O médico Silvério Fontes lutou nas campanhas abolicionista e republicana. Em 1885 ligou-se ao movimento operário e fundou em Santos um partido socialista marxista. Em 1922 filiou-se ao PCB.
Considerado por Astrojildo Pereira o primeiro marxista
brasileiro, foi a principal ligação entre o partido que
nascia e o movimento social originário do século XIX.

Repetidas tentativas foram feitas, entre nós, desde os primórdios da República, visando à organização da classe operária em partido político independente. A história dessas tentativas ainda está por fazer. O que há, até agora, ao que saibamos, são indicações e dados dispersos, atinentes sobretudo ao estado de São Paulo (1). E afinal a história pouco terá de contar, pois foram tentativas malogradas, e certamente malogradas por imaturidade das próprias condições em que surgiu e se formou a classe operária brasileira. Segundo estatísticas conhecidas, até 1905 era extremamente baixo o número de estabelecimentos industriais, pequenas fábricas quase sempre, existentes no país. O censo de 1920 mostra-nos que mais da metade do capital empregado na indústria brasileira, até então, datava dos anos que se seguiram a 1905. Para ponto de comparação, basta observar que em 1920 o número de operários fabris em todo país mal alcançava a cifra de 300.000, e não iria além de um milhão e meio o total de trabalhadores assalariados, inclusive transporte, comércio etc (excetuando-se apenas os assalariados agrícolas), isto numa população de 30 milhões de habitantes.

O Primeiro Congresso Socialista Brasileiro foi instalado no Rio de janeiro, a 1º de agosto de 1892, sob a presidência de Luís da França e Silva, líder operário de considerável influência no tempo. Desse primeiro congresso, entretanto, nada restou de positivo. Mas depois, e mesmo antes, surgiram aqui e ali, principalmente no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, vários círculos operários de tendência socialista ou anarquista, e ainda uma série de pequenos jornais, publicações efêmeras dedicadas à defesa dos trabalhadores, muitas delas redigidas em italiano, espanhol ou alemão – o que se explica pela predominância da imigração estrangeira. O mais antigo dos círculos declaradamente socialista foi, ao que parece, o de Santos, constituído em 1889 por Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos de Escobar. Este grupo elaborou um Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro, datado de 12 de dezembro de 1889 o qual no entanto só seria publicado na imprensa cerca de treze anos depois (2).

No Rio de Janeiro havia em 1890 o Centro das Classes Operárias, que teve duração relativamente longa, embora com intervalos de inatividade. Era uma organização de caráter local mas exercendo certas atividades de ordem geral, como foi, por exemplo, o movimento contra os artigos do novo Código Penal, elaborado já na vigência da República, artigos esses que configuravam a greve como crime, cominando apenas contra os grevistas (3).

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O Dia do Trabalho foi comemorado pela primeira vez no Brasil em 1º de maio de 1895, por inciativa dos socialistas de Santos. Segundo Linhares, em cujo livro lemos essa informação, levantou-se nessa oportunidade a ideia da organização de um partido socialista nos moldes do Partido Socialista Francês: “A ideia germinou e, nesse mesmo ano, cerca de 400 delegados operários e intelectuais fundaram, no Rio, o Partido Socialista Operário, cuja vida foi efêmera” (4). Linhares não no diz onde colheu a notícia, nem acrescenta qualquer outra informação sobre o assunto, mas não é demais supor que há grande exagero nessa quantidade de 400 delegados; de qualquer forma, ainda uma vez a tentativa falhou.

Alguns anos depois, nova tentativa, que já representou certo avanço em relação às de 1892 e de 1895; o Segundo Congresso Socialista Brasileiro, reunido em São Paulo durante os dias de 28 de maio a 1º de junho de 1902. Mais de cinquenta delegados participaram de suas sessões de debates, e entre eles notamos o nome do já então veterano Silvério Fontes. A tarefa principal realizada pelo Segundo Congresso consistiu na aprovação do estatuto e do programa do novo Partido Socialista Brasileiro. Mas também este não conseguiu firmar-se, faltando-lhe condições de sobrevivência no plano nacional, e mal chegou a completar uns dois anos de alguma e decrescente atividade, assim mesmo confinada aos limites estaduais.

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Dos círculos operários e centros socialistas que se criaram durante a primeira década republicana, em várias cidades do país, principalmente na região Centro-Sul, o que mais se destacou, por sua organização e orientação, foi, sem dúvida, o Centro Socialista de Santos, fundado em 1895 por Silvério Fontes e seus companheiros do círculo de 1889.

