20 ANOS SEM CLÓVIS MOURA – O falecimento de Clóvis Moura em 23 de dezembro de 2003 foi de impacto imenso no movimento social brasileiro, sobretudo no movimento negro. A sociologia brasileira perdeu um de seus mais criativos intelectuais. O Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois rende homenagem a este que foi o autor das principais elaborações que baseiam as lutas antirracistas no Brasil atual. Este artigo foi publicado na Revista Brasiliense nº 16 de março/abril de 1958. É um resumo de alguns pontos levantados no clássico “Rebeliões da Senzala” que foi lançado no ano seguinte.

Clóvis Moura

Gravura que representa a revolta dos Malês, em Salvador (1835)

A última grande revolta de escravos da Capital baiana e a que obteve maior ressonância histórica foi – sem sombra de dúvidas – a de 1835. Dirigida por escravos Nagôs, englobará, contudo, entre seus dirigentes, negros de diversas outras “nações” africanas, principalmente Tapa. Demonstrará que os escravos já haviam sedimentado um certo nível organizativo e assimilado uma tradição de luta contra seus senhores, através do longo rosário de lutas que foi levantado durante o transcurso da primeira metade do século XIX.

É verdade que ainda não possuímos – nem era logicamente possível nas condições em que se encontravam – um programa político. A única consigna capaz de uni-los era, segundo pensamos, a conquista da liberdade, o fim do cativeiro. Procuraram, deste modo, tirar das lutas passadas que se sucederam na Província, o máximo de ensinamentos “a fim de matarem todos os brancos, pardos e crioulos”[1].

A revolta dos escravos baianos de 1835, em consequência, não será uma eclosão violenta e espetacular apenas, surgida de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido, mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo – fase obscura de aliciamento e preparação – sem a qual não se poderá compreender as proporções que alcançou em uma das principais províncias do Império.

O período organizativo da revolta que precedeu sua eclosão ainda não foi estudado com o interesse que o assunto merece. Nossos historiadores se interessam mais pela fase heroica do movimento, a luta de rua, sua parte dramática, desprezando o problema de como a revolução foi preparada.

Derrotada a última tentativa dos escravos, chefiada pelos Nagôs (1830), procuraram seus líderes se reorganizar e iniciar uma série de preparativos objetivando reiniciar a luta, reagrupar seus membros e dar início a nova revolta. Além das organizações existentes, constituídas de grupos de escravos que se reuniam regular e secretamente em vários pontos da Cidade do Salvador, como veremos mais adiante, criaram os escravos um “Clube”, também secreto, que funcionava na Barra (Vitória). Esse “Clube” ficava localizado nos fundos da casa do inglês de nome Abrão e exerceu um papel dos mais importantes na estruturação e deflagração do movimento. Era uma casa de palha construída pelos próprios escravos para suas reuniões[2]. Seus cabeças mais ativos eram os escravos Nagôs: Diogo, Ramil, James, Cornélio, Tomás e outros. Reuniam-se regularmente para discutirem juntos os planos da insurreição, muitas vezes conjuntamente com elementos de outros grupos do centro da cidade e de negros de “saveiros” de Santo Amaro e Itaparica com quem tinham contato e contavam para o êxito do levante.

Esse “Clube” funcionara ativa e regularmente desde muito antes da insurreição. No mês de novembro do ano anterior à deflagração da revolta armada, já havia contra ele denúncia feita pelo Inspetor de Quarteirão Antônio Marques ao Juiz de Paz do Distrito. Dirá o Inspetor, em depoimento, que “no mês de novembro do ano passado conhecera os escravos Diogo, Daniu, Jasmer e João, do inglês Abrão” e que por acaso a testemunha ali chegou como Inspetor “e que tudo tinha participado vocalmente ao Juiz de Paz”[3]. Os membros do “Clube” possuíam um anel que os identificava e, pelo menos no dia do levante, vestiam-se de branco. Havia no “Clube” um escravo chamado Tomás que ensinava aos demais a escrever (certamente em caracteres arábicos): “escravo de Vulcherer cabeça do Clube mestre que ensinava a escrever”[4]. Havia, também, um capitão. Os documentos mostram que esse “capitão” era o negro Sule, pertencente ao grupo do centro da cidade – o de Belchior – mas, provavelmente, tomando parte nas discussões e deliberações do “Clube”. Os escravos, nos seus primeiros depoimentos, referem-se a outro que “também chama-se capitão” e que “se sentava no canto da Caldeira do Largo da Victória”[5], sobre o qual nenhuma outra informação encontramos.

