De 11 a 15 de setembro, evento na USP vai lembrar o centenário do professor pioneiro nos estudos sobre a história republicana e o marxismo no Brasil

Por Luiz Prado

Edgard Carone em 1989 – Foto: Jorge Maruta/Acervo USP Imagens

Historiador da República, do movimento operário e do marxismo no Brasil. Amante inquestionável dos livros. Historiador marxista. Professor universitário. Companheiro de viagem dos comunistas. Esses são alguns termos para falar de Edgard Carone (1923-2003), professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, homenageado e inspirador do evento Centenário Edgard Carone “A República em Capítulos: História e Historiografia”, que acontece de 11 a 15 de setembro na USP, com mesas de discussão, cursos e lançamento de livros.

Pioneiro nos estudos sobre a República brasileira, Carone foi um historiador preocupado com a reunião, análise e publicação de documentos, deixando uma obra que aborda um período que vai de 1889 até 1964 e se constitui em um projeto político-intelectual de compreensão das causas históricas do golpe militar de 1964. Nessa empreitada, o professor reuniu a um conhecimento profundo das fontes históricas e da bibliografia sobre o período republicano, uma metodologia marxista inovadora na universidade brasileira de sua época. O resultado foram séries de livros sobre o período republicano e as revoluções da época.

“Em primeiro lugar, a obra de Edgard Carone já impressiona por sua extensão”, comenta o professor Lincoln Secco, do Departamento de História da FFLCH, organizador do evento e ex-aluno de Carone. “Ele escreveu quase 30 livros e sua obra sobre a República é marcada pelo pioneirismo, porque até o momento em que ele faz uma síntese da história republicana não havia obras acadêmicas que tivessem tentado isso.”

Secco conta que uma característica importante da biografia de Carone é sua bibliofilia. Em um período no qual não existiam tantos arquivos disponíveis, o professor reuniu uma coleção importante de documentos e obras de referência. Além disso, Carone foi dono de uma produção essencialmente narrativa, apoiada nessa grande massa de documentos acumulados e levada ao público em um estilo seco e direto, sem interesse por derivas teóricas, conforme explica Secco. A isso ele aliou uma metodologia que, em sua época, poderia ser considerada inovadora.

“Ele era um marxista e, na universidade, especialmente nos estudos históricos, isso era raro no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, Carone não adotava um estilo esquemático, com longas introduções teóricas e citações a Marx e Lênin. Eu diria que a teoria estava entranhada na narrativa e, por isso, ele escreveu volumes extensos, narrando os processos políticos e ideológicos.” Segundo Secco, o professor também foi um pioneiro ao publicar volumes reunindo documentos, o que foi precioso para os historiadores de uma geração sem as facilidades da internet.

Conforme explica Secco, a grande motivação dos estudos republicanos de Carone era tentar explicar o golpe militar de 1964. “Ele apreende a permanência e a capacidade adaptativa das oligarquias e classes dominantes e tenta compreender o caráter dos militares na política, que sempre se pretenderam um papel moderador. Os volumes que Carone escreveu têm descrições bastante vivas do uso da violência nas disputas da oligarquia contra os trabalhadores rurais e os setores populares que se manifestavam. E ele se preocupou também com a potencialidade que os movimentos populares tinham quando emergiam na arena política.”

Apesar dessas contribuições, a partir dos anos 1980 a obra de Carone ficou um pouco esquecida, conta Secco. “Ela é citada como fonte de conteúdo, mas ele não é levado em conta como alguém que interpretou esse conteúdo.” Para o professor, esse processo envolve as transformações da própria historiografia brasileira. As novas levas de historiadores, mais identificados com a nova esquerda democrática que ascende nos anos 1980 e mais interessados no estudo do cotidiano dos trabalhadores, tenderam a deixar em segundo plano os esforços de Carone. Sua abordagem pareceria mecânica e determinista, deixando a subjetividade da classe trabalhadora de lado.

Secco relativiza esses olhares. “Eu diria que Carone era fruto de seu tempo. Mas na obra dele encontramos também documentos que permitem fazer essas discussões. Ele dava alguma atenção para greve de mulheres, para o cotidiano. Em seu livro sobre o Estado Novo, mostra as mudanças nas formas de habitação das camadas médias, por exemplo”, indica o professor. “Por outro lado, apesar de termos que dar ênfase também ao cotidiano, ao que se passava fora das fábricas, dos sindicatos e do partido, não existem duas instâncias separadas”, pondera.

