Carlos Danielli, dirigente do PCdoB
Fernando Garcia
No último 7 de janeiro o Jornal Nacional noticiou a resolução do Conselho Nacional de Justiça que possibilita a correção da causa mortis nos atestados de óbito dos mortos pela ditadura militar. Entre os casos citados pelo periódico está Carlos Danielli, dirigente do PCdoB. O mesmo JN noticiou a morte do Danielli em 5 de janeiro de 1973.
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Nascido em 14 de setembro de 1929, Carlos Nicolau Danielli, era neto de imigrantes italianos e filho de operários. Seu pai, Paschoal Elídio Danielli, trabalhava na Companhia Cantareira e Viação Fluminense na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, era dirigente sindical e militante comunista. Danielli, desde muito jovem, o acompanhava à sede do sindicato e a reuniões; e por isso foi incorporado como colaborador da administração do sindicato ainda na adolescência. Essa convivência com sindicalistas, trabalhadores e comunistas levou Danielli a participar das manifestações que pediam a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra o eixo nazifascista. Logo depois, inevitavelmente, aderiu ao Partido Comunista do Brasil, ao qual dedicaria toda sua atividade, até a sua morte — sob tortura, em 1972.
A adesão ao PC do Brasil teve influência direta de seu pai, que havia sido eleito deputado estadual em 1946, pelo próprio Partido Comunista. O combativo Paschoal teve a oportunidade de levar a voz e as demandas dos trabalhadores para a Assembleia Legislativa do estado da Guanabara. A partir de 1947, Carlos Danielli, se torna um dirigente da União da Juventude Comunista, aos 18 anos, e em 1950 passa a viajar todo o país para construir células da UJC. Participa com um artigo da Tribuna de Debates — prática tradicional em que os militantes enviam artigos para comentar e debater o documento congressual — do 4º Congresso (1954) do PC do Brasil, onde chama a atenção para as potencialidades da juventude na construção de uma ampla frente democrática de libertação nacional. Ao fim desse Congresso, Carlos Danielli foi eleito para o Comitê Central do Partido Comunista do Brasil. Dirigiu as campanhas contra a participação de soldados brasileiros na Guerra da Coreia e foi preso transportando material partidário em 1956 – quando foi alcunhado de “pombo correio vermelho” pelos jornais burgueses.
Os novos ventos teóricos e políticos que vinham da URSS após o 20º Congresso do PCUS (1956), influenciaram a guinada da linha de atuação através da “Declaração sobre a política do PCB”, que ficou conhecida como “Declaração de Março”, de 1958. Seguiu-se a mudança do corpo dirigente adequando-o para a nova política. Os que tinham maior oposição à nova linha passaram a ter encargos menos importantes. E em 1960, o PC do Brasil passa por seu 5º Congresso com um documento base que norteou todas as discussões. Na Tribuna de Debates do Congresso o primeiro a se manifestar foi Maurício Grabois com “Duas concepções, duas orientações políticas” em que afirmava ser “oportunista” a “Declaração de Março de 1958”, e pregar a “via pacífica”[1]. Danielli também se manifestou, no artigo “Sobre as teses para discussão”, onde observa que a: “Declaração, modificando não só a tática do Partido, mas também sua estratégia, foi aprovada em condições particulares, sem um amplo debate para fazê-lo, mesmo entre os dirigentes”[2]. Tanto Grabois, quanto Danielli, e outros que formavam uma linha crítica à tese ao 5º Congresso receberam diversas respostas e replicaram. Depois do 5º Congresso, Danielli foi enviado para a cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, onde foi ser redator do jornal Folha Capixaba. E também trabalhava como professor particular, para poder sobreviver. Neste momento vai para a Cuba revolucionária onde dirige uma delegação do PC do Brasil, entre março e abril de 1961, convicto opositor às críticas sobre os caminhos e a tese de transição pacífica ao socialismo.
Em agosto foi publicado em suplemento do jornal Novos Rumos um manifesto, um programa e um estatuto diferente daqueles aprovados no congresso do ano anterior; e na capa do jornal a principal manchete: “Prestes vai pedir registro do Partido Comunista Brasileiro”[3]. O impacto foi grande, pois até dias antes não era esse o nome e nem o conteúdo programático daquele partido. Um conjunto de militantes e quadros, inconformados com a decisão da direção, subscreveram uma carta intitulada “Em defesa do Partido”, alcunhada “Carta dos 100”, pois continha por volta de uma centena de assinaturas — uma delas de Carlos Danielli — em que apontavam entender como uma “violação frontal dos princípios partidários, aberta infração das decisões do 5º Congresso, ferem a disciplina e atingem a própria unidade do Partido.”[4] Ao fim, pediam a substituição dos documentos ou a convocação de um novo congresso. Não houve uma resposta da direção àquele conjunto de comunistas inconformados. As Cadernetas[5] de Luiz Carlos Prestes mostram que o caminho não era tratar a diferença sob o centralismo democrático, mas alijar.
