Augusto Buonicore*

Há dois anos, no dia 27 de janeiro, falecia o historiador marxista Edgard Carone. Morreu como sempre viveu, longe dos holofotes da mídia e dos salamaleques acadêmicos. A grande imprensa liberal-burguesa praticamente ignorou o ocorrido. Poucas linhas foram gastas para aquele que resgatou a história da República brasileira e que publicou uma monumental bibliografia que se tornaria uma referência obrigatória para todos os que se aventurarem pelo tema. Talvez este seja um dos sinais mais evidentes da indigência cultural das elites brasileiras e da necessidade de substituí-las por novas classes sociais.

Edgard Carone nasceu em 14 de setembro de 1923 na cidade de São Paulo. Filho de um abastado imigrante libanês, dono de lojas comerciais e de uma casa bancária. Seu pai era um homem culto que amava Tolstói e Gorki e que chegou mesmo a escrever dois livros. Sua mãe também era amante da leitura e havia estudado em uma universidade francesa.

Quando jovem estudou em algumas das melhores escolas paulistas, o Colégio Rio Branco. Mas, ele jamais se considerou um bom aluno. Os professores que ele conheceu não o ajudaram a adquirir amor pelo conhecimento. O responsável pela cadeira de história, segundo ele, “tinha uma visão muito estreita (…) E era voltado para os temas mais estrambólicos, como a Rússia Medieval, as invasões dos bárbaros”; e, por isto, não o marcou. O gosto pela história do Brasil veio por outros caminhos.

O jovem Edgar foi trabalhar para o conceituado sociólogo brasileiro Azis Simão. Sua tarefa era ler para o cientista já quase cego. Entre as obras lidas estava O Cavaleiro da Esperança – a vida de Luís Carlos Prestes, de autoria de Jorge Amado. Através dessas leituras periódicas e da amizade com os jovens intelectuais Antônio Cândido e Paulo Emílio Sales Gomes ele foi se “informando e entrando em contato com todo tipo de atividade política e intelectual”. E, como ele mesmo afirmou: “Fui cada vez mais penetrando no mundo das esquerdas”. Sob influência de Antônio Cândido ingressou no recém-criado Partido Socialista Brasileiro. “A mudança que se queria, afirmou ele, era o socialismo democrático, que na verdade não funcionou”. Mais tarde se aproximou do Partido Comunista do Brasil (PCB) do qual se tornou simpatizante. Quando da cisão comunista, ocorrida em 1962, ele ficou do lado do grupo liderado por Prestes que constituiria o PC brasileiro.

Carone não se considerava apenas um intelectual marxista, mas sim um simpatizante do comunismo. Questionado sobre o porquê de não ter se tornado um militante, ele respondeu: “Eu não tenho jeito para ser militante, eu tenho jeito para ser auxiliar de militante. Mas eu acho (…) a vida de simpatizante muito importante na vida do partido”.

Nunca engrossou a crítica fácil dos liberais e da “nova esquerda” aos movimentos comunista brasileiro e internacional. “A crítica que se fazia (…) era uma coisa que não me afetava, porque diante daquela situação os comunistas eram dos poucos que lutavam contra a ditadura e se arriscavam”, afirmou ele.

Seguindo os passos do irmão, ingressou na Faculdade de História da Universidade de São Paulo em 1945. Depois de formado mudou-se para a fazenda da família em Botucatu, interior de São Paulo. Ali permaneceu durante 12 anos, longe de qualquer atividade acadêmica. Aproveitou-se do isolamento para ler e montar uma grande biblioteca pessoal.

“Eu li bastante e estava muito entusiasmado com alguns movimentos militares e não-militares daquele tempo, por isso pesquisei sobre as revoluções de 1922, 1924, 1930, 1932, 1937 (…) Eu ia comprando praticamente tudo sobre esses temas nos sebos; eu tinha acumulado, por exemplo, um grande lote sobre o Tenentismo, memórias etc”, afirmou ele.

A república passou a ser o centro de suas preocupações. Foi essa paixão que o transformou em precursor da moderna história da República brasileira. “A idéia de escrever sobre a República veio exatamente para tentar entender essa mixórdia que era o país, cujo processo estava muito ligado a esse período.”