Mas esse é um cenário que vem mostrando mudanças, como o próprio evento organizado por Secco indica. “Hoje há um interesse de jovens historiadores pelas obras de Carone, porque ele tem um trabalho que serve de consulta para quem busca se iniciar na história republicana. Ele encadeou esses acontecimentos de um modo que ninguém mais fez e hoje não existe uma síntese como a dele”, explica. “Há uma juventude que vê no marxismo um tema importante para o debate acadêmico e Carone tende a ser uma referência.”

A República, entretanto, não foi o único interesse de Carone. O professor também deixou contribuições importantes sobre a história do movimento operário e do marxismo no Brasil. Ele foi autor de uma história em três volumes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicada em 1982, que cobre um período que vai da fundação do partido, em 1922, até a data de publicação da obra. Além disso, escreveu uma história geral do movimento operário no Brasil, também em três volumes, que vai de 1877 até 1984, ano da publicação do último tomo.

Segundo Secco, Carone também pode ser visto como o inaugurador de uma tradição de pesquisa editorial de esquerda no País, graças ao livro Marxismo no Brasil – das Origens a 1964 (1986). Trata-se de um recenseamento de obras sobre o tema, a maioria presente na grande biblioteca do próprio autor. Para Secco, com poucas exceções, ninguém se dedicou dessa forma à literatura operária. E mais um mérito: um trabalho publicado quando não se discutia a história do livro, um campo de estudos que só foi institucionalizado recentemente.

“Carone chamou atenção para o fato de que não adianta discutirmos as ideias como se elas pairassem no ar. Elas precisam de um suporte material que, no caso da esquerda brasileira, era principalmente o impresso”, explica Secco. “Através da tiragem dos livros e da história das editoras, podemos saber o alcance dessas ideias.”

Companheiro de viagem

Edgard Carone nasceu em 14 de setembro de 1923 na cidade de São Paulo, filho dos imigrantes libaneses Sharkir Jorge Carone e Sarah Hachen e irmão de Jorge, Mário, Raul e Maxim Tolstói. Sharkir Carone começou a vida no Brasil como mascate, tornando-se depois comerciante de sapatos e camas e posteriormente proprietário de uma casa bancária, garantindo uma vida financeira confortável para a família.

Carone passou os primeiros anos de vida na Rua Florêncio de Abreu, reduto comercial situado no centro da cidade, e depois mudou-se com a família para o bairro do Paraíso. Dentro de casa, teve os estímulos necessários para uma boa formação: além da condição econômica favorável, seu pai lia muito, falava inglês e chegou a escrever dois livros, enquanto sua mãe havia estudado em uma universidade francesa e lia em inglês e francês.

Parte dos estudos de Carone foi realizada no tradicional Colégio Rio Branco, mas seu verdadeiro aprendizado se deu em outros espaços. O interesse pelos livros levaria Carone desde cedo aos sebos de São Paulo, locais que seriam fundamentais para sua formação e a organização de sua biblioteca e o acompanhariam em suas pesquisas durante toda a vida.

Outro pilar da formação de Carone foi seu irmão, Maxim Tolstói, batizado em homenagem aos dois autores russos Maxim Gorki e Liev Tolstói. Formado na primeira turma de História e Geografia da então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, Maxim foi filiado ao Partido Comunista do Brasil (que depois mudaria de nome para Partido Comunista Brasileiro). Atuou como líder da juventude do partido e chegou a ser preso durante o Estado Novo de Getúlio Vargas.

Por ocasião dessa prisão, na década de 1940, Carone se juntaria à cunhada em uma peregrinação em busca de apoio ao irmão, o que o colocaria em contato com nomes ligados à intelectualidade de esquerda paulista, como Azis Simão, Antonio Candido e Paulo Emilio Sales Gomes. Seria por influência desses amigos que Carone se filiaria à União Democrática Socialista, sua única experiência de filiação partidária. Ele também se tornaria assistente de Simão que, quase cego, precisava de alguém para ajudá-lo em suas leituras.

O ingresso no curso de História e Geografia da FFCL da USP, então uma única graduação, se deu em 1944. Carone, entretanto, levaria mais de duas décadas para completar a formação. Uma reprovação na disciplina de Tupi e o desinteresse por certas leituras do curso o fariam abandonar a Universidade em 1946. Ele só receberia seu diploma mais de 20 anos depois, em 1969.

O abandono temporário da academia foi acompanhado de uma mudança na vida de Carone. Ele deixa a cidade de São Paulo para se estabelecer na Fazenda Bela Aliança, propriedade da família situada em Bofete, então distrito de Botucatu. Lá ele permaneceria por 12 anos, dividindo seu tempo entre as atividades rurais e o seu contínuo autodidatismo via leitura contínua de livros. Nesse tempo longe da capital ele também contribuiria com textos para o prestigiado Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo.