Na primeira edição do ano de 1962 do Novos Rumos, uma nota de 3 de janeiro, intitulada “Em defesa da unidade do movimento comunista”, com chapéu “A propósito das atividades do grupo fracionista” indica que um grupo “encabeçado por João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar” do qual também fazem parte “José Duarte, Ângelo Arroyo, Walter Martins (Pepe), Calil Chade, Carlos Danielli e Lincoln Oest”[6] estavam expulsos do Partido Comunista Brasileiro. Na edição seguinte do mesmo jornal, Danielli é citado nominalmente “expulso das fileiras comunistas”[7].
Serão estes quadros que prepararão uma reunião, chamada 5ª Conferência Nacional Extraordinária do PC do Brasil, que se realizou em São Paulo, em 18 de fevereiro de 1962. Aprovaram a reorganização do Partido Comunista do Brasil — fundado ente 25 e 27 de março de 1922 —, um Manifesto-Programa, um estatuto e um novo Comitê Central; Carlos Danielli era um de seus membros. A reorientação era para uma nova compreensão da revolução brasileira e mundial, sem as condicionantes do período anterior. Não era uma oposição à URSS, mas à direção do PCUS sob Krushev e seu grupo; e não ao legado da revolução de 1917 e nem aos feitos da própria URSS. Isso fica explícito onde o documento diz que a “União Soviética marcha para o comunismo e a China popular, até há pouco escravizada, forja uma nova sociedade e constitui um poderoso baluarte da luta conta o imperialismo”. E “Cuba é um exemplo de como um povo oprimido, mas decidido a vencer, pode bater seus algozes e construir uma nova vida.”[8] Este Manifesto-Programa é a principal resolução da reorganização do PC do Brasil, em 1962.
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Um mês após a reorganização: João Amazonas fala na homenagem aos 40 anos do PC do Brasil | Acervo CDM
Com o clima em torno das reformas de base do governo João Goulart, Carlos Danielli percorreu o país para estabelecer em diversos locais o PC do Brasil reorganizado. Em 1963 esteve “em Brasília para acompanha o desenlace da revolta dos sargentos”[9]. Junto com outro dirigente comunista, Dynéas Aguiar, elaborou a retirada dos revoltosos após a derrota militar do levante. Em paralelo, estava sob sua responsabilidade também a produção e distribuição do jornal A Classe Operária que ajudaria em grande medida a divulgação das resoluções e da tática do PCdoB para os antigos comunistas que permaneciam na linha revolucionária e os novos que passavam a conhecer o partido reorganizado.
Com o golpe de abril 1964, Danielli e o PCdoB não tiveram condições de manter o jornal A Classe Operária, que só retomará sua publicação em 1966. A situação exigia a readequação da organização partidária e da tática dos comunistas. Em agosto, Danielli é um dos redatores do documento “O golpe de 1964 e seus ensinamentos”, em que se faz uma análise sobre a queda do governo Jango e do ascenso dos militares golpista que tem validade até os dias de hoje. As modificações táticas foram feitas na 6ª Conferência partidária, em 1966. Foi a primeira grande reunião do PCdoB após o golpe e, sendo assim, necessitava de protocolos de segurança extremamente eficientes. A reunião contou com militantes de diversos estados e ocorreu sem nenhum problema que pudesse colocar em risco os quadros e a própria organização partidária. Aprovaram o documento “União dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da ameaça neocolonialista”. Danielli foi um dos principais organizadores da conferência e um dos redatores do documento final.
Após a 6ª Conferência, Danielli fez uma viagem à China de Mao Tsé Tung, onde conversou com dirigentes e ouviu relatos sobre os feitos da revolução chinesa e o momento era de grande divisão no movimento comunista internacional. O PCdoB pendia para a busca de um caminho revolucionário com características endógenas, ou seja, diferente daqueles adotados desde o auge da Internacional Comunista. Assim, a revolução chinesa e os processos de libertação nacional da África e da Ásia mostravam que os manuais que apregoavam a coexistência pacífica entre o bloco capitalista e bloco socialista não dialogavam com a realidade. Danielli voltou para o Brasil e ajudou a rascunhar um documento que só ficaria completamente pronto três anos depois: “Guerra popular – o caminho da luta armada no Brasil”.