Em 1963, esse interesse de Carone coincidiu com a necessidade de alguns professores da USP, que lançavam a coleção Buriti. Antônio Cândido sugeriu que ele escrevesse um livro sobre as revoluções tenentistas no Brasil. Assim, nasceu o livro Revoluções do Brasil Contemporâneo (1922-1938), lançado em 1965. Esta seria a primeira obra publicada por ele. Ele estava então com 42 anos de idade.

Os problemas não resolvidos que apareceram durante a elaboração de seu primeiro livro, e o golpe militar de 1964, levaram-no a continuar se aprofundando no seu estudo sobre o período republicano. Afirmou ele: “Todo mundo falava do golpe, mas ninguém explicava o golpe e sua composição tão esdrúxula entre forças civis, militares e estrangeiras”. Só conhecendo a história recente do Brasil, o desenvolvimento e a luta de classes, que poderia se entender o golpe militar de 1964 e construir uma alternativa política para o movimento democrático e socialista que havia sido derrotado. Ele, então, resolveu escrever um livro sobre o período republicano, apenas um — mas acabou escrevendo 11 grossos volumes, incluindo o livro O Tenentismo. O primeiro volume, de 1969, intitula-se A Primeira República (1889-1930) — textos e contextos e o último, de 1985, A República Liberal (vol.2). A conceituação e a periodização do período republicano, que foram adotadas, acabaram se tornando referência na historiografia brasileira.

Carone iniciou sua carreira acadêmica na Fundação Getúlio Vargas, e depois se transferiu para a USP na qual tornou-se professor titular de História do Brasil. Doutorou-se em 1971, defendendo a tese “União e Estado na vida política da Primeira República”, que seria publicada sob o título República Velha II – Evolução política e, finalmente, concluiu a sua livre-docência em 1985.

Além de ter sido o historiador do período republicano foi, também, o grande historiador do movimento operário e socialista brasileiro. Entre 1979 e 1984 publicou os três volumes da obra Movimento Operário no Brasil, uma rica documentação comentada sobre a luta e organização dos trabalhadores brasileiros de 1877 até 1984. Quando das comemorações dos 60 anos de aniversário do Partido Comunista lançou a obra O PCB, também em três volumes. Nela, estão incluídos os principais documentos produzidos pelos comunistas brasileiros e suas várias dissidências.

Se esses dois grandes conjuntos de obras se constituem basicamente de documentos comentados pelo autor, os livros Classes sociais e movimento operário, no qual tratou do movimento operário nos anos de 1920; e Brasil anos de crise (1930-1945), contêm uma rica exposição e análise da evolução política do Brasil, do ponto de vista do marxismo. Colocou luz sobre o papel central da luta de classes e especialmente sobre a ação das classes trabalhadoras brasileiras. Podemos afirmar que esta é a melhor história do Partido Comunista do Brasil, das origens até 1945. Por fim, destacamos o livro O Marxismo no Brasil (das origens a 1964), publicado em 1986, no qual fez um exaustivo levantamento bibliográfico da produção de obras sob inspiração marxista no Brasil.

Apesar de ter se iniciado no mundo acadêmico e publicado seu primeiro livro tardiamente, ele produziu incessantemente. Publicou 27 obras em apenas 30 anos, ou seja, quase um livro por ano. Muito acima da média na academia. Todos esses livros são referência para estudiosos da República, em geral, ou da esquerda brasileira, em particular.

Como podemos facilmente notar toda essa obra não tem simplesmente um objetivo acadêmico. O objetivo central é entender o Brasil para poder transformá-lo. O objetivo é, portanto, político. Defendia que em relação ao processo histórico não se poderia ficar neutro, era preciso tomar partido, e ele se posicionou decididamente ao lado das forças progressistas e de esquerda.

Desde jovem se interessou pelo marxismo do qual jamais chegou a se separar. Afirmou ele: “Eu acho o marxismo um instrumento fundamental para a análise e um grande instrumento de crítica que até hoje não foi superado (…) o marxismo é a teoria mais rica em possibilidades de análise de uma situação histórica”.

