em que foram encadernadas. Distribuídos ao conjunto dos militantes, eles marcaram o início do processo de adesão ao marxismo de influência chinesa, sintetizado no pensamento de Mao Tse-tung. Na verdade, o primeiro dirigente da AP a visitar a China foi Vinícius Caldeira Brandt, que estava exilado na Europa e foi num grupo de brasileiros no qual se encontravam brizolistas.
Em 1967 uma reunião da direção da AP aprovou a Resolução sobre o debate teórico e ideológico, o DTI. Era uma convocação para que os militantes estudassem de maneira organizada o marxismo. Com esse objetivo o Comando Nacional editou uma série de Textos Para Debate, trazendo trechos de obras de Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao e de Louis Althusser. Dizia o documento: “Pedir de menos seria negar a necessidade de centralizar o debate no estudo do marxismo, e pretender estudar, ao mesmo tempo, o pensamento de Teilhard Chardin, Emmanuel Mounier, Bertrand Russel (…). Lembremos que o objetivo é estudar os princípios gerais da teoria revolucionária para (…) elaborar a teoria da revolução brasileira (…). Na etapa atual, para que se possa chegar a resultados coerentes e inclusive preparar etapas futuras, é necessário considerar o estudo crítico do marxismo como eixo e princípio ordenador da discussão”.
Neste mesmo período, Jair Ferreira de Sá, cujo nome de guerra era Dorival, voltava de um curso na China. Segundo Renato Rabelo, ele foi o primeiro a chegar de uma turma de cinco que deveria participar daquela atividade de formação política e militar, mas o pessoal se atrasou muito e Jair acabou fazendo o curso antes dos demais. A partir da experiência chinesa, ele elaborou o documento intitulado Esquema dos seis pontos, que teria um forte impacto na direção da AP. O que diziam os seis pontos: “1º definiam o pensamento de Mao Tse-tung como a etapa atual de desenvolvimento do marxismo; 2º caracterizavam a sociedade brasileira como semifeudal e semicolonial; 3º estabeleciam o caráter nacional e democrático da revolução brasileira; 4º optavam pela guerra popular como caminho revolucionário; 5º colocavam a tarefa de reconstruir o partido revolucionário marxista-leninista no Brasil; 6º apontavam a integração na produção como meio de transformação ideológica dos militantes” (RIDENTI, p.271). Ele também colocava a URSS e Cuba no mesmo campo revisionista e afirmava ser a China o “centro da revolução mundial” e o PC Chinês a “vanguarda do movimento comunista internacional e dos movimentos de libertação nacional”.
A partir de 1967, Jair Ferreira de Sá, o Dorival, conheceu um período de rápida ascensão no interior da organização, assumindo o lugar de Aldo Arantes como principal dirigente. Os defensores dos seis pontos se organizaram na chamada Corrente 1. A volta da primeira turma que fez o curso na China reforçou ainda mais os laços com o maoísmo e a autoridade do camarada Dorival. Deste grupo seleto participavam Renato Rabelo, Ronald Freitas, José Novaes e Carlos Walter Aumond.
Os contrários a esse programa formaram a Corrente 2, que lançou o documento Duas posições. Estes não concordavam que o pensamento de Mao representasse uma terceira etapa do marxismo e com a caracterização do Brasil como uma sociedade semifeudal e semicolonial. Defendiam que o Brasil já era capitalista e, por isso, a revolução seria imediatamente socialista. A visão da Corrente 1 seria dogmática, pois pretenderia transplantar o esquema da Revolução Chinesa para uma realidade completamente diversa.
Sustentava que o país nunca tivera um partido proletário, por isso ele deveria ser construído e não reconstruído, como pregava a Corrente 2. Existia muita aproximação desse segundo grupo com algumas ideias cubanas, inclusive o foquismo.
Os principais expoentes da Corrente 2 eram Vinícius Caldeira Brandt (codinome Rolando) e o padre Alípio de Freitas. Nela também estava Altino Dantas, Sérgio Bezerra, Maria do Carmo, Rita Sipahi, entre outros.
