Mauricio Grabois e os combates na Guerrilha do Araguaia
Na manhã daquela terça-feira de chuva incessante, 25 de dezembro de 1973, um cerrado tiroteio ecoou pela mata fechada de um ponto no pé da Serra das Andorinhas, espinhaço de vegetação exuberante que margeia o rio Araguaia. Os relógios marcavam onze horas e vinte e cinco minutos. A imensidão verde, que pertence ao município de São Geraldo do Araguaia, no sul do estado do Pará, havia dias era palco de uma batalha estratégica entre forças guerrilheiras organizadas pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Guerrilha do Araguaia, e contingentes a serviço do regime instaurado no país com o golpe de Estado em 1964.
Naqueles dias que antecederam o Natal de 1973, os agentes da ditadura estavam espalhados por toda a região e vários enfrentamentos resultaram em mortos e feridos de ambos os lados. A balança da correlação de forças pendia para o lado dos militares, mas os guerrilheiros reagiam sempre que atacados e vez ou outra infligiam baixas ao inimigo. Os combatentes do movimento de resistência do PCdoB estavam se agrupando em torno da Comissão Militar para redefinir os rumos das suas ações diante dos ataques das forças governistas, que recrudesceram desde o início da terceira campanha de perseguição à Guerrilha, iniciada em 7 de outubro de 1973.
A decisão de agrupar os guerrilheiros fora tomada em novembro, quando a Comissão Militar reuniu-se com os comandantes dos três destacamentos (A, B e C) e recebeu informes sobre os últimos acontecimentos. Não havia grandes reveses, segundo se informou. Chegou-se até à conclusão de que os ataques eram fracos, o que poderia revelar mais uma vez que as forças governistas não eram páreo para os guerrilheiros. O temor da Comissão Militar era de que algum agrupamento fosse pego em situação de desproporção de forças. O mais adequado seria agrupar os destacamentos sob o seu comando para fazer operações planejadas e com mais poder de fogo. Isolados, os grupos poderiam até se defender, mas ficariam impossibilitados de realizar grandes ações de ataque, afirmou-se.
O grande problema era fazer a travessia dos pontos onde estavam os guerrilheiros até a região da Comissão Militar. As distâncias eram grandes e corria-se o risco de topar com emboscadas de agentes do governo, além da dificuldade de abastecimento para um grande número de pessoas. Precisava-se de tempo para planejar aquela tarefa de grande envergadura, organizar cada detalhe e fazer um mapeamento rigoroso dos obstáculos que poderiam surgir. Uma ação como aquela só poderia ser levada a cabo depois que cada destacamento fizesse minucioso estudo sobre as possibilidades de deslocamentos. Com o objetivo de acertar os ponteiros, nova reunião foi marcada para o dia 20 de dezembro de 1973.
Um problema adicional era a lacuna no comando do Destacamento A, resultado da ação da repressão que abateu o seu comandante, Zé Carlos (André Grabois), em 14 de outubro de 1973. A solução encontrada foi o deslocamento de um membro da Comissão Militar, Ângelo Arroyo (Joaquim), para o posto. Quando se dirigia para a região do Destacamento A, ele avistou vestígios de que soldados do governo andaram rondando as proximidades dos Destacamentos B e C e da Comissão Militar. Estavam estudando o terreno, com auxílio de helicópteros, para futuras operações. A ausência de rastros em torno da região do Destacamento A foi um alívio — o local, próximo à Serra das Andorinhas, era considerado área de refúgio.
A precipitação dos acontecimentos atropelou as previsões da reunião de novembro da Comissão Militar. Antes do encontro de 20 de dezembro, a permanência dos destacamentos em suas áreas de atuação ficou inviabilizada. O poderio das forças governistas mostrou-se superior ao previsto e os guerrilheiros foram obrigados a bater em retirada. O Destacamento A refugiou-se na mata densa. O B e o C foram juntar-se à Comissão Militar, formando um corpo único. No percurso, sofreram baixas consideráveis. A vulnerabilidade da área onde se juntaram fez com que o grupo se deslocasse para uma localidade chamada Palestina, próxima ao rio Araguaia, onde havia alguns depósitos de suprimentos da Guerrilha. As trinta e duas pessoas que se juntaram formaram três subgrupos para o deslocamento.