Sua posição abertamente marxista, sempre lhe custou reprovações e preconceitos. Quando ainda estudava na USP, na década de 40, o departamento de história era marcado pela historiografia francesa (antimarxista) e parte de seus professores era bastante conservadora. Afirmou ele, relembrando seu período acadêmico, “havia alguns professores que caçoavam de mim, entre eles o Aroldo de Azevedo, que era reacionário e ligado à Igreja. Ele me encontrava e dizia: ‘E a Rússia? E o comunismo?'”. Tudo isso era feito para intimidar o jovem estudante de esquerda.

Mais de 30 anos depois estaria às voltas com um novo surto antimarxista trazido pela onda da “pós-modernidade”. Carone foi bastante crítico das mudanças que passaram a ocorrer nos cursos de História das universidades brasileiras, especialmente na USP. A chamada Nova História, e sua vertente, a “história do cotidiano”, passou a substituir as análises dos grandes processos históricos.

Afirmou ele: “Veja esta idéia de cotidiano (…) o que você tira disso? Que as mulheres se vestiam de homem, o carnaval era muito bom, havia muita elegância no Mappin Stores, as ruas de São Paulo se modernizaram. Tudo isto é muito interessante, mas não é fundamental. Fundamental é quando você descobre como ocorre o processo de luta de classes no Brasil”.

Não só os novos conteúdos o aborreciam, mas também a forma. Continuou ele, o que predominou foi a “perspectiva de Lucien Febvre, que escreve difícil, é difícil de ler, de pensar” e concluiu ironicamente: “Eu sou um velho marxista e vou ficar no que sei”. Os anos 80 e 90 foram difíceis para os marxistas nas universidades. Afirmou ele: “Participar desses processos ficou muito difícil para mim (…) eu vejo alguns de meus colegas passarem de um lado para outro, de uma teoria para outra”. Carone era avesso aos modismos acadêmicos e isso lhe acarretou a pecha de conservador. Alguns, mais radicais, injuriosamente, chegaram mesmo a negar a sua importância como historiador.

Ele organizou e disponibilizou, através de seus livros, centenas de documentos fundamentais para compreender a história do Brasil Republicano e do movimento operário. Milhares de jovens pesquisadores puderam, a partir de então, ter acesso a uma rara e preciosa documentação. Só isso lhe vale um lugar de honra na historiografia brasileira.

Após a crise das experiências socialistas na URSS e no Leste Europeu e o início da ofensiva neoliberal, ocorreu um processo de re-arranjo nas forças de esquerda: a social democracia se neoliberalizou e muitos partidos comunistas se social-democratizaram, abandonaram o marxismo-leninismo e a própria identidade comunista. Vários intelectuais marxistas, como Carone e Werneck Sodré — tradicionalmente ligados ao antigo PC brasileiro (PCB) —, começaram a se aproximar do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

Como afirmou o jornalista José Carlos Ruy, ele tornou-se, então, “um colaborador freqüente da revista Princípios”, assessorou a Comissão Especial de História do Partido Comunista do Brasil, eleita no 9º Congresso do PCdoB, e editou um de seus últimos livros, A II Internacional — pelos seus congressos, pela editora Anita Garibaldi.

Além de sua vasta obra, deixou para os brasileiros uma biblioteca de mais de 15 mil volumes. Um dos acervos mais importantes sobre a história brasileira do século XIX e XX. No entanto, isso não foi compreendido pelas nossas autoridades das áreas de educação e cultura. No final da sua vida, já bastante doente, tentou vender o seu acervo para alguma biblioteca pública. A resposta que ele encontrou foi “que gostariam de comprar, mas não tinham onde colocar”.

Portanto, a maior homenagem que as autoridades brasileiras poderiam prestar ao homem que, nas palavras de Emília Viotti, “fez a história da República”, seria adquirir esse importante acervo, preservá-lo e colocá-lo à disposição daquele que é o seu verdadeiro dono: o povo brasileiro. Esta seria a forma mais adequada de dizer “obrigado, companheiro Edgar Carone. O Brasil lhe agradece”.

*Augusto C. Buonicore é Historiador, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, Secretário Geral da Fundação Maurício Grabois e responsável pelo Centro de Documentação e Memória (CDM)