Betinho saiu de Cuba um pouco antes da I Reunião Ampliada da Direção Nacional (RADN), na qual deveria ser resolvida a polêmica entre as duas correntes. No caminho de casa, ainda no Chile, ele foi abordado por elementos da Corrente 1 que o atualizaram sobre a luta interna. Ao chegar ao Brasil, já estava plenamente convencido das teses chinesas. Na reunião, realizada em setembro de 1968, resolveu-se o impasse expulsando os principais representantes da Corrente 2. Eles foram denominados de “grupo oportunista e provocador de Rolando”. No ano seguinte, formariam o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), que aderiria à guerrilha urbana e sofreria duras baixas, até se dissolver no início da década de 1970.
No Rio Grande do Sul foi afastado – na verdade se afastou – o “grupo direitista, provocador e liquidacionista de Júlio”. A maioria era composta de operários que, segundo a direção da AP, haviam confundido origem de classe com posição de classe. Nesse caso, os dissidentes capitaneados por Raul Carrion e José Ouriques de Freitas ingressaram no PCdoB. Entre 1968 e 1971, ocorreu um deslocamento de vários militantes da AP para as fileiras do PCdoB, entre eles se encontrava a dirigente estudantil paulista Helenira Resende.
Um fato curioso: quando Betinho saiu de Cuba trouxe certa quantia em dinheiro para garantir a ida de 12 militantes para fazer um curso militar na Ilha. Como, neste ínterim, eles já tinham se definido pela linha chinesa da guerra popular, resolveram devolver tudo aos dirigentes cubanos. O próprio Betinho foi encarregado de voltar à ilha e realizar a constrangedora tarefa. “Coisa que os cubanos não entenderam até hoje: chegar um sujeito lá e dizer para eles, olha, nós viramos maoístas e aqui está o seu tutu de volta. Logo eles que foram roubados de todo jeito por outros grupos que não eram nem maoístas nem nada”.
É forte a tendência na historiografia sobre a esquerda brasileira fazer uma ligação direta entre as origens católicas da AP e o maoísmo. Betinho abriu esta senda ao afirmar: “o maoísmo caiu melhor na minha estrutura de inspiração cristã. Um católico praticante fervoroso pode virar um maoísta numa questão de segundos, porque você tem Deus, que é Mao, tem o camarada que é o chefe, você tem a revolução que é inexorável (…). Tem a Bíblia vermelha, que é pequenininha e fácil de ler”, referindo-se ao Livro Vermelho com as citações do presidente Mao.
Isso pode até ser verdadeiro no entendimento da trajetória e a opção política de uma pessoa, mas não de uma organização. Sabemos, por exemplo, que parte significativa dos cristãos que aderiram ao projeto revolucionário e ao marxismo na América Latina não o fez através do maoísmo e sim pelas mãos do guevarismo.
No Brasil, o caso emblemático foi o dos freis dominicanos que se vincularam à Ação Libertadora Nacional (ANL) de Carlos Marighella e não à Ação Popular. Mesmo no interior da AP a primeira cisão foi comandada pelo padre Alípio de Freitas e Vinícius Caldeira Brandt, dois dirigentes de origem cristã que aderiram ao foquismo. A opção da AP pelo maoísmo, em detrimento do guevarismo, não estava de antemão decidida pela origem religiosa de seus membros. Ela foi o resultado de um complexo processo de luta política e ideológica.
Integração na produção e atuação nos movimentos sociais
A Corrente 2 havia criticado duramente o processo de integração na produção promovido pela direção da AP, pois ela “não era vista em função da conduta da luta de classes na eficácia política decorrente da participação direta nos locais onde se verificam a concentração de operários e camponeses (…), mas pela importância do trabalho manual para transformação ideológica dos militantes de origem pequeno-burguesa (…). A fábrica passou a ser vista não como o local onde o partido deve estar fortemente implantado e organizado para conduzir a luta de classes, mas como um santuário onde se busca a santificação, ou seja, a condição operária”. Se isso era verdade, por outro lado, a integração procurou atender a um objetivo estratégico: a construção de bases para o desencadeamento da guerra popular. Pelo menos a integração no campo não foi aleatória.
Aldo Arantes e Haroldo Lima arrolaram 23 frentes de trabalho “distribuídas por oito áreas geográficas que a AP definia como ‘regiões’: Pará, Maranhão, Nordeste, Bahia e Sergipe, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Goiás. Dentre o pessoal que se integrou nessas frentes identificamos um grupo de 120 companheiros (…). Das 120 pessoas referidas, 90 se dirigiram ao campo, integrando-se na produção agrícola, como assalariados rurais ou camponeses; trinta se dirigiram à produção fabril”.