Sem uma grande produção, a Fazenda Bela Aliança era ocupada na época por colonos que viviam e trabalhavam no sistema de parceria. Acabaria sendo um espaço de formação empírica para Carone sobre a realidade rural brasileira. Mas não só. A fazenda também teria papel importante na vida de outro intelectual, Antonio Candido. O amigo passaria algumas temporadas na propriedade de Carone e lá faria as observações da vida dos trabalhadores rurais que serviriam de base para sua tese de doutorado, publicada em 1964 como Os Parceiros do Rio Bonito.

Depois da experiência na fazenda, Carone passaria ainda uma temporada na cidade de Botucatu, durante os anos 1960. Foi nesse período que o amigo Antonio Candido, mais uma vez, teve ação decisiva na vida do historiador. Em 1963, Candido decide passar uns dias na casa do amigo e o instiga a colocar suas pesquisas, leituras e reflexões no papel. Aceitando o convite, Carone escreve seu primeiro livro, Revoluções do Brasil Contemporâneo (1922-1938). Publicado em 1965, seria o início de uma produção sobre o período republicano que contaria com mais de dez livros, responsáveis por abarcar um arco que vai de 1889 até 1964. Um trabalho escrito ao longo de três décadas.

Esse primeiro livro, que aborda do tenentismo até o levante integralista já no Estado Novo, representou um ponto de virada na trajetória de Carone. Com ele, começa o desenvolvimento de um projeto político-intelectual comprometido em compreender o então recém-aplicado golpe militar de 1964. Esse fôlego levaria à retomada da vida universitária, que acontece no final dos anos 1960. Em 1969, Carone finalmente conclui sua graduação, ao mesmo tempo em que publica seu segundo livro, A República Velha – Texto e Contexto. Em 1971, defende sua tese de doutorado, intitulada União e Estado na Vida Política da Primeira República, que seria publicada sob o título República Velha II – Evolução Política.

A atividade docente de Carone começa na Fundação Getúlio Vargas (FGV), passa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília e chega finalmente à USP, onde se torna professor titular de História do Brasil em 1976. A livre-docência veio um pouco antes, em 1974, com o título de Oligarquias e Classes Sociais na Segunda República (1930-1937).

De acordo com o professor Lincoln Secco, esse intervalo entre o início dos estudos acadêmicos e o retorno à Universidade fez de Carone um intelectual deslocado. Na década de 1940, quando começou sua trajetória, os estudos históricos ainda não estavam profissionalizados e a carreira ainda se definia. No final dos anos 1960, a realidade já era outra, com uma nova configuração institucional de Universidade, um processo de especialização acadêmica instaurado e novos debates políticos e intelectuais.

“Carone ficou entre esse momento de formação da USP e o período em que ela transita, já na ditadura militar, para uma estrutura departamental e de financiamento de pesquisas”, diz Secco. O professor teria encontrado dificuldades de adaptação, não se tornando um líder de pesquisas nem reunindo um grupo em torno de si. “Ele não tinha uma perspectiva profissionalizante da carreira de historiador e continuou sendo um pesquisador artesanal, que contava com sua própria biblioteca e usava recursos próprios para viagens e pesquisas.”

Um dado relevante da trajetória de Carone é que, apesar da simpatia nutrida por quase toda a vida, o professor nunca foi filiado ao Partido Comunista. “Carone foi aquilo que no movimento comunista internacional do passado era chamado de ‘companheiro de viagem’”, destaca Secco. “Ele dizia que sempre quis manter a independência intelectual e que não servia para ser membro de um partido que diria o que deveria escrever ou pensar.”

Por outro lado, Secco aponta que Carone manteve ao longo da vida uma grande fidelidade ao partido. Ao mesmo tempo em que evitava críticas ao PCB em sua obra, o professor sempre estava disposto a participar de debates e realizar palestras para militantes e trabalhadores. “Ele se manteve ‘espiritualmente’ vinculado ao PCB até o momento em que ele se torna o Partido Popular Socialista (PPS), em 1992. A partir daí, ele se vincula, também sem se filiar, ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).”

Carone foi casado com Flávia de Barros Carone, também professora da FFLCH e autora de uma obra importante sobre morfossintaxe. O professor se aposentaria em 1993 e morreria dez anos depois, em 31 de janeiro de 2003, aos 79 anos.

Sua biblioteca com mais de 20 mil livros se encontra hoje no Museu Republicano Convenção de Itu, em Itu (SP), ligado ao Museu Paulista (MP) da USP – também chamado Museu do Ipiranga. Lá estão guardados livros, revistas, panfletos, jornais e cartas, compondo um dos principais acervos tanto sobre o período republicano como sobre as esquerdas nacionais. Além do número expressivo de obras, alguns volumes raros também chamam atenção, como a primeira edição de Os Sertões, de Euclides da Cunha, com correções ortográficas do próprio autor, e a primeira edição de Miséria da Filosofia, de Karl Marx.

“O acervo de Carone é fruto de uma trajetória ímpar entre os intelectuais da USP”, assinala Secco, que trabalhou na biblioteca pessoal do professor quando era seu aluno na graduação. Segundo Secco, Carone possuía um apartamento só para sua biblioteca e muitas vezes comprava mais de um exemplar do mesmo livro. “Ele tinha uma amplitude de interesses: literatura, leituras comunistas, socialistas, democratas. Começou a comprar livros nos sebos de São Paulo, depois acumulou mais livros na fazenda e, após o golpe militar, conseguiu comprar parte importante da biblioteca de Astrojildo Pereira, o fundador do Partido Comunista, que havia sido anarquista e por isso tinha livros dessas duas vertentes. E a partir dos anos 1970, já como professor, continuou colecionando livros.”

“Há uma juventude que vê no marxismo um tema importante para o debate acadêmico e Carone tende a ser uma referência”

Lincoln Secco, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e organizador do evento “Centenário Edgard Carone”

Desafios do presente

Todas essas facetas de Carone contribuem para a programação do evento Centenário Edgard Carone “A República em Capítulos, que acontece a partir do dia 11, segunda-feira, na FFLCH, e também no Museu Republicano Convenção de Itu. A primeira atividade é justamente a abertura de exposicões sobre o professor, na Biblioteca Florestan Fernandes, na FFLCH, e no Centro de Estudos do Museu Republicano de Itu. A programação segue até dia 15, com mesas de discussão, cursos e o lançamento de livros.

“Não é um evento para discutir apenas o Carone de ontem”, explica Secco. “É para discutir sua obra, trazer elementos críticos, mostrar no que está defasada ou insuficiente, mas também é um debate sobre os desafios políticos e historiográficos do presente.”

Secco destaca a contribuição de dois pesquisadores argentinos para o evento. Um deles é Horacio Tarcus, investigador do movimento operário argentino. O outro convidado argentino é Ariel Goldstein, cientista político especialista nas novas direitas latino-americanas, tema que se liga às pesquisas do próprio Carone, que lidou com as direitas e os fascistas da década de 1930. O assunto é atual não só pelo período recente da história brasileira protagonizado por Jair Bolsonaro, mas também pelo horizonte que se desenha na Argentina, com as chances concretas de vitória de Javier Milei.

Os dois convidados participam de uma série de atividades no evento. No dia 12, Tarcus compõe uma mesa sobre história da República, marxismo e bibliofilia no Museu Republicano de Itu. Já no dia 13, na FFLCH, participa de uma discussão sobre história da República e marxismo no Brasil. Tarcus também irá ministrar, entre os dias 13 e 15, um minicurso intitulado O Problema da Recepção e Circulação das Ideias de Esquerda na América Latina sob o Prisma da História Editorial. Já Goldstein fala no dia 14, em uma mesa sobre a ascensão da extrema direita na América Latina, na FFLCH.

O organizador também chama atenção para os lançamentos do evento. Edgard Carone e a Ideia de Revolução no Brasil (1964-1985) é fruto da dissertação de mestrado de Fabiana Marchetti, apresentada na FFLCH. Trata-se, segundo Secco, da primeira análise acadêmica mais extensa da obra do professor. Além do lançamento, Fabiana também participará, no dia 11, de uma mesa intitulada A Obra de Edgard Carone e a Historiografia Republicana”, na FFLCH.

Lede e Fazei Ler: Uma Bibliografia do Marxismo no Brasil (dos Primórdios a 1968), escrito por Dainis Karepovs, outro aluno de Carone e também bibliófilo, é uma espécie de atualização e ampliação da obra pioneira Marxismo no Brasil – das Origens a 1964. Karepovs também integra as mesas sobre história da República e marxismo ao lado de Tarcus.

Secco, por sua vez, participa no dia 15, na FFLCH, de um debate sobre as ideias de revolução no Brasil, que acontece logo após a exibição do documentário Revolução de 1930.

O evento Centenário Edgard Carone “A República em Capítulos: História e Historiografia” acontece de 11 a 15 de setembro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP (Avenida Professor Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária, em São Paulo) e no Museu Republicano de Itu (Rua Barão do Itaim, 67, centro, Itu), também da USP. Entrada grátis. A programação completa do evento está disponível no site da FFLCH.