Além de conferências semanais, em que se fazia a “exposição do socialismo científico”, o Centro Socialista de Santos editou um quinzenário – A Questão Social, cujo primeiro número apareceu em 15 de setembro de 1895, publicando-se com alguma regularidade durante cerca de um ano. Eram seus diretores os mesmos fundadores do Centro: Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos de Escobar, e em suas páginas encontramos material de grande interesse para a história das ideias socialistas no Brasil – artigos originais e traduzidos, notas e notícias de caráter local, nacional e internacional.

No artigo de apresentação do novo órgão, dizia-se o seguinte:

“Apresenta-se hoje, na arena jornalística A Questão Social defendendo uma causa justa – a reivindicação dos direitos do proletariado. Na Europa, onde o socialismo chegou a seu período de maturação histórica, a propaganda vai fazendo grande proselitismo. Ali, como na América do Norte, não se confunde a doutrina, que já entrou em sua fase positiva, nem com a república, como ensinou Platão, nem com a utopia, como idealizou Tomás Morus. Resultado de estudos acurados duma plêiade de pensadores representando o primus inter pares Karl Marx, o socialismo encontrou, principalmente na Alemanha, sua base científica. Não queremos dizer com isso que o problema social seja um reforma exclusivamente econômica, pois dela nascerá a principal reivindicação proletária. Entretanto, forçoso é confessar que as aspirações humanas devem ser integralizadas e a questão social passa a ser complexa, isto é, tanto literária como filosófica, tanto afetiva como estética, tanto moral como política. E, seremos nós indiferentes ao estudo desses problemas, quando talentos de primeira ordem tanto se tem preocupado com a sua difícil solução. Entre nós, as condições atuais não nos permitem encarar o socialismo como medida que se imponha por uma agitação revolucionária. Desfraldando a bandeira do coletivismo reformista, propõe-se A Questão Social, sem paixões, que se considera antagônicas à ideia de progresso, a lutar tenazmente para que seja mais rápidos os efeitos do movimento evolucionista científico, que deve dar em resultado a nova organização da Sociedade. Por maiores que sejam as preocupações dos excessivamente tímidos e as apreensões dos privilegiados, a repercussão no Brasil, das ideias que se agitam no velho mundo a de ser fatal, a bem dos interesses gerais da coletividade. Oxalá, o esforço que ora fazemos, pugnando ela implantação de doutrina regeneradora encontre eco os que combatem pelo nivelamento das classes, entrando com o contingente de sua colaboração para que se levante, em breve, o majestoso edifício da solidariedade e da justiça social.” (5)

Silvério Fontes foi o provável redator da apresentação do periódico. Sua linguagem é a linguagem comum à maior parte dos publicistas socialistas do tempo. Engels havia falecido precisamente nesse ano de 1895, e socialista de direita Benoît-Malon era considerado um mestre, inclusive no Brasil. Nem devemos perder de vista as condições brasileiras existentes nos primeiros anos da República, o país mal saído de um regime econômico baseado no trabalho do braço escravo. Mas o fato de nomear Karl Marx o primus inter pares entre os pensadores socialistas era um bom indício a favor do articulista e da orientação que ele busca imprimir ao periódico e à atividade do Centro Socialista. Em outro artigo, assinado com o seu próprio nome e publicado num dos últimos números de A Questão Social, Silvério Fontes esclarece melhor a sua posição relativamente ao Marxismo como se pode ver no seguinte passo:

“Se cada socialista de levar uma pedra para o novo edifício social, o Centro de Santos sente-se satisfeito de ter iniciado entre nós, a propaganda da doutrina reformadora, estribando-se na trilogia marxista: interpretação materialista da história, determinismo econômico e luta de classe.”

A rigor, podemos ainda criticar a formulação: mas quem escrevia melhor do que isso no Brasil daquele tempo? De resto, o que mais importa aqui assinalar e o importante papel desempenhado por Silvério Fontes na divulgação das ideias socialistas de tendência marxista em nosso país. Ele foi, certamente, nesse sentido, o mais esclarecido, o mais avançado, o mais abnegado dos propugnadores do socialismo que as condições brasileira podiam ter suscitado entre nós. Foi, sem dúvida, um estudioso e entusiasta de marx. Foi o primeiro socialista brasileiro de tendência marxista.

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Silvério Fontes nasceu em 1º de fevereiro de 1858 na cidade de Aracaju, capital da então província de Sergipe. Fez os estudos primários e parte dos secundários na terra natal, vindo completa-los no Rio de Janeiro, matriculando-se na Faculdade de Medicina da capital do Império. Estudante pobre, lecionava geometria e latim para poder manter-se e pagar o curso médico. Formou-se em 1880, elaborando para o doutorado a tese A microbiologia baseada na obra de Pasteur, primeiro trabalho aparecido no Brasil sobre a matéria. Seguiu em 1881 para Santos, onde iniciou sua fecunda carreira de médico e de combatente das causas populares, e de onde não mais se retiraria (6).