Haroldo Lima integrou-se como assalariado rural na zona cacaueira da Bahia e Aldo Arantes no interior da Alagoas, onde foi preso. Betinho, mesmo hemofílico, iria trabalhar como operário numa indústria do ABC paulista. Ao contrário do que afirmou Betinho, isso não se tratava de uma punição. Era um método de educação ideológica pelo qual, certo ou errado, grande parte dos dirigentes e militantes da AP tivera que passar.
Trabalhadores protestam em Contagem (MG), em 1968
A integração na produção fez com que os recursos necessários para manter a estrutura da AP fossem bem menores que os de outras organizações, que precisavam de um grande número de aparelhos nas cidades. O custo dessa estrutura clandestina era muito alto, o que levava que muitos agrupamentos tivessem que se envolver em perigosas ações de expropriação – como assalto a bancos. A AP, pelo contrário, se mantinha com a colaboração voluntária de seus membros e simpatizantes. Muitos entregavam tudo o que tinham: poupanças, joias, casas etc. Os militantes integrados viviam do próprio trabalho.
A Ação Popular manteve sua influência no movimento estudantil. Todos os presidentes da UNE depois do golpe, até 1973, pertenceram a essa organização: José Luiz Guedes (1966-1967), Luiz Travassos (1967-1969), Jean Marc Von der Weid (1969-1971) e Honestino Guimarães (1971-1973) – embora essa maioria tenha sido ameaçada entre 1967 e 1968 graças à aliança entre as dissidências estudantis do PCB, que tinham muita força em São Paulo e na Guanabara. A partir de 1969, a ameaça passou a vir do seu principal aliado no movimento estudantil, o PCdoB. Este partido conheceu um rápido crescimento em estados como Ceará, Bahia, Rio de Janeiro e até São Paulo. Na União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) a hegemonia da AP foi menos questionada e ela conseguiu eleger todos os presidentes até que a repressão forçasse a suspensão das atividades da entidade. Dirigiram a UBES: Tibério Canuto (1967-1968), Marco Melo (1968-1969) e Mauro Brasil (1970-1971).
O movimento camponês foi o primeiro e o mais duramente atingido nos primeiros anos da ditadura. Mesmo em condições desfavoráveis a AP conseguiu construir certo trabalho no Vale do Pindaré, no Maranhão; na Zona da Mata em Pernambuco; e em Água Branca, no interior de Alagoas. Ela projetou algumas lideranças camponesas, como José Novaes e Manoel da Conceição.
Antes do golpe a sua influência no movimento operário-sindical era pequena. Ali predominavam amplamente os trabalhistas e pecebistas. Em seguida essas correntes foram alijadas das direções sindicais e substituídas por pelegos. Mesmo assim o PCB continuou tendo alguma presença nesta área.
O principal trunfo da AP neste campo estava em Contagem, Minas Gerais. Na eleição para o sindicato dos metalúrgicos, a chapa encabeçada por Ênio Seabra, militante da AP, saiu vencedora. Mas o presidente eleito não pôde tomar posse. Mesmo cassado, ele foi um dos principais dirigentes da greve que envolveu Belo Horizonte e Contagem em abril de 1968 – uma das primeiras grandes paralisações operárias contra o arrocho salarial ocorrida pós-golpe. Entre os ativistas deste importante movimento grevista estava Vital Nolasco, que mais tarde seria dirigente da AP e do PCdoB.
Havia também algum trabalho junto aos sapateiros do Vale do Sino no Rio Grande do Sul, onde um dos dirigentes era Raul Carrion. Entre 1968 e 1969 parte dessas lideranças operárias romperia com a AP e entraria para o PCdoB. A AP, ao lado de outras organizações de esquerda, seria responsável pela construção de inúmeras oposições sindicais, incluindo a dos metalúrgicos de São Paulo. Em primeiro de Maio de 1968 a Ação Popular lançou o jornal Libertação, que circularia até 1975.