Outro lugar importante de reuniões era a casa do preto forro Belchior da Silva Cunha, segundo depoimento da preta velha Teresa. Ali encontravam-se os elementos mais importantes entre os conspiradores para discutirem detalhes dos seus planos. Na casa de Belchior aparecia amiudamente, com outros negros um que se chamava Gaspar da Silva Cunha, que também trabalhava na organização do levante. Nesse local faziam-se “ajuntamentos umas vezes de dia e outras de noite”[6]. Recebiam os escravos que se reuniam na casa de Belchior – ainda segundo depoimento da escrava Teresa às autoridades – a visita amiudada de um mestre que “he escravo de um homem que faz fumo” e “mora junto a igreja do Guadalupe e he de Nação Tapa”. Esse escravo – esclarece por fim a escrava – era conhecido “pelo nome que possuía e que he Sanim por que é como ele (Belchior) o trata por não saber o nome que ele tem em terra de branco” e mais que os papeis apreendidos pela polícia eram feitos “pelo mesmo mestre”, “o qual negro quando está no brinquedo fala também língua de Nagou e he velho com alguns cabelos brancos”[7]. Esse mestre não é outro senão Luís Sanim, um dos líderes mais destacados e diligentes do movimento. Na casa do forro Belchior reuniam-se os principais cabeças do levante, traçando planos e discutindo detalhes com elementos do recôncavo e de outras partes da cidade. Na delação da preta Tapa, Teresa encontramos os nomes de alguns deles: Ivá, Mamolin, Ojou e inúmeros outros.

Será ainda ponto de reunião a casa do alufá Pacífico Licutã que, no Cruzeiro de São Francisco, pregava abertamente aos demais escravos a necessidade da insurreição. Esse negro – um dos mais influentes dentre os líderes da revolta – sabia ler e escrever, ensinando aos demais os mistérios e rezas malês. Tendo sido depositado por penhora na cadeia, por dívida do seu senhor aos frades Carmelitas, dali assistiu impotente o desenrolar dos acontecimentos, tendo os escravos sublevados tentado libertá-lo durante a luta, sem o conseguir. O carcereiro dirá que “tendo sido Licutã recolhido em dias do mês de novembro, logo no dia seguinte teve muitos negros e negras que o fossem visitar e as visitas continuaram todos os dias e todas as horas”. Prova incontestável de seu prestígio frente aos demais escravos que se preparavam para a luta. Seus companheiros haviam mesmo reunido a quantia necessária para libertá-lo, não o fazendo em consequência da recusa do seu senhor.

Manuel Calafate será outro líder do movimento. Sua casa será o centro de reunião dos mais importantes. Na “loja”[8] do segundo prédio da Ladeira da Praça, onde morava, reunir-se-ão em conspirata todos os escravos das imediações. De lá partirão os primeiros tiros da insurreição, após denúncia feita contra eles. Além de Calafate, atuarão ao seu lado os escravos Aprígio e Conrado. Depois de sufocado o movimento ali será encontrada e apreendida farta quantidade de material: livros, tábuas, etc. Idêntico movimento encontramos na casa do haussá Elesbão Dandará. Esse preto morava no Gravatá mas, para melhor aliciar adeptos, alugou uma tenda no Beco dos Tanoeiros, onde reunia os discípulos e os instruía. Difundia papéis com rezas muçulmanas, tábuas com inscrições sediciosas, rosários malês, etc. Era, também, como Luís Sanim, mestre em sua terra e ensinava aos negros os preceitos e princípios do Islã.

Ainda tinham os escravos outro local muito importante para reuniões: era a porta do convento das mercês. Os negros que pertenciam aquele convento, dirigidos pelos escravos Agostinho e Francisco, juntavam-se aos de outras procedências, discutindo métodos de se libertarem. Segundo depoimento da época, surgido durante o processo contra um dos implicados, reuniam-se sempre pela manhã. Também atrás da rua do Juliano, na casa de um preto chamado Luís, os escravos faziam ponto de ajuntamento. Eram ainda locais concorridos de reuniões dos escravos: a casa do preto Ambrósio, de “nação” Nagô, residente ao Taboão, onde a polícia encontrará, nas suas buscas realizadas após o movimento, “papéis com escritos em caracteres arábicos”; a casa do crioulo José Saraiva e da preta Engrácia, onde foram descobertos papéis escondidos dentro de uma caixa; a “loja” da casa do inglês Togler, onde residiam negros forros, em cujo local foram achados manuscritos suspeitos; a casa do inglês Malon, onde a polícia descobrirá “vestimenta, tábuas para escrever e penas particulares dos ditos pretos e uma faca de ponta”[9]. Havia, ainda, reuniões na casa do inglês Melors Russel, onde foram apreendidos inúmeros objetos. Numa “loja” do Largo da Vitória eles também se reuniam.