Antonio Candido, amigo de Edgard Carone, em visita à fazenda do professor em Bofete (SP), em janeiro de 1948 – Foto: Reprodução/Museu Paulista

ENTREVISTA COM ANTONIO CÂNDIDO

“Ele era uma fonte inesgotável de informação”

A amizade entre Edgard Carone e Antonio Candido durou a vida toda e foi muito além da esfera intelectual. Almoços de fim de semana e passeios pela cidade de São Paulo fizeram parte da sociabilidade dos professores e o carinho de Carone pelo amigo ficou registrado no nome de um de seus filhos, Antonio Candido.

Por ocasião do falecimento de Carone, em 2003, Candido concedeu uma entrevista ao Jornal da USP, falando sobre o amigo. Alguns trechos seguem reproduzidos abaixo.

Jornal da USP – O seu livro Parceiros do Rio Bonito usou material colhido na fazenda dele. Como foi isso?

Antonio Candido – O pai de Edgard, grande comerciante e homem de negócios, era proprietário da enorme Fazenda Bela Aliança, em Bofete, mas não a explorava, de modo que a rotina caipira tinha se refeito nela com base no sistema de parceria agrícola. Em 1948 Edgard resolveu explorá-la e foi para lá, nela morando até mais ou menos 1960, quando mudou para Botucatu. Eu estava estudando desde 1946 certas manifestações da cultura rural e fui passar um tempo com ele. Colhi muito material, que me levou a mudar de rumo, deixando de lado as manifestações folclóricas que me interessavam inicialmente e focalizando os meios de vida. Em 1954, ele já casado com a linguista Flávia de Barros Carone, voltei lá por mais de um mês a fim de completar e retificar o material. Edgard me ajudou muito e devo a ele bastante coisa do que pude fazer.

JU – Como era Edgard Carone no convívio?

Antonio Candido – Como disse, sempre fomos amigos íntimos. Depois que veio de Botucatu para São Paulo, em meados dos anos de 1960, costumava ir à nossa casa todos os domingos pela manhã. Além disso, mesmo quando morava fora e vinha aqui, nos encontrávamos para longas caminhadas pela cidade, indo ao cinema, almoçando e jantando nos mais variados restaurantes. Só nos últimos anos esse ritmo diminuiu, porque passei a sair pouco e ele teve problemas de saúde. Mas vinha almoçar em nossa casa pelo menos uma ou duas vezes por mês. Foi um companheiro leal, afetuoso e dedicado por mais de meio século. Conversávamos muito sobre os assuntos do seu interesse. Ele era uma fonte inesgotável de informação, conhecendo nos menores detalhes os fatos e a bibliografia.

JU – Qual era a posição política de Edgard Carone e como ela influiu nos seus trabalhos?

Antonio Candido – Edgard era marxista e muito politizado, mas nunca pertenceu a nenhum partido, o que não impediu que fosse preso no tempo da ditadura militar. A sua única militância regular durou poucos meses, em 1945, na pequena União Democrática Socialista, agrupamento inspirado por Paulo Emilio Salles Gomes. Ali fomos companheiros, mas ele não nos acompanhou quando entramos pouco depois para a Esquerda Democrática, que em 1947 mudou o nome para Partido Socialista Brasileiro, fechado em 1965. Creio que sofreu três influências decisivas: a de seu irmão mais velho, Maxim Tolstói Carone, militante comunista de corte stalinista, como era normal na época; a de Azis Simão e a de Paulo Emilio. Azis ficou cego e durante anos Edgard foi seu companheiro dedicado, lendo para ele, acompanhando-o a conferências e eventos, ouvindo aulas na Faculdade de Filosofia e se beneficiando da sua capacidade excepcional de análise e reflexão. Azis era um socialista democrático fortemente anti-stalinista, com muitas amizades entre os trotskistas. Paulo Emilio, naquela altura, idem, de maneira que Edgard, apesar de simpatizante do Partidão, sempre foi aberto e não discriminou os seguidores de outras correntes na esquerda. O fato de ser marxista o levou não apenas a estudar a nossa história contemporânea com forte influência dessa orientação, mas a se interessar pelo estudo dos partidos de esquerda, do movimento operário, da economia. Mais para o fim da vida manifestava simpatia pelo PCdoB, em cuja imprensa publicou trabalhos.

Lançamento do Instituto Maurício Grabois (IMG) 1986, na sede do PCdoB em São Paulo. João Amazonas de gravata, Dynéas Aguiar ao microfone e Edgard Carone de branco. [foto Wilson Mazza]

Fonte: Jornal da USP