Entre setembro e outubro de 1969 na IV reunião da Comissão Executiva Provisória – por proposta de Duarte Pereira e Haroldo Lima – fez uma autocrítica em relação à preparação da luta armada, que ficaria conhecida como a “autocrítica do IV CEP”. Nesta ocasião aprovou-se o documento Preparar ativamente a Guerra Popular. Ele criticava “o ‘direitismo na preparação da guerra popular’, a concepção espontaneísta segundo a qual o simples desenvolvimento da luta de massas levaria automaticamente à luta armada, sem ser necessária uma preparação específica a respeito” (LIMA & ARANTES, 1984:129). Passou a ser realizada uma pesquisa de áreas estratégicas para a implantação da guerrilha que ficou sob a responsabilidade de Haroldo Lima.
“A pesquisa foi feita em duas etapas. Na primeira realizou-se um levantamento preliminar com base em mapas e dados estatísticos. Partindo de 17 possíveis áreas, o grupo responsável pelo levantamento terminou selecionando 10 que deveriam ser pesquisadas em sete estados. Na pesquisa de campo diversas viagens foram feitas pelo interior do país (…). Acumularam-se valiosos elementos informativos que deram base à escolha final das áreas prioritárias, definidas pela IV CEP como as que melhor articulassem ‘condições de massa com condições militares” (LIMA & ARANTES, 1984:129-130).
Publicação da Ação Popular
Numa entrevista ao Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois, Haroldo afirmou: “Viajamos por este país inteiro e demoramos mais de um ano nisso. No final, fizemos nosso plano de ação estratégica e estabelecemos as áreas que seriam prioritárias. Introduzimos as Z1 e Z2, zonas prioritárias e zonas secundárias. A Zona 1 ficava na Chapada Diamantina, na Bahia, um local de difícil acesso naquela época. Passamos então a deslocar militantes para essas regiões e suas redondezas”. E continua: “Os critérios básicos para a escolha das áreas guerrilheiras eram: a distância dos centros urbanos e a dificuldade de acesso. Naquele momento, a influência do pensamento chinês era enorme entre nós. Por exemplo, a ideia de procurar as áreas montanhosas foi minha e fundava-se na leitura que fiz de um dos primeiros livros de Mao Tse-tung, A Luta nas Montanhas de Tchincam, pois eu acreditava que tinha de ser feito em montanhas, se não, não daria certo”.
A AP, como o PCdoB, era bastante crítica às ações armadas nas cidades. Por isso criticou o sequestro do embaixador dos Estados Unidos por um comando conjunto da ALN e do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), ocorrido em setembro de 1969. Ela acreditava que aquele ato ousado estava muito além da capacidade da esquerda e a colocaria na defensiva diante da repressão que seria desencadeada.
Coincidentemente esta seria a mesma crítica feita por Marighella quando soube daquela ação. A AP protestou também contra o fato de que na lista dos que deveriam ser libertados não estava ninguém do PCdoB, “uma força revolucionária proletária”. Mas resvalava para uma posição sectária quando condenava a inclusão na mesma lista de reformistas e revisionistas, possivelmente se referindo a Gregório Bezerra, o único nome do PCB e crítico da luta armada.
Estudantes presos em Ibiúna, durante o XX Congresso da UNE
O problema do partido do proletariado
Na I Reunião Ampliada da Direção Nacional (RADN) – realizada após o Debate Teórico e Ideológico – constatou-se que a quase totalidade dos dirigentes da Ação Popular já se considerava marxista-leninista. Naquele encontro também se aprovou a tese sobre a necessidade da reconstrução do partido proletário no Brasil – processo no qual a AP e o PCdoB teriam papéis salientes. Por isso, por iniciativa da AP, teve início uma aproximação entre as duas organizações revolucionárias. Primeiro na frente de massas, especialmente no movimento estudantil. No Congresso da UNE, realizado em Ibiúna, caminhava-se para a construção de uma chapa unitária AP-PCdoB. Isso só não se realizou devido à queda do congresso e à prisão de todos os delegados.
Esta aliança se consolidaria no processo de remontagem do congresso, concluído numa plenária nacional de estudantes realizada em abril de 1969. Na nova diretoria, presidida pelo apista Jean Marc von der Weid, estariam os comunistas Helenira Resende, Ronald Rocha, José Genoíno Neto e Aurélio Miguel. Neste mesmo ano, começavam as primeiras reuniões oficiais entre as duas direções nacionais. Do lado do PCdoB participaram Pedro Pomar e Carlos Danielli; do lado da AP, Jair Ferreira de Sá e Duarte Pacheco Pereira. Os temas eram a tática e a estratégia da revolução brasileira e a questão do partido marxista-leninista.