Sob rigorosa clandestinidade, Danielli contribuiu com a construção de uma das três frentes de resistência armada à ditadura militar. Ficou, então, responsável pela análise e estudo da região oeste da Bahia como possibilidade de organizar uma região guerrilheira. Ao mesmo tempo os aparatos de repressão caçavam Danielli e sabiam de parte de suas atividades; como consequência foi publicado no “Diário Oficial da União” em 27 de fevereiro de 1967 a cassação dos direitos políticos de Carlos Danielli por dez anos, assinada pelo presidente Castelo Branco”[10].
Na reorganização, em 1962, o PCdoB tinha menos de quatro centenas de militantes, mas através de sua política sensata e revolucionária angariou diversos grupos de resistentes à ditadura e que tinham a perspectiva do socialismo para o Brasil. Um deles foi uma grande parcela do comitê estadual do PC brasileiro da Guanabara. A conversa decisiva para o recrutamento desses valorosos militantes foi feita por um grupo pequeno de dirigentes, um deles foi Carlos Danielli. Até a morte de Carlos Danielli, em 1972, o PCdoB se tornaria a maior organização da luta armada resistente à ditadura militar.
O PCdoB e outras organizações revolucionárias brasileiras receberam com imensa preocupação o decreto do AI-5. Além da escalada do espírito antidemocrático, a ausência de habeas corpus tornaria a resistência à ditadura ainda mais difícil e mais perigosa. Nesse momento o PCdoB já estava enviando quadros para a região que foi escolhida como a de melhores condições para iniciar o processo da guerra popular no Brasil: a floresta amazônica, mais precisamente às margens do Rio Araguaia, sul do Pará, norte de Goiás, sudoeste do Maranhão.
A atividade de resistência armada do PCdoB não refluiu em nada a atividade política nas cidades através de movimentos gerais contra a ditadura, do movimento estudantil e juvenil, do movimento sindical, com artistas etc. Para essa complexa arquitetura política de campo/ cidade, militar/politica e sob intensa repressão e clandestinidade, os dirigentes do PCdoB dividiram as tarefas e Danielli ficaria tratando das questões da atividade política entre São Paulo e Rio de Janeiro. Junto com ele estariam Pedro Pomar, Lincoln Oest, Luiz Guilhardini e Dynéas Aguiar. Já Maurício Grabois, João Amazonas, Elza Monnerat e Ângelo Arroyo cuidariam da região guerrilheira.
Em novembro de 1971, Danielli – então dirigente da Comissão Nacional de Organização – representou o PCdoB no 6º Congresso do Partido do Trabalho da Albânia e, ao longo do ano de 1972, na volta se inseriu num debate de extrema importância: a incorporação da Ação Popular (AP) ao PCdoB. Uma de suas participações neste debate foi uma conversa de quase uma hora com um dirigente da AP. Essa conversa aconteceu com os dois andando em ruas entre a Avenida Ricardo Jafet e a rua Domingos de Moraes, nos bairros da Vila Mariana e Ipiranga, na capital paulista. O dirigente da AP era de uma geração posterior a de Danielli, seu nome: Duarte Pereira.
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Danielli faz seu pronuciamento no 6º Congresso do PTA em Tirana (1971) | Acervo CDM
A Guerrilha do Araguaia havia iniciado seus combates, após a primeira ofensiva da repressão, em 12 de abril de 1972. A partir daí as perseguições aos quadros e militantes do PCdoB se intensificaram imensamente. Por exemplo, no Rio de Janeiro, fez-se uma verdadeira caça aos integrantes da União da Juventude Patriótica – entidade juvenil ampla antiditadura organizada pelo PCdoB – em que se prendeu e assassinou Lincoln Bicalho Roque, antes já haviam sequestrado e assassinado o jovem estudante Joel Vasconcelos. Em seguida foram perseguidos, presos, torturados e assassinados Lincoln Oest e Luiz Guilhardini, dirigentes históricos do Partido. No seio da militância, ainda, foram presos, torturados centenas de membros do PCdoB.
A clandestinidade de Danielli se passava junto com a família no bairro do Jabaquara na capital paulista. Aos olhos do vizinho aquele senhor que vivia com sua esposa Marilda e os filhos; era um trabalhador comum. Essa fachada permitiu, inclusive, ajudar a uma família vizinha com os procedimentos do enterro de um parente – Danielli se responsabilizou por todas as demandas funerárias. Isso reforçou os laços de amizade com a vizinhança.