Mal começaram a caminhada, foram atacados e decidiram recuar para se juntar ao Destacamento A na mata densa. Durante o longo e penoso percurso, a Comissão Militar enviou dois guerrilheiros para avisar Ângelo Arroyo que a reunião prevista para o dia 20 de dezembro seria adiada e deveria ocorrer onde estava o Destacamento A, e para pedir-lhe que providenciasse alguma comida. No final da manhã do dia 25 de dezembro de 1973, Arroyo e mais cinco guerrilheiros, com quatro latas de farinha, dirigiam-se ao local onde estavam acampados os demais e a mais ou menos um quilômetro de distância ouviram um intenso tiroteio.
Pelo barulho, os cálculos são de que foram disparados centenas de tiros. No tiroteio, o grupo de agentes do governo, guiado por mateiros recrutados na região, acertou o comandante militar da Guerrilha, Maurício Grabois, que reagiu atirando com seu revólver calibre 38. Foi atingido primeiro no braço e depois mortalmente na cabeça. Conforme o testemunho de Ângelo Arroyo, ele deixou uma espécie de diário, onde anotou os principais fatos e as medidas adotadas pela Guerrilha, desde o seu início. Estavam com Maurício Grabois também cópias de todos os materiais produzidos pelos guerrilheiros, além de hinos, poesias e outros textos alusivos à Guerrilha.
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Maurício Grabois comandava um movimento de resistência, cuidadosamente planejado pelo PCdoB, ao regime discricionário de 1964. A ideia da luta armada criou raízes nos estudos dos comunistas brasileiros desde que os golpes de Estado começaram a se suceder, na década de 1950. Um pouco antes, nos anos 1940, manobras golpistas cassaram o registro eleitoral e os mandatos parlamentares dos comunistas no Brasil e no Chile. Na Guatemala, um moderado processo de transformação social iniciado em 1944 foi evoluindo até o golpe apoiado pelos Estados Unidos que derrubou o governo progressista do presidente Jacobo Arbenz, em 1954. Estava desencadeada a era dos golpes na América Latina.
O documento denominado Manifesto de Janeiro do Partido Comunista do Brasil (então com a sigla PCB), de 1948, diagnosticou que o imperialismo norte-americano, como dirigente da reação mundial naquele momento, fora golpeado e batido na China, com o triunfo da revolução em 1949; na Europa Oriental, com a ascensão ao poder dos aliados da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) após a Segunda Guerra Mundial; e em toda parte onde as forças da democracia estavam vigilantes. Para contornar essas barreiras, o regime de Washington voltava-se para a dominação dos povos fracos e desorganizados. Os países da América Latina, governados por representantes de latifundiários e de grandes exploradores, eram particularmente sensíveis à agressividade dos Estados Unidos. No Brasil, a situação exigia dos comunistas, dos democratas e patriotas, coragem e audácia para a solução dos problemas fundamentais da revolução agrária e anti-imperialista.
Em maio de 1949, um Informe político do Comitê Nacional do PCB afirmou que a política expansionista, agressiva e guerreira do imperialismo norte-americano no mundo inteiro, e na América Latina particularmente, considerada por Washington como sua retaguarda e seu “quintal” de domínio privativo, assumia no Brasil formas cada vez mais abertas e violentas. Para enfrentá-la, a correlação de forças sociais do país — com o crescimento do proletariado sem que a burguesia se reforçasse econômica e politicamente já que as posições fundamentais da economia nacional estavam cada vez mais em poder do imperialismo — indicava a possibilidade de uma revolução que criasse as condições de um desenvolvimento não capitalista e que levasse o país diretamente ao socialismo.
Outro documento histórico do PCB, o Manifesto de Agosto, propôs, em 1950, a formação da Frente Democrática de Libertação Nacional (FDLN) que conduziria a massa pelo caminho das lutas revolucionárias, “como exigia os superiores interesses nacionais”. À medida que se agravava a situação do país e aumentava o perigo de guerra no mundo inteiro, cresciam a radicalização e a combatividade das massas trabalhadoras. E à frente delas deveriam estar os democratas e patriotas, que não podiam recear as formas de lutas mais altas e vigorosas, inclusive choques violentos com as forças da reação e os combates parciais que levariam o povo à luta vitoriosa pelo poder e à libertação nacional do jugo imperialista.
Embora as condições não tenham favorecido os prognósticos do PCB, o país, mesmo governado por Getúlio Vargas — que voltara à presidência da República ao se eleger em 1950 —, não se desvencilhava dos laços que o atavam à órbita norte-americana. O “Acordo de Assistência Militar” com os Estados Unidos, proposto em 1952, era mais um acontecimento que dava razão aos diagnósticos dos comunistas. Ao analisar aquela conjuntura, o PCB classificou o governo Vargas como de preparação de guerra e de traição nacional. O presidente era um instrumento útil e necessário aos imperialistas, que facilitava a completa colonização do Brasil pelos Estados Unidos.
Mais uma vez, os fatos jogaram contra os prognósticos do PCB. Quando Café Filho assumiu a presidência da República, após o suicídio de Vargas, um Manifesto do Comitê Central, de 1º de setembro de 1954, chamou o novo governo de ditadura e diagnosticou que novos e maiores perigos ameaçavam a vida e a segurança do povo brasileiro. Pela força das armas, os piores inimigos do povo conseguiram chegar ao poder. Os que levaram Vargas ao suicídio eram os mais vis lacaios dos provocadores de guerra dos Estados Unidos, que protagonizaram um ato revelador da brutalidade dos métodos norte-americanos de dominação e pôs a nu a violência com que os agentes do Departamento de Estado faziam e desfaziam governos no Brasil.
O IV Congresso do PCB, realizado em 1954, deu forma às ideias que pontuaram os documentos desta fase dos comunistas, realçando o caráter anti-imperialista da revolução naquela etapa histórica. O Programa aprovado previa a substituição do governo por outro capaz de defender a soberania nacional, expulsando do território brasileiro os domínios e as missões dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, anularia os acordos lesivos com os norte-americanos e estabeleceria relações amistosas com a URSS e demais países do campo da paz.
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O caminho da luta armada, no entanto, constituiu um dos pomos da discórdia desencadeada com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em fevereiro de 1956. Maurício Grabois foi o primeiro a se manifestar quando começou o debate das Teses do V Congresso do PCB, em 29 de abril de 1960. No artigo, com o sugestivo título Duas concepções, duas orientações políticas, explicitou sua discordância com a possibilidade de transformar o governo brasileiro, nas circunstâncias da época, em defensor da soberania nacional e da democracia popular, conforme estava nas Teses. Para ele, era uma impossibilidade intrínseca à natureza das forças políticas no poder.
Também contestou a mesma versão contida em outro famoso documento do PCB, a Declaração de Março, de 1958. Segundo ele, era falsa a afirmação de que a democratização era uma tendência permanente na vida política nacional, uma decorrência do desenvolvimento do capitalismo. “Assim, a democracia aparece como inerente ao capitalismo, tese tipicamente revisionista. Além disso, é uma afirmação que não corresponde à realidade e leva ao embelezamento do capitalismo”, escreveu.
A tese de que a revolução em países como o Brasil poderia abrir passagem pela via pacífica, conforme a Declaração de Março, partia de uma análise profundamente subjetiva, traçava um caminho róseo, sem comoções sociais e choques violentos, para realizar as tarefas da revolução. “Levando ao absoluto a possibilidade do caminho pacífico, a Declaração o torna de fato o único caminho. Toda a orientação que estabelece é baseada nesse caminho, desarmando, assim, o proletariado e seu Partido para qualquer outra eventualidade”, comentou.
Entre uma contestação e outra, Maurício Grabois iniciava ali um processo que levaria à reorganização do Partido Comunista do Brasil, em fevereiro de 1962, diferenciando-o da linha revisionista, que adotaria o nome de Partido Comunista Brasileiro — um PCdoB, outro PCB. Com ele, na mesma linha de combate, estavam comunistas históricos, como João Amazonas e Pedro Pomar. Carlos Nicolau Danielli e Ângelo Arroyo, nomes da nova geração de dirigentes comunistas, seguiriam pela mesma linha revolucionária e também pagariam com a vida — assim como Pedro Pomar — a decisão de resistir ao regime de 1964 pelo caminho da luta armada.
Como Maurício Grabois deixou claro no primeiro artigo do debate do V Congresso, eles não consideravam a luta armada a única via para as transformações profundas das estruturas sociais brasileiras, mas, diante daquelas condições dadas, a possibilidade da via pacífica era remota. O triunfo da Revolução Cubana, em 1º de janeiro de 1959, reforçou essa convicção. Antes mesmo da reorganização do Partido Comunista do Brasil, Carlos Danielli e Pedro Pomar foram ver de perto o caminho da luta armada que conduziu os guerrilheiros liderados por Fidel Castro da Sierra Maestra a Havana. Danielli voltaria à ilha revolucionária, desta vez acompanhado de Ângelo Arroyo, mas não consta que deixaram algum registro escrito do que viram — ao contrário de Pedro Pomar, que fez um relato minucioso de sua estada de duas semanas e meia em Cuba em uma série de artigos no jornal comunista Novos Rumos.
A experiência cubana merecia atenção, definiram os comunistas do PCdoB. Antes mesmo da reorganização, em novembro de 1961, criaram uma editora, a Edições Futuro, no Rio de Janeiro, que lançou, como primeiro título, a obra A Guerra de guerrilhas, de Ernesto Che Guevara — a primeira do guerrilheiro famoso publicada no Brasil —, prefaciada por Maurício Grabois. No primeiro semestre de 1962, a editora lançou De Moncada à ONU, traduzida por Pedro Pomar, com discursos de Fidel Castro e a Segunda Declaração de Havana. Pedro Pomar também escreveu o prefácio. Em abril de 1962, Maurício Grabois e João Amazonas visitaram Cuba e conversaram com Fidel Castro e Che Guevara. Encontraram-se também com dirigentes comunistas da Coreia, da Albânia e da China.
A guerra popular na China e no Vietnã era outra vertente da luta armada que despertava a atenção. O Brasil vivia sob ameaça de golpe e o PCdoB entendia que era preciso considerar a possibilidade da resistência de armas em punho quando ele chegasse. Preocupado em se firmar no cenário político nacional e internacional como corrente política com densidade ideológica, o Partido priorizou a sua reorganização enquanto o governo do presidente João Goulart era posto contra a parede pelos golpistas. Na noite de 31 de março para 1º de abril de 1964, o golpe se consumou.
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Tão logo avaliou a extensão do regime discricionário que nascia, em reunião do Comitê Central realizada três meses após o golpe, o PCdoB indicou a possibilidade da luta armada a partir do campo como caminho da resistência. Em agosto de 1964, aprovou a resolução divulgada com o título O Golpe de 1964 e seus ensinamentos, avaliando que o ocorrido era resultado dos avanços de um projeto estratégico dos setores mais reacionários internos a serviço do imperialismo norte-americano. Era a hora de procurar novas formas de resistência. A luta armada despontava no horizonte como uma possibilidade.
A direção do PCdoB chegou à conclusão de que para discutir profundamente a forma de enfrentar a ditadura era necessário convocar uma Conferência — a VI, realizada em julho de 1966 em São Paulo. A linha política aprovada, contida no documento União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista apontou a guerrilha como uma das principais formas de luta contra a ditadura. “A ideia de que é indispensável empunhar armas para libertar o país do atraso e da opressão vem ganhando força”, diz o documento. “A luta revolucionária em nosso país assumirá a forma de guerra popular”, definiu a Conferência. “As forças armadas populares, inicialmente débeis, crescem e tornam-se fortes e superiores às do adversário. (…) Sendo parte integrante do povo, têm nele a fonte de sua invencibilidade.”
O PCdoB afastara-se de Cuba quando o governo de Fidel Castro optou pelo alinhamento com a União Soviética e voltou-se para o estudo das experiências da guerra popular na China e no Vietnã. Alguns militantes foram para a China, onde receberam instruções político-militares. As relações políticas com os comunistas chineses e albaneses se estreitaram com sucessivas visitas de dirigentes do PCdoB àqueles países.
Em fevereiro de 1968, o Comitê Central publicou o documento para estudo denominado Salve a grande vitória da guerra popular, de autoria de Lin Piao, um dos dirigentes da República Popular da China, com a sistematização das experiências chinesas dos vinte e dois anos da Revolução. Em maio, o Comitê Central aprovou dois documentos. O primeiro, denominado Alguns problemas ideológicos da revolução na América Latina, posicionava-se a favor da China e da Albânia, em contraposição aos Estados Unidos e à União Soviética. No aspecto ideológico, criticou o “fidelismo” e afirmou que cada povo faria a sua revolução.
No segundo, denominado Preparar o Partido para grandes lutas, o PCdoB, com base nas mobilizações estudantis que tomavam corpo, disse que “o desprendimento e a energia da mocidade, bem orientada, são fatores de radicalização das lutas”. Mas alertava: “As zonas rurais constituirão as vastas áreas de manobra para os destacamentos armados do povo e nestas zonas encontrava-se o maior potencial revolucionário”. Outro texto, com o título A política estudantil do PCdoB, orientou os militantes naquele ano de grandes embates com a ditadura, quando greves e manifestações estudantis desafiaram os golpistas.
No começo de 1969, o PCdoB realizou uma reunião ampliada do Comitê Central na qual aprovou o documento Guerra popular — caminho da luta armada no Brasil, que expôs, “nos aspectos essenciais”, a concepção “da luta armada em que todo o povo brasileiro se empenhará para livrar o país da ditadura e do domínio imperialista norte-americano”, e o Manifesto ao povo, denunciando o banditismo da repressão e conclamando a unidade nacional para “derrubar os opressores”. A reunião também definiu que o PCdoB deveria ter “no interior o centro de gravidade do seu trabalho” e que “as forças armadas populares terão, durante muito tempo, de se orientar pelos princípios da defensiva estratégica e guiar-se por uma política correta”. Era uma diretiva que queria dizer, entre outras coisas, que o centro de atividades do Partido seria a luta armada — a “quinta tarefa”, como ficou conhecida na ordem de atividades definida pela direção do PCdoB. A primeira era a construção partidária.
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A luta armada começava a sair do papel e a ser preparada efetivamente. Ao longo do ano de 1970, três documentos foram aprovados pelo Comitê Central para marcar a linha política do PCdoB. O primeiro, publicado em abril e escrito por Maurício Grabois e João Amazonas, denominado Atualidade do pensamento de Lênin, foi a primeira manifestação pública de divergências com o Partido Comunista da China sobre a tese do “Pensamento de Mao Tse-tung” como uma “nova etapa do marxismo”. O segundo, de julho, com o título Mais audácia na luta contra a ditadura, aprofundava o movimento de revolucionarização iniciado no ano anterior. E o terceiro, de dezembro, intitulado Desenvolver ações mais vigorosas, orientou a militância para o “espírito de oposição das massas” com vistas a “acelerar a preparação da luta armada”.
Quando estes últimos documentos foram publicados, Maurício Grabois já estava embrenhado nas matas do Araguaia. Ele chegou à região em 25 de dezembro de 1967, desembarcou no Porto da Faveira, no sul do Pará, e foi morar em um sítio recentemente adquirido. Chegaram também Elza Monnerat e Líbero Giancarlo Castiglia — um jovem italiano que havia conhecido André Grabois na escola e entrara para o PCdoB. Maurício Grabois logo ficaria conhecido como “seu Mário”. Elza Monnerat era a “dona Maria” e Líbero Giancarlo, o “Joca”. Os três se passavam por comerciantes. Maurício Grabois comprara um barco que servia de transporte para as mercadorias adquiridas em Imperatriz, cidade polo no sul do estado do Maranhão às margens do rio Tocantins, até o sítio da Faveira. Compravam e vendiam fumo, cigarro, remédios, querosene, óleo, fósforo, café, açúcar e outras mercadorias requeridas pela população local.
