Em depoimento inédito à Justiça Federal, em Brasília, o coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, confessou ter matado a tiros dois militantes do PCdoB desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, admitiu a participação em outras duas mortes e assumiu que eram seus e são fiéis os documentos que confirmam a execução a sangue frio de 41 militantes do PCdoB feitos prisioneiros.

Os documentos revelam que, ao contrário da versão militar sobre mortes em cofronto, a ação deflagrada pelas Forças Armadas entre 1973 e 1974 foi uma operação de extermínio planejada para eliminar 68 guerrilheiros até hoje desaparecidos.

Antônio de Castro, o RaulDivulgação/Secretaria de Direitos Humanos

O surpreendente relato de Curió, feito num processo que corre sob segredo de Justiça, ao qual o jornal Fato Online teve acesso, joga luzes sobre o mais forte episódio dos Anos de Chumbo e passou a ser considerado pela Justiça Federal como um roteiro para se chegar aos restos mortais de militantes da esquerda armada que tombaram no Araguaia. Ele assume que matou com um tiro no peito o estudante cearense Antônio Teodoro de Castro, conhecido por Raul, e que também partiram de sua arma as balas que eliminaram o economista gaúcho Cilon Cunha Brum, o Simão.

“Eles tentaram fugir. Eu era combatente e atirei”, disse, ao tentar justificar as mortes de Raul e Simão. Seu relato está gravado em vídeo e áudio. Ouvido como testemunha, Curió deve ser transformado em réu no processo. Admite ainda que outros dois guerrilheiros desaparecidos, o estudante cearense Antônio Custódio da Silva, o Lauro, e um camponês conhecido por Pedro Carretel, morador que aderiu ao movimento rebelde, foram mortos na mesma operação sob seu comando, em janeiro de 1974.

Paradeiro

Mortos num sítio conhecido pelo nome do proprietário, o Manézinho das Duas, às margens da BR-222, hoje município de Brejo Grande (PA), os guerrilheiros teriam sido enterrados depois na Fazenda Matrinxã, distante do local cerca de 50 quilômetros. O coronel-aviador aposentado Pedro Cabral disse, na mesma audiência, que Curió matava e depois, em viagens de helicóptero, levava para a mata e incinerava os corpos, para não deixar vestígios.

Frente a frente com o acusador, Curió negou e afirmou que “não houve a operação limpeza” detalhada por Cabral. A juíza Solange Salgado, responsável pelo processo, pediu ao governo registros oficiais da época para esclarecer quem fala a verdade.

“Quando ele (Curió) fala em fuga, está mentindo. É como se meu irmão tentasse fugir indo ao encontro dele. Quem foge leva tiro nas costas. Foi execução”, diz a professora Maria Eliana de Castro Pinheiro, que desde o fim da ditadura militar busca informações que possam levar ao paradeiro de Raul. Ela assistiu ao depoimento em que Curió confessa e afirma que, ao contrário de outras audiências, dessa vez decidiu falar a verdade.

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Entrevista com Maria de Castro Pinheiro sobre o depoimento de Curió
Vasconcelo Quadros/Fato Online

“Tudo verdadeiro”

Aos 77 anos, enfrentando um câncer, debilitado e desconfortável por carregar sondas presas ao corpo, Curió chegou à audiência de cadeira de rodas. Foi apanhado em casa por determinação da juíza, que emitiu uma ordem de condução coercitiva. Só assim acabou aceitando, sem resistências, seguir escoltado pela Polícia Federal, quase uma desonra para um militar.

No início, tentou desconversar, mas as 12 horas da audiência minaram a resistência e o fizeram capitular. Diante de uma pergunta do advogado Cezar Brito, ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), defensor dos familiares de Raul, acabou confirmando que seu relato ao jornalista Leonêncio Nossa, publicado no livro “Mata!” é real, e que são autênticos os documentos por ele fornecidos à obra.

“Tudo que está lá é verdadeiro”, disse Curió. Baseado nos documentos que Curió guardou por quatro décadas em seu baú, o livro relata os horrores de um massacre executado por um grupo de oficiais linha dura, com autorização e pleno conhecimento de dois presidentes da República, os generais Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, e toda a cadeia de comando das Forças Armadas. A ordem era não deixar que nenhum guerrilheiro saísse vivo da região. E assim, conforme Curió, ela foi cumprida.