No natal de 1972, Danielli participou da festa familiar e cumprimentou vizinhos. Na manhã do dia 27 de dezembro se despediu da esposa dizendo que faria uma viagem rápida, e que voltaria dois dias depois. Marilda, Danielli e os filhos não passaram o réveillon juntos.
No dia 28, sob complexo e custoso plano, com equipes ligadas aos órgãos de repressão, Danielli foi emboscado num ponto na Vila Mariana, bairro da capital paulista. No rádio comunicador dos meganhas, festejavam: “Pegamos um peixe grande!”. Na mesma operação foram presos os militantes do PCdoB Cesar Telles, Maria Amélia (Amelinha) e Criméia Almeida, que, grávida, acabava de chegar da região guerrilheira do Araguaia com notícias e documentos. A recepção da “tigrada” aos presos foi com socos, pontapés, gritos e coronhadas. As primeiras horas de prisão são as mais nobres, pois localização de “pontos” e “aparelhos” ainda podem estar valendo. Sendo assim, os primeiros momentos são de “amaciamento”, no linguajar dos torturadores do DOI-Codi. Um de seus torturadores respondia por Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Durante a tortura, Danielli tem um diálogo com seu torturador que revela sua têmpera. Interrogado sobre quem seria o responsável, onde estariam as máquinas, como era o esquema de distribuição do jornal A Classe Operária, Danelli teria dito “É sobre o jornal A Classe Operária que você quer saber? Pois sou quem tem as informações e não direi nada!” Foram dias de intensa tortura e, ao final, já com o corpo arrebentado, escreveu com o próprio sangue na parede da cela: “Este sangue será vingado”. Mensagem que foi lida por diversos presos que estiveram ali.
Em 5 de janeiro de 1973, o Jornal Nacional, da Rede Globo noticiou, sob a voz de Sergio Chapelin: “Morto em São Paulo o terrorista Carlos Nicolau Danielli”[11]. Os jornais impressos dos dias seguintes informavam que Danielli havia sido morto em um tiroteio. A ditadura tentava se descompromissar com o assassinato, como fez com todas as suas vítimas.
A resolução do Conselho Nacional de Justiça que notifica cumprimento dos cartórios de todo país a corrigirem a causa da morte das vítimas da ditadura. A certidão de óbito de Carlos Nicolau Danielli referia-se a “anemia aguda traumática” como causa da morte. Com a resolução passa a informar que a morte dele não foi natural e sim violenta, causada pelo Estado.
Que o Brasil siga a marcha democrática destruindo o entulho ditatorial. Que nunca se esqueça, que nunca mais aconteça!
Carlos Danielli, presente!
Notas
[1] PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL, 2000, p. 13-22.
[2] Novos Rumos, nº 61, de 29 de abril a 5 de maio de 1960, p. 12.
[3] Novos Rumos, nº 127, de 11 a 17 de agosto de 1961.
[4] PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL, 2000, p. 23.
[5] As Cadernetas de Luiz Carlos Prestes são suportes de suas anotações manuscritas particulares — feitas para seu próprio uso e não para outros lerem ou ser publicado —, sobretudo da primeira metade dos anos 1960, que foram arbitrariamente sequestradas pela repressão instalada no Brasil após o golpe militar de 1964; apoiado pela CIA. Foram copiadas pelo Serviço Nacional de Inteligência de forma datilografada para facilitar a perseguição política dos ali citados. Essas cópias foram clandestinamente xerografadas e enviadas para a Europa no acervo que constitui o Projeto Brasil Nunca Mais. Entendemos que é possível que haja interferência de conteúdo por parte dos funcionários da repressão que as datilografaram. Usamos apenas pequenos trechos que compõem partes correspondentes à história que se encontra, inclusive, nos depoimentos, biografias e análises dos próprios militantes daquele partido.
[6] Novos Rumos, nº 152, de 5 a 11 de janeiro de 1961, p. 1.
[7] Novos Rumos, nº 153, de 12 a 18 de janeiro de 1961, p. 3.
[8] PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL, 2000, p. 41.
[9] BERTOLINO, 2002, p. 96-97
[10] BERTOLINO, 2002, p. 108.
[11] BERTOLINO, 2002, p. 130.
Referências bibliográficas
Coleção do jornal Novos Rumos (IAP/CEDEM/UNESP)
BERTOLINO, Osvaldo. Testamento de luta – a vida de Carlos Danielli, Instituto Maurício Grabois/ Editora Anita Garibaldi, 2002
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2000.
Fernando Garcia é historiador e coordenador do Centro de Documentação e Memória (CDM) da Fundação Maurício Grabois