Ao passo que o negócio prosperava, outros dirigentes da Guerrilha se deslocavam para a região. Chegaram João Amazonas e Ângelo Arroyo. Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, estava por lá desde 1966. Chegaram também outros militantes do PCdoB que formariam o núcleo do trabalho de implantação do que seria no futuro um ponto da guerra popular. Entre eles estavam André e Gilberto Olímpio Maria, filho e genro de Maurício Grabois.
Na selva amazônica, além do documento Atualidade do pensamento de Lênin Maurício Grabois e João Amazonas redigiram o texto Cinquenta anos de Luta, um retrospecto das atividades ininterruptas do Partido Comunista do Brasil desde a sua fundação, em 1922. “O Maurício tinha uma grande capacidade, era um grande jornalista, que conhecia muito bem a história”, disse João Amazonas. “Eu valorizo isso porque o Maurício, para mim, de todos nós, é o que mais entendia da história do Partido naquela ocasião. De maneira que é um texto em que o Maurício está presente”, afirmou.
Atualidade do pensamento de Lênin e Cinquenta anos de Luta são dois documentos estratégicos do PCdoB. Cada vírgula e cada parágrafo foram cuidadosamente analisados pelos dois redatores no Araguaia e depois submetidos à apreciação do Comitê Central em São Paulo. O primeiro era uma resposta polida a uma tendência do “pensamento de Mao Tse-tung” sobre a criação de um “partido inteiramente novo”, que ganhava adeptos entre os militantes da Ação Popular (AP) — uma organização que se aproximava do PCdoB. O segundo era um resgate da história do Partido Comunista do Brasil, comprovando que o legado dos comunistas estava presente no caminho tomado após a reorganização de 1962.
O último capítulo do documento Cinquenta anos de luta tem como título uma mensagem otimista sobre a missão que a história reservaria aos comunistas: “O Partido Comunista do Brasil conduzirá o povo à vitória”. Segundo o texto, cinquenta anos de vida, meio século de lutas, amadureceram o Partido, política e ideologicamente, para conduzir o povo brasileiro à vitória nos embates pela emancipação nacional, a democracia e o socialismo. Nenhuma outra força no país contava com a experiência e o conhecimento que o Partido havia acumulado em tão longo período. O Brasil estava dominado por uma ditadura sanguinária e antinacional, da qual precisava se libertar. A revolução era um imperativo daquela hora e o PCdoB pôs todas as suas forças em tensão para elevar a luta do povo a um novo nível e desencadear a guerra popular. Foi com essa certeza que Maurício Grabois chegou ao Araguaia.
Pouco mais de quatro anos e quatro meses depois da sua chegada, em plena fase preliminar dos preparativos, a Guerrilha foi atacada pelas forças governistas na primeira das três campanhas que seriam promovidas para cercar e aniquilar a resistência do PCdoB. Para os guerrilheiros, muita água ainda passaria pelo rio Araguaia antes do início dos combates. Quando a repressão chegou, foram obrigados a improvisar os combates e se deram conta da ferocidade prenunciada pelos primeiros ataques na manhã abafada de 12 de abril de 1972. A maior debilidade era o armamento precário, uns fuzis velhos que “eram umas porcarias, alto como o diabo, encostavam em tudo o que é coisa, pesados para caramba”, segundo João Amazonas, e um revólver calibre 38, com mais de 40 balas, para cada guerrilheiro. Foi com um desses revólveres que Maurício Grabois reagiu ao ataque das forças governistas na manhã de 25 de dezembro de 1973.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e editor do Portal Grabois