As decapitações do ISIS e a queima em vida de um prisioneiro jordaniano criou uma onda de comoção. Mundo afora, pessoas bradaram horrorizadas: barbárie! Barbárie!

Tal horror deveria chamar a atenção para nossa própria barbárie. Se o povo não se lembra ou não a conhece, temos o dever de lembrá-la, para que sua memória não se apague.

Contra o Isis, nações civilizadas estão a despejar toneladas de bombas. Mas quanto à nossa barbárie, o que fizemos? Anistiamos seus responsáveis e ainda lhes outorgamos medalhas. Assim, nossa barbárie é muito pior, pois sobrepujou todos os clamores e a própria justiça.

Este espaço nos limita a quatro histórias, entre milhares. A decapitação de prisioneiros era rotineira na guerrilha do Araguaia. Osvaldão, um dos líderes, além de decapitado, teve sua cabeça exibida na ponta de uma vara para o povo pobre que o admirava. João Lucas, da Colina, foi assassinado nas dependências do exército em MG com requintes que deixariam corados os militantes do Isis: conforme Gorender, “sua altivez e bravura acirraram o ódio dos carrascos, que lhe quebraram os braços, vazaram os olhos, arrancaram as unhas e o esfolaram vivo”. Davi Capistrano, do PCB, contrário à luta armada, começou a morrer ao entrar no país: torturado em várias dependências, foi por fim levado à “casa da morte” em Petrópolis, onde o esquartejaram, para facilitar a desova do corpo. Carlos Danielli, do PCdoB, foi torturado no Doi-Codi de São Paulo, e como os carrascos não conseguissem nada lhe arrancar, queimaram-no vivo, não com fogo, mas com ácido, fato presenciado por dois militantes. Com Frei Tito, aconteceu algo ainda mais sinistro: conseguiram matá-lo em vida. De tanta pancada, choque elétrico e “pau-de-arara”, entre outros suplícios, teve sua personalidade desestruturada e foi “possuído” pelo seu carrasco, o delegado Fleuri. Morto em espírito, autoflagelou-se mais tarde, num dos episódios mais emblemáticos da história da repressão militar no Brasil.

Decapitar, queimar vivo, esquartejar e outras iniquidades eram rotina nas dependências militares do país. Quando se exigiu, como imperativo da civilização, que os responsáveis fossem responsabilizados, o STF declarou-os inimputáveis por terem sido anistiados, mesmo sabendo que os crimes de lesa-humanidade não são passíveis de anistia. O ex-ministro Eros Grau, relator da ADPC 153, fez vergonhoso malabarismo tentando provar que as anistias de nossa história “foram todas recíprocas” convencendo a corte da reciprocidade da atual lei. Quanta falta faz um Ruy Barbosa!

Mas o novo procurador geral da república emitiu parecer pela revisão: o assunto voltará à pauta no STF que, renovado, terá nova chance de fazer justiça. No dia 17 de março, no Forte do Barbalho, antigo centro de torturas transformado em espaço cultural, vamos comemorar os 30 anos da redemocratização. A democracia só será plena quando superarmos os traumas de nossa barbárie. É com tal esperança e proposta que lá estaremos.

Fonte: Jornal A Tarde