Era aquele momento de crescente agitação política e social em todo Brasil. A campanha abolicionista e a propaganda republicana se desenvolviam de maneira irresistível. E a a cidade de Santos era notoriamente um dos centros abolicionistas e republicanos mais combativos do país. O Dr. Silvério Fontes, médico ligado por sua própria profissão aos sofrimentos do povo e, além disso, por sua formação científica, naturalmente inclinado à adoção das ideias democráticas mais avançadas, tornou-se desde logo ardoroso propagandista da Abolição e da República. Fundou um jornal de combate – Evolução, norteado pelos princípios positivistas de Comte, de que era adepto.

Casou na Família Francisco Martins dos Santos, chefe abolicionista de grande prestígio. Fez-se amigo de Silva Jardim e de Martim Francisco, este último parente de sua esposa. Decretada a Abolição e proclamada a República, já o Dr. Silvério Fontes, aos trinta anos de idade, era uma personalidade de relevo, gozando de grande popularidade como médico e como político.

Sua formação materialista facilitou a abordagem das questões sociais, a cujo estudo se consagrou com agudo espírito científico e ao mesmo tempo com os sentimentos de solidariedade humana, apurados pelo exercício da medicina entre as camadas mais pobres da população. Sua passagem do positivismo ao socialismo científico teria sido relativamente fácil, um passo à frente em suas concepções acerca das leis que regem o desenvolvimento da sociedade. O círculo socialista de 1889, fundado quando Silvério Fontes e seus companheiros não se haviam ainda desprendido totalmente do comtismo, foi uma primeira etapa no caminho que levaria à fundação do Centro Socialista, em 1895, já com pronunciada tendência marxista, e cuja influência, por isso mesmo, viria a ser das mais profícuas na formação e divulgação da ideologia socialista em nosso país.

Como se pode facilmente calcular, o Centro Socialista teve que lutar duramente contra as condições adversas do meio em que desenvolvia sua atividade, e acabou cedendo, como organização regular à pressão de tais condições. A Questão Social suspendeu a publicação e o Centro cerrou as portas. Mas Silvério Fontes e seus companheiros não ensarilharam as armas; continuaram a batalha sob formas diferentes, à espera de melhores dias. Mantiveram-se em contato com os grupos e centros socialistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre os quais ganhavam corpo igualmente a ideia da criação do Partido Socialista em âmbito nacional.

Em 1900, por iniciativa de socialistas italianos e brasileiros residentes em São Paulo, fundou-se o jornal Avanti!, redigido em italiano e português; o nome de Silvério Fontes figura entre os seus colaboradores. Veio depois, em 1902, o Segundo Congresso Socialista Brasileiro, organizado pelo grupo do Avanit!, com a seguinte ordem-do-dia: 1) declaração de princípios (programa máximo); 2) organização econômica: industrial  agrícola; 3) organização política; 4) órgão oficial do partido; 5) programa mínimo; 6) fixação do futuro congresso.

Entre os mais destacados participantes do Segundo Congresso encontramos Silvério Fontes, autor da parte doutrinária (7) do Manifesto que o Conselho-Geral do Partido Socialista Brasileiro publicaria pouco depois, em página inteira de O Estado de São Paulo (28 de agosto de 1902). Trata-se de importante documento, que reproduzimos a seguir, em apêndice.

Tais, em resumo, os dados biográficos eu pudemos colher, até 1902, sobre essa admirável figura que foi o Dr. Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil.

Sua vida prolongou-se todavia por muitos aos ainda, vindo ele a falecer já depois dos setenta aos de idade, em 27 de junho de 1928. Manteve-se firme em suas convicções até o fim, e a todos que o procuravam dizia: “A revolução social está em marcha no mundo inteiro e a sua vitória será para breve.”

Sabemos ainda que depois de 1922, fundado o Partido Comunista, deu-lhe o Dr. Silvério Fontes a sua adesão. Reconhecia assim, no PCB, o legítimo herdeiro e continuador dos velhos combatentes que desde os primórdio da República haviam desfraldado em terras do Brasil a bandeira do Socialismo.

(1)    A bibliografia da matéria é probríssima: Antônio dos Santos Figueiredo – A evolução do Estado no Brasil, Porto, 1926; Hermínio Linhares – Contribuição a história das lutas operárias no Brasil, Rio, 1955; Everardo Dias – “O socialismo no Brasil”, In: Revista Brasiliense, São Paulo, nº 2 a nº 13; O socialista Isidoro Diego – operário gráfico em São Paulo, tinham em preparo um livro – As lutas proletárias em São Paulo, de que se publicaram alguns capítulos em jornais paulistanos da década de 20.

(2)    Informações colhidas no livro de Jaime Franco – Martins Fontes, Santos, 1942, p. 259.

(3)    Evaristo de Moraes – O direito operário, Rio, 1905, p. 60 e seg. Escreve este autor que o governo do Marechal Deodoro, em decreto especial que atendia parcialmente à campanha do Centro das Classes Operárias, fez modificar o texto primitivo dos dois incriminados artigos do Código. Comentário de Evaristo: “De maneira que, pela lei penal vigente no Brasil, o direito de greve está plenamente reconhecido”. Isto aliás não impediu que algum tempo depois, ao declarar-se importante greve de cocheiros no Rio desabasse o terror policial sobre os grevistas, declarando o governo ao advogado dos operários, o mesmo Evaristo de Moraes, que estava disposto a liquidar a greve “fosse como fosse”.

(4)    Contribuição a história das lutas operárias no Brasil, p. 39. Com relação à comemoração do Dia do Trabalho, em Santos, Linhares não esclarece qual teria sido a natureza do ato, sendo de presumir-se que consistiu em sessão realizada em recinto fechado. Mas seu livro registra o aparecimento de duas publicações com o título O 1º de maio, em São Paulo, uma em 1892 e outra em 1895. Era também uma forma de se comemorar a data e forma que se repetiria muitas vezes, inclusive depois da fundação do PCB.

(5)    Apud Jaime Franco, op. Cit., p. 259. No livro de A. Hamon – Le Socialisme et le Congrès de Londres, Paris, 1897, consagrado ao Congresso Socialista Internacional reunido na capital inglesa em 1896, lê-se a seguinte nota informativa sobre o movimento operário e socialista brasileiro:

“No Brasil o socialismo se encontra ainda em estado embrionário. Nas províncias do sul São Paulo, Rio Grande do Sul, é onde ele cresce mais, graças à emigração italiana e alemã. Em Santos há uma União Operária, um Partido Operário, que são social-democratas. Em 1895, alguns intelectuais fundaram um Centro Socialista, grupo que é também social-democrata, mas fortemente influenciado pelas obras de Benoît-Malon, que o sr. Magalhães Lima divulgou nessas regiões. Esse grupo publica em português um jornal bimensal – A Questão Social. Os homens mais em vista da social-democracia brasileira são os srs. Silvério Fontes, Sóter Araújo, Carlos de Escobar, Espiridião de Médicis, Mariano Garcia, Cirilo Costa, Benedito Ramos et. Há grupos operários alemães (União Geral dos Trabalhadores) na província de São Paulo, eu formaram o núcleo do Partido Operário. Aí se publica, em quatro línguas, o jornal hebdomadário social-democrata O Socialista. – Os socialistas anarquistas são muito perseguidos de três anos para cá. Não publicam mais nenhum jornal, mas editam folhetos, reedições e traduções. Os italianos fornecem o mais forte contingente ao socialismo anarquista, e em sua maior parte são comunistas.”

A terminologia designativa das várias tendências do movimento operário é a que se usava no tempo, algo diversa da que usamos hoje. Mas em geral são exatas as informações de Hamon. Elas mostram sobretudo, como o Centro Socialista de Santos e A Questão Social se destacavam no movimento socialista brasileiro.

(6)    Os dados biográficos aqui resumidos são tirados do livro já citado de Jaime Franco – Martins Fontes, biografia do poeta santista e filho do Dr. Silvério Fontes.

(7)    No Manifesto publicado a 28 de agosto de 1902 não consta nenhuma indicação sobre a autoria da sua parte doutrinária, à qual seguem as resoluções aprovadas pelo Segundo Congresso. Baseamos nossa suposição na afirmativa de Jaime Franco, que citamos acima. Noutra passagem de seu livro, p. 260, escreve o biógrafo de Martins Fontes que o Dr. Silvério Fontes fora encarregado pelo Centro Socialista de Santos, em 1895, de – “elaborar o Manifesto que os socialistas dirigiram às classes laboriosas do país, no qual colaborou eficientemente outro notável socialista, Dr. Vicente de Sousa do Rio de Janeiro”. Tudo faz crer que o texto original do Manifesto data efetivamente de 1889, com segunda redação em 1895 e redação final em 1902.

Fonte: PEREIRA, Astrojildo – Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil In: Revista Estudos Sociais, nº 12, Abril de 1962, Rio de Janeiro, p. 404-410.