Além desses lugares principais ou pelo menos mais vulneráveis à repressão policial depois da insurreição, e de inúmeros outros que certamente existiram mas que é dificílimo ou quase impossível localizar, havia, certamente, em cada senzala ou reunião de escravos um desejo latente de rebelião. Havia, ainda, uma casa no Beco do Grelo onde eles se reuniam para deliberarem secretamente. Lá serão presos alguns escravos logo depois de sufocada a revolta.

Outras organizações e pontos de reuniões existiam ainda em diversos bairros da capital baiana ou no recôncavo. Do recôncavo, aliás, esperavam os escravos uma participação ativa dos seus companheiros que moravam naquela zona. Além disso, presumivelmente, mantinha ligações com escravos pernambucanos. No depoimento do escravo João há referências a um outro chamado Antônio, “vindo ultimamente de Pernambuco” e que participou da revolta. Como no citado depoimento encontramos os nomes dos senhores de todos os outros, menos do de Antônio, podemos levantar a hipótese de que ele se encontrava como elemento de ligação entre os escravos de Pernambuco e Bahia.

Podemos traçar, de um modo geral, o panorama, a rede organizativa dos escravos: dois grupos principais orientavam e dirigiam o movimento. O primeiro era o que se reunia na cidade, com ramificações em diversos lugares – Ladeira da Praça Guadelupe, Convento das Mercês, Largo da Vitória, Cruzeiro de São Francisco, Beco do Grelo, beco dos Tanoeiros, e etc. – dirigido por Dandará, Licutã, Sanim, Belchior, Calafate e outros – e o segundo formado por escravos pertencentes ao “Clube” da Barra, sob a direção de Jamil, Diogo, James, etc., certamente com ligações com outros grupos que não conseguimos identificar em nossas pesquisas. Esses dois núcleos principais, orientadores do movimento, mantinham-se em constante contato. O escravo João, no depoimento a que já nos reportamos, afirma que o de nome Sule (amásio de Guilhermina, delatora da revolta e que pertencia ao grupo de Belchior) reunia-se também no “Clube” da Barra. Diz o depoimento que houve certa vez um “jantar onde se reunião todos os escravos nagôs dos ingleses e muitos de saveiros… da cidade outros de Brasileiros, os quais he impossível declarar seus nomes porém que se recorda de um escravo de nome Diogo” e “outro de nome Sule que em sua terra he Capitão delles”[10].

Esses dois grupos principais manterão, por outro lado, ligações com os escravos do recôncavo baiano. Os negros de Santo Amaro, de Itaparica e de outros pontos vinham reunir-se aos da Cidade do Salvador para discutirem em conjunto os detalhes mais importantes do movimento. Aliás, será por conversa de savereiros que se referiam à presença, na cidade, de escravos vindos de Santo Amaro para uma conspiração que a escrava Guilhermina conseguirá a pista e denunciará a insurreição.

Ainda no plano organizativo, encontraremos uma particularidade importante: os escravos não se descuidarão do problema financeiro. Criarão um fundo para as despesas do movimento. A ideia desse fundo foi de Luís Sanim e, ao que parece, era executada por Belchior e Gaspar porque, logo depois de suas prisões – foram recolhidos ao Forte do Mar – ao dar a polícia busca em sua encontrou a quantia de setenta e nove mil e quatrocentos e oitenta réis. A preta Agostinha, respondendo a pergunta de seus inquiridores, afirmou que aquela importância pertencia a Belchior e “seus camaradas do Forte do Mar”[11]. Como sabemos, esse fundo monetário era para recolher “meia pataca para dali retirarem vinte patacas para comprar roupas, sendo o excedente destinado a pagar semana a seus senhores ou para se forrarem”.

O fundo monetário para o movimento parece que não nasceu nos dias imediatamente anteriores ao levante: de há muito vinham os escravos amealhando penosamente dinheiro para as despesas do levante. Na revolta sufocada de 1844, ainda existirá esse fundo, certamente pela eficiência demonstrada durante o período da presente luta.

O plano militar foi elaborado antecipadamente e suas conclusões distribuídas entre os principais responsáveis por sua execução. Seria o seguinte, em resumo: partiria um grupo da Vitória, comandado pelos chefes do “Clube”, “tomando a terra e matando toda a gente da terra de branco”, rumando para Água dos Meninos e, em seguida, marchando para cabrito, “atrás de Itapagipe”, onde se reuniram às demais forças e se juntariam aos escravos dos engenhos. Essas ordens foram também transmitidas em proclamações dirigidas pelos líderes aos demais negros com a assinatura de um que se intitulava Mala Abubaker[12].

Esse plano não foi rigorosamente executado, talvez em consequência da participação dos acontecimentos e consequente precipitação do início da luta em face da delação. Assim, não puderam contar com o fator surpresa, o que acarretou uma enorme desvantagem para eles. A negra Guilhermina, inteirada – através de conversa de alguns implicados na insurreição, entre os quais o próprio amásio – do que se tramava, apressou-se em denunciar o plano dos escravos às autoridades. Fez chegar ao conhecimento do Juiz de Paz do Distrito a notícia do levante e sua data, fato que foi imediatamente comunicado ao Presidente da Província. Sabedor de fatos tão graves tomou imediatamente todas as medidas repressoras: reforçamento da guarda, etc. A cidade ficou em pé de guerra. O chefe de polícia partiu imediatamente para o Bomfim, com o fito de evitar a junção dos escravos insurretos com os dos engenhos próximos.

Vendo que tinham de antecipar a revolta, lançaram-se à carga de qualquer maneira: a situação não comportava mais esperas e na altura em que o movimento se encontrava não era mais possível recuar. As batidas se sucederam nas casas dos escravos.

Na noite de 24 de janeiro estourou o movimento armado. Os primeiros tiros partiram da casa de Manuel Calafate, na “loja” da segunda casa da Ladeira da Praça. “Sob a denúncia de que na loja da segunda casa da Ladeira da Praça estava reunido grande número de africanos – comenta Nina Rodrigues – foi esta cercada e, apesar das evasivas coniventes do pardo Domingos Martinho de Sá, principal inquilino do prédio, as autoridades penetraram nele e dispunham-se já às 11 horas da noite a dar minuciosa busca, quando de súbito se entreabriu a porta da loja e dela partiu um tiro de bacamarte, seguido da irrupção de uns 60 negros armados de espadas, lanças, pistolas, espingardas, etc., e aos gritos de mata soldado”[13].

De atacados, dentro da casa de Manuel Calafate, passaram à franca ofensiva. Após isso, dirigem-se para a ajuda, onde tentam arrombar a cadeia a fim de libertar seus presos, principalmente Pacífico Licutã. Não conseguido seu intento, o grupo de escravos marchou para o Largo do Teatro, onde travou combate com a polícia, derrotando-a mais uma vez. Tinham, com essa vitória, aberto caminho para suas forças até o Forte de São Pedro. Vendo ser impossível tomar o forte (de artilharia), os escravos vindos do Largo do Teatro tentarão estabelecer junção com outra coluna que vinha da Vitória, sob o comando dos dirigentes do “Clube” da Barra que já haviam conseguido unir-se, então, ao grupo do Convento das Mercês. Os escravos da Vitória atravessarão o fogo do forte e operarão a junção planejada. Em seguida a essa manobra abrirão caminho para a mouraria, empenhando-se novamente em combate com a polícia. Perderão no combate dois homens. Continuando, rumarão para a Barroquinha, de onde marcharam mais uma vez para a Ajuda, certamente com o objetivo de libertar Pacífico Licutã. Daí estabeleceram uma mudança de rumo na sua marcha: desceram para a Baixa dos Sapateiros, seguindo pelos coqueiros. Saíram na Água dos Meninos, na “Cidade Baixa”, onde travaram o combate definitivo com a polícia, de grandes proporções.

De parte das forças legais coube o comando ao próprio chefe de polícia que já havia recolhido as famílias à Igreja do Bonfim. Não sabemos os nomes dos chefes da parte dos insurretos.

Os escravos marcharam em grande número para o ataque, na madrugada do dia 25. Investiram sobre o forte de cavalaria com um heroísmo reconhecido pelos próprios adversários. Não lograram êxito, contudo. Logo na primeira investida foram asperamente atacados pelas tropas do governo. O chefe de polícia ordena à cavalaria que carregue sobre os escravos que caem varados também pelas balas de uma força de infantaria, postada nas janelas do forte. Verdadeira carnificina. As posições mais vantajosas dos legais, além da superioridade de armamentos, fizeram com que os insurretos fossem definitivamente batidos. Perderam a vida cerca de quarenta escravos. Inúmeros foram feridos e outros pereceram afogados ao tentarem a fuga lançando-se ao mar próximo[14]. Estava praticamente sufocada a grande revolta de escravos da capital baiana.