Segundo Haroldo Lima, o primeiro a falar foi Jair e expôs de maneira professoral a tese da terceira etapa do marxismo, que seria o pensamento de Mao Tse-tung, e sobre a necessidade da construção de um partido de tipo inteiramente novo no Brasil. Em resposta, Pomar e Danielli expuseram pacientemente a história do Partido Comunista do Brasil, especialmente as passagens da luta antirrevisionista e o processo de reorganização revolucionária, ocorrido a partir de 1962. A reunião foi cordial, mas as diferenças de opiniões ainda eram grandes.
Na II Reunião Ampliada da Direção Nacional da AP, realizada em junho de 1969, Jair Ferreira de Sá apresentou a Tese sobre a Reconstrução do Partido Operário Unificado do Brasil. Partia do princípio de que o partido comunista entre nós havia caído no revisionismo e, portanto, precisaria ser reconstruído. O PCdoB e a AP, fundados em 1962, seriam os núcleos marxista-leninistas sobre os quais se reconstruiria esse partido proletário, que naquela etapa histórica deveria ser um partido de tipo inteiramente novo (PTIN), guiado pelo marxismo-leninismo-pensamento Mao Tse-tung. A resposta para a questão sobre qual dessas organizações deveria ser o polo principal da unificação deveria ser deixada para o futuro. A prática decidiria.
Um dos fatores que colocavam os dois agrupamentos em pé de igualdade, segundo Jair Ferreira de Sá, era que eles tinham a mesma idade e, portanto, a mesma experiência. Foi, justamente, neste ponto que as coisas se embaralharam e surgiram algumas dúvidas. O PCdoB teria realmente sido fundado em 1962 ou apenas reorganizado, como insistiam Pomar e Danielli? Se ele tinha sido reorganizado, tendo por base o marxismo-leninismo e o antirrevisionismo, não teria muito sentido falar em reconstrução do partido. Assim, de antemão, estaria resolvido qual seria o polo da unificação comunista. A ampla maioria da direção se viu sem condições de deliberar a respeito do assunto e decidiu continuar estudando a questão. O próprio relator chegou a essa conclusão.
II Reunião Ampliada da Direção Nacional da AP elege Comissão Executiva Provisória (CEP) composta por Aldo Arantes, Haroldo Lima, Renato Rabelo (os três nas fotos), Duarte Pereira, Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá.
A II RADN elegeu uma Comissão Executiva Provisória (CEP) que deveria encaminhar a eleição de um Comitê Central, adequando-se assim ao formato clássico dos partidos comunistas. A antiga organização se baseava em comandos, criados ainda sob a influência cubana. Jair Ferreira de Sá (Dorival) acabou sendo eleito primeiro secretário. Na verdade, desde a sua volta da China ele já se tornara o principal dirigente da AP, em substituição a Aldo Arantes. Os demais militantes da CEP foram Duarte Pereira (Estevão), Haroldo Lima (Zé Antônio), Aldo Arantes (Dias), José Renato Rabelo (Raul) e Paulo Wright (João). O caráter da revolução foi definido como nacional e democrático.
Em 1969, após a II RADN, Paulo Wright e Jair Ferreira de Sá viajaram à China. Na volta Paulo lançou o documento Cinco pontos de luta interna. Nele se critica a tese da reconstrução do partido do proletariado e se advoga a necessidade de construção de um partido de tipo inteiramente novo. Afirma que este partido teria “uma qualidade nova, independente de que tenha existido ou não no passado no Brasil um partido proletário de tipo novo”, referindo-se ao PC do Brasil. Assim, no interior da direção da AP foi se agravando a diferenciação entre uma maioria e uma minoria. Esta última foi se concentrando na necessidade de construção de um partido de tipo inteiramente novo – guiado pelo marxismo-leninismo-maoísmo – e passou a atacar as posições do PCdoB, chamando-as de dogmáticas e direitistas, por advogarem a necessidade de uma revolução nacional e democrática e por defenderem Stálin.
Obs. A bibliografia será publicada na última parte desse ensaio.
Este ensaio foi publicado originalmente na revista Princípios, nº126 de agosto-setembro/2013
Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.