A maioria sabia que estava sendo conduzida para a morte Divulgação

Dos 68 mortos, Curió anotou em seu diário e relatórios, a data de execução de 40 dos 41 prisioneiros executados sem chance de defesa. Todos eles foram antes recolhidos às bases militares para interrogatório e depois levados de helicóptero e fuzilados separadamente no meio da mata em “missões” , locais e datas diferentes. A maioria deles tinha os pulsos amarrados e, pelo que conta o militar, sabia que estava sendo conduzida para a morte.

No episódio em que foram mortos Raul, Simão, Lauro e Pedro Carretel, o próprio Curió contou ao jornalista que, meia hora antes de chegar de helicóptero com outros militares ao local da execução, havia recebido a missão de dar fim ao grupo. O sítio onde houve a execução era de um agricultor conhecido como Mané das Duas, próximo à antiga estrada PA-070, hoje BR-222, num lugarejo que atualmente é a sede do município de Brejo Grande

Ele diz que mandou os quatro sentarem e inventou uma versão fantasiosa para justificar a fuzilaria: disse que o barulho de outra patrulha na mata fez com que os guerrilheiros se levantassem e tentassem fugir. Afirma que nenhum guerrilheiro gritou porque não percebeu a saraivada de tiros, disparados por ele e outros três militares sob seu comando.
 

Prova


Novas expedições m busca de corpos só serão definidas quando surgirem informações precisas Divulgação

A juíza Solange Salgado decidiu que novas expedições ao Araguaia para escavar em busca de corpos só serão definidas quando aparecerem informações precisas. Ela fez questão de frisar que à Justiça o que importa agora é localizar os restos mortais e não a reconstrução ou resgate histórico da Guerrilha do Araguaia.

A magistrada determinou, numa ata a cujo teor o Fato Online teve acesso, que o livro seja juntado aos autos como prova relevante do processo e mandou expedir intimação ao jornalista Leonêncio Nossa para que ele forneça à Justiça cópias dos documentos originais que Curió afirma ter entregue a ele.

“Para o processo, o livro deixou de ser uma obra histórica para virar prova do extermínio. O Curió confirmou que a obra é um relato fiel, autorizado, mas é preciso que cópias dos documentos cheguem ao processo. Não há na decisão nada que afete a liberdade de imprensa”, explica o ex-presidente da OAB. Curió afirmou que assinou um recibo em que se compromete a abrir mão dos documentos e de qualquer ressarcimento pelos documentos e pelo relato de todos os episódios em que participou ou é testemunha ocular.

A audiência ocorreu no dia 14 de outubro e durou cerca de 12 horas. O Fato Online ouviu quatro testemunhas, que pediram para não ter os nomes citados. Em alguns momentos do depoimento, Solange Salgado ouviu o militar longe da sala de audiências, dos familiares de desaparecidos e de representantes de grupo de direitos humanos. Era a senha para anotar informações sobre possíveis paradeiros dos corpos.

Tropa de choque


Militares que fizeram a repressão à guerrilha Divulgação

Com base no depoimento de Curió e informações obtidas em outros relatos, a juíza intimou outros seis militares que estiveram na linha de frente da repressão à guerrilha, entre eles, o general Nilton Cerqueira, ex-deputado e ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro, que comandou a última e mais feroz etapa do massacre, a chamada Operação Marajoara. Foi nela que a ditadura se decidiu pelo extermínio e em que ocorreu a maioria das execuções. A Justiça sabe que o general foi informado sobre o destino dado aos mortos.

Para nova audiência, marcada para fevereiro do ano que vem, serão intimados também o general reformado Álvaro de Souza Pinheiro e quatro oficiais que estiveram na linha de frente das operações militares: Sérgio Torres, Sérgio Camargo, José Reis e Leo Frederico Cinelli. Ao lado de Curió, integravam o núcleo encarregado do massacre. Como ocorreu com Curió, todos prestarão depoimento na condição de testemunhas – uma estratégia que os obriga a falar só a verdade.