Os líderes, como a maioria dos participantes, portar-se-ão dignamente. Pacífico Licutã já se encontrava preso quando a ordem de insurreição foi dada: recolhido à cadeia da ajuda de onde, como vimos, seus companheiros tentam arrancá-lo por duas vezes. Ao saber do fracasso do movimento mostrar-se-á abatido, vendo entrarem seus companheiros prisioneiros, após a revolta.

Além dele houve, porém, inúmeros escravos que se destacaram não só na parte organizativa da luta como, também, nas refregas de rua: Higino, Cornélio, Tomás e muitos outros. Os principais dirigentes do “Clube da Barra foram quase todos detidos pelas autoridades”, uns com “as alças sujas de sangue”, outros “com uma bala atravessada na perna”, segundo informações da época. Luísa Mahin, escrava Jeje mãe de Luiz Gama participou do movimento. Sobre sua atuação, porém, não encontramos referências nos documentos que consultamos.

Derrotados os escravos no combate decisivo, iniciou o governo brutal repressão. Uma série de prisões foi efetuada: 281 ao todo, entre escravos e libertos. O chefe de polícia – o mesmo que esmagara militarmente o levante – em ofício expedido no dia posterior ao movimento, ordenará uma devassa completa em “todas as casas de lojas pertencentes a Pretos Africanos dando rigorosa busca para a descoberta de homens, e… ficando na inteligência que nenhum deles goza direito de cidadão ou privilégio de estrangeiro[15]. A cidade ficou sendo patrulhada dia e noite. O chefe de polícia Francisco Gonçalves Martins baixará portaria no dia seguinte, dizendo que “vossa senhoria chamará a turma (dirigia-se ao Juiz de Paz do Primeiro Distrito da Vitória) os cidadãos do seu distrito que julgar necessários forçando-os a obediência se o patriotismo ou o interesse da própria conservação os não convencer em se prestarem” e que “nas noites de hoje em diante deverão haver inúmeras patrulhas de cidadãos e grande vigilância das autoridades policiais”[16]. Os escravos só podiam sair à rua com ordem escrita dos seus senhores, dizendo para onde iam. Todas as casas de negros escravos e forros foram vasculhadas.

O juiz de paz do Distrito da Vitória entrará em atividade com uma eficiência que poderá ser demonstrada facilmente pelo número de prisões que efetuou. Os principais cabeças do “clube” já se encontravam presos no dia posterior ao movimento. Vinham notícias em ofício remetido ao chefe de polícia em que dizia haver aplicado “maior diligência” e capturado os insurgentes do seu distrito, principalmente os “cabeças de clubes que se juntavam na casa do inglês Abrão”. Eram indicados como cabeças os escravos Diogo, Ramil, James, João, Carlos, todos presos com “calças com sangue”. Prendeu ainda Luís, que entrou em casa somente na manhã do levante “sujo de pólvora com anel no dedo”; Tomás, “cabeça do clube, mestre que ensinava a escrever”, encontrado com “marca de sangue na calça sem ter ferimento algum” e José que se recolhera com uma bala na perna, além de inúmeros outros detidos “para averiguações”, tendo sido recolhidos “huns na Fortaleza de São Pedro outros no Forte do Mar”[17].

Depois de julgados foram quase todos condenados. Quanto aos líderes: de Elesbão Dandará nada conseguimos apurar. Segundo Nina Rodrigues deve ter morrido em combate, ideia que Edison Carneiro endossa sem apresentar fatos novos. Manual Calafate, ao que parece, nada sofreu. O mestre Luís Sanim foi condenado à morte, mas teve a pena atenuada para seiscentos açoites. Pacífico Licutã, apesar de preso quando estourou a revolta, foi condenado a seiscentos açoites, também. Os líderes do “Clube” da Barra foram rigorosamente punidos: Antônio, escravo haussá, foi condenado a quinhentos açoites; Higino sofreu pena de quatrocentos; Tomp a de quinhentos; o Nagô Luís foi castigado com duzentos açoites e Tomás “o mestre que ensinava a ler” a trezentos açoites em praça pública “aplicado interpoladamente, como manda a lei”[18].

Houve ainda aqueles que foram condenados à morte: cinco foram os que pagaram com a vida, por não quererem viver no cativeiro. No dia 14 de maio de 1835 eram fuzilados. Foram eles: os libertos Jorge da Cunha Barbosa e José Francisco Gonçalves e os escravos Gonçalo, Joaquim e Pedro[19]. Condenados à forca não encontrou o governo carrascos que os executassem. Tiveram de ser fuzilados, com as honras de soldados.

Uma coisa surpreendente é a posição dos escravos frente aos seus acusadores. Quase ninguém se acovarda, delata, acusa. Negam conhecer os companheiros de insurreição. O nagô Joaquim diz desconhecer até o seu companheiro de residência. O nagô Henrique, gravemente ferido e já sentindo os sintomas do tétano que o mataria horas depois, impossibilitado de sentar-se, já presa de convulsões, declarou que não conhecia os negros que o convidaram a tomar parte na insurreição e que mais não dizia por não ser gente de dizer duas coisas. “O que disse está dito até morrer”.

O número de escravos mortos durante o levante foi bastante elevado. Talvez tenha chegado à casa dos cem: uns em combate ou afogados, outros nas prisões vítimas do tétano e dos maus tratos, além dos que foram condenados à morte e executados[20].

Da parte das forças do governo as baixas foram muito menores. A superioridade de armas dava-lhes maiores meios de ataque e defesa. Nina Rodrigues assinala a morte de dois militares: um sargente da Guarda Nacional e um soldado de artilharia que “lutou com raro valor, matando antes de morrer um negro e ferindo diversos”. Só encontramos referências nos documentos que compulsamos à morte de um: o Sargento Tito Joaquim da Silva Machado. Quanto aos feridos, no auto de exame de corpo de delito feito pelo cirurgião Manuel José Bahia nos soldados do Corpo de Artilharia, encontramos referências a três. Certamente que nos autos feitos nos soldados da cavalaria que travaram o combate final deve haver um número bem maior. Infelizmente não encontramos esses autos. Além desses feridos e mortos houve também civis que foram atingidos mortalmente. Aliás, o Promotor Público dirá em libelo acusatório contra o escravo Cornélio, condenado a seiscentos açoites, estar ele implicado na insurreição “do que resultou a morte e ferimentos de muitos cidadãos.”[21]


[1] Manuscrito existente no Arquivo Público da Bahia.

[2] A casa de palha para reunião foi construída pelos escravos Jaime e Diogo. Dirá o escravo João, em depoimento, que “a casa de palha foi feita pelos seus parceiros Jaime e Diogo a fim de se reunirem (manuscrito do Arquivo Público da Bahia.)

[3] Manuscrito existente do Arquivo Público da Bahia.

[4]  Idem, idem.

[5] Talvez que esse “capitão fosse apenas um dos chefes do “canto”. Como se sabe, os “cantos” tinham seus chefes que eram aclamados “capitães”. Há, contudo, um documento no Arquivo Público da Bahia que se refere a “um capitão escravo de Antônio de Jesus, residente no Largo da Vitória onde morava com “alguns forros que viviam de carregar cadeiras”. Seria o mesmo?

[6] Manuscrito do Arquivo Público da Bahia.

[7] Idem, idem.

[8] “Loja” é termo empregado aqui como sinônimo de porão, forma como é designada, na Bahia, esse tipo de moradia.

[9] Manuscrito do Arquivo Público da Bahia.

[10] Idem, idem.

[11] Idem, idem.

[12] Rodrigues, N. – “Os Africanos no Brasil”, Rio, 1945, p. 107.

[13] Ob. Cit. p. 95.

[14] Segundo João Dornas Filho, participou da luta contra os escravos a guarnição da “Fragata Baiana”, que se encontrava fundeada no porto da Cidade do Salvador. Se verídica a afirmação, muito deve ter contribuído essa unidade de nossa Marinha para o extermínio dos escravos sublevados. (Ver João Dornas Filho: “A escravidão no Brasil”, Rio, 1939 p. 125.).

[15] Manuscrito do Arquivo Público da Bahia.

[16] Idem idem

[17] Idem idem

[18] Idem idem

[19] O escravo Pedro, ao terminar o levante, foi encontrado com fraturas em ambas as pernas produzidas por balas. Pertencia ao inglês Bender e era do “Clube” da Barra.

[20] Inicialmente foram condenados à morte. Depois de indultados alguns pelo regente ficou reduzido a cinco o número dos que foram executados.

[21] Este trabalho é um capítulo do livro “Rebelião das Senzalas” que o autor lançará brevemente.