Durante o esforço mundial para evitar uma nova guerra nos anos 1930, a propaganda anti-fascista criou um esteio de publicações de estudos, análises e descrições sobre a União Soviética. Dessa empreitada, entre outros livros importantes, saiu uma vigorosa obra descritiva do processo de construção daquela sociedade do pós-revolução de outubro de 1917: “URSS-uma nova civilização” (Soviet communism – a new civilization, 1935), de Sidney e Beatrice Webb.

O casal de autores, ambos nascidos da aristocracia britânica, foi militante da esquerda trabalhista inglesa, fundadores da London School Economics, da Sociedade Fabiana e participaram ativamente da luta de ideias no seio da intelectualidade daquele país. Sidney se formou em Direito e Beatrice foi por toda vida uma autodidata. Casaram-se em 1892 e compartilharam pelo resto da vida a luta política e intelectual.

Em 1891 Beatrice publicou o livro “O movimento cooperativo na Grã-Bretanha”. Entre 1902-1903, trabalhou junto aos movimentos por moradia em Londres e publicou uma obra de 17 volumes intitulada “Da vida e do trabalho do povo de Londres”. E ainda “As mulheres e as leis fabris” (1896), “A abolição da lei dos pobres” (1918) e “Salário de homens e mulheres: devem ser iguais?” (1919), entre outros. É considerada uma pioneira no estudo das questões sociais inglesa, não só pelas suas obras, mas também pela militância política.

Sidney foi nomeado professor de administração pública em 1912, ficou no cargo por 15 anos e foi eleito membro do Parlamento de Seaham, em 1922, pelo Partido Trabalhista. Durante os anos 1920 foi Secretário de Estado para Assuntos das Colônias e se debruçou sobre a presença britânica na Palestina. Publicou quase cinco dezenas de ensaios, análises, opiniões e descrições em formato de livros e folhetos. Dos mais importantes “Um apelo para uma conta de oito horas” (1890), “Programa políticos dos trabalhadores” (1890), “O que o lavrador quer?” (1890) “Herança negligenciada de Londres” (1891), “Quando a paz vem: o caminho da reconstrução industrial” (1916), “A reforma da Câmara dos Lordes” (1917) e “O professor na política” (1918), entre outros.

Juntos ainda publicaram “História do sindicalismo” (1894) e “Democracia industrial” (1897), este traduzido por Lenin para o russo em 1900, e “A verdade sobre a Rússia soviética” (1942). Fundaram em 1913 o periódico New Stateman com apoio da Sociedade Fabiana e do dramaturgo socialista Georg Bernard Shaw.

Foram para a União Soviética em 1932 e lá passaram a observar, durante dois meses, a construção dos planos quinquenais e a estrutura de Estado, de partido e da sociedade. A obra “URSS – uma nova civilização” tem mais de 1.700 páginas e dezenas de milhares de informações sobre o erguimento daquele socialismo. Basearam-se nos materiais colhidos durante a viagem, vasta bibliografia que colheram dentro e fora da Inglaterra e documentos fornecidos pela embaixada soviética em Londres.

Mesmo com o texto finalizado o casal afirma não ser “fácil apreciar-se da magnitude da URSS” mostram que há diferenças profundas de raças, níveis de civilização e culturas, línguas que impedem num primeiro momento a compreensão completa daquele fenômeno. Pedem ao “leitor que contemple os mapas” diagramas e dados para inserir-se nesse novo universo que se edifica.

Os assuntos tratados com ajuda de imensa gama de documentos e bibliografia, em diversas línguas, têm enorme variedade que partem da Constituição soviética, promulgada como “lei fundamental” do novo Estado e vão para a sociedade soviética colocando como central o povo, o Homem. Fazem diversas comparações sobre o período trabalhado com o passado czarista usando de inúmeros dados, números, tabelas de fontes primárias que nem sempre são simpáticas ao socialismo.

A produção é vista desde a transformação das velhas para as novas formas passando pelos tipos de produtores e resultados tanto na cidade como no campo, e a planificação. Do consumo tem-se a distribuição e sua organização, a estrutura da política de consumo, as associações cooperativadas, o auto abastecimento e a ampliação do mercado interno. Do Partido Comunista é tratada sua história, sua relação com o povo, a democracia interna e seu funcionamento. Como e quem se torna um membro do Partido. Sua ramificação em setores de frentes de atuação como mulheres, juventude, trabalhadores, membros do Poder de Estado etc.

Sobre a democracia tem um capítulo onde o casal trata da ditadura do proletariado, eleições e vai a fundo na comparação com outros países no que significa de fato (tanto na prática, na história, como no léxico político) esses termos, seus usos e abusos. Além da estrutura formal o casal mostra largo conhecimento sobre os quadros bolcheviques de Estado e de Partido. Citam todo momento nomes, suas características, feitos e habilidades. Quebram, naquele momento da publicação, a ideia de que a URSS tinha por comando uma ou poucas mãos. A questão do campo com a coletivização e a mecanização da agricultura tomam centenas de páginas onde, mesmo após mais de vinte anos de revolução, ainda se tem problemas a solucionar; sempre sob a ótica do fim necessário do latifúndio.

Dos principais legados da experiência dos primeiros tempos daquela empreitada o casal trata tanto da “remodelação do Homem” quanto no seu aspecto físico como espiritual. Aqui mostram a centralidade da vida desde seus aspectos da saúde, infância, seguro social (casos de enfermidade, maternidade, desemprego, morte etc) até a necessária revolução cultural com a reorganização do lazer, do ensino politécnico, da cultura política e artística. O ensino da ciência e da filosofia como humanização do Homem e racionalização da prática social permeia o desenvolvimento dessa nova civilização. O culto à ciência, pinta o casal, é a salvação da humanidade.

Depois de intenso e profícuo trabalho político e intelectual, durante a Segunda Guerra Mundial, Beatrice faleceu em 1943, aos 85 anos e Sidney quatro anos depois, aos 88. Deixaram um legado de estudos, análises e opiniões que formaram um setor da esquerda reformista europeia.

Durante a guerra fria, tanto os historiadores agentes do imperialismo estadunidense quanto alguns sérios historiadores marxistas e não marxistas, criticaram em variados níveis “URSS uma nova civilização” do casal trabalhista. Hoje, às portas do centenário da Revolução Russa convém ler e estudar essa monumental descrição levando em conta que para além de uma propaganda soviética (e o esforço de análise possível, tal como uma história do presente!) era uma propaganda antifascista e antiguerreira.

Foi publicada no Brasil, em 1945, pelo selo Editorial Calvino Limitada (que tinha fortes laços com o PC do Brasil) com a tradução de Luis C. Afilhado e Edison G. Dias. Esta edição que o Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois traz ao grande público interessado na construção do socialismo da União Soviética nos seus primeiros vinte anos. Agradecemos a Miguel Gonçalves Trujillo Filho pelo envio dos arquivos em PDF.

Fernando Garcia é historiador e Coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois