A GUERRA DE GUERRILHAS

Os pontos positivos dos textos sobre a guerra de guerrilha são os que se referem: 1º ao papel necessário da luta revolucionária no processo de transformação social na América Latina no século XX, dominada por governos autoritários e ditatoriais; 2º à definição do inimigo principal dos povos, o imperialismo estadunidense; 3º à importância do internacionalismo, especialmente a solidariedade com os países dominados e agredidos por esse mesmo imperialismo.

Ele via com incredulidade a possibilidade de mudanças efetivas nos países latino-americanos nos marcos da legalidade burguesa, através das eleições. Qualquer tentativa nesse sentido seria barrada pela ação violenta das classes dominantes. Escreveu: “Quando se fala em alcançar o poder pela via eleitoral, nossa pergunta é sempre a mesma: se um movimento popular ocupa o governo sustentado por ampla votação popular e resolve em consequência disto iniciar grandes transformações sociais que constituem o programa pelo qual se elegeu, não entrará imediatamente em choque com os interesses das classes reacionárias desse país? O Exército não tem sido um instrumento de opressão a serviço destas classes? Não será então lógico imaginar que o Exército tomará partido por sua classe e entrará em conflito com o governo eleito? Em consequência pode ser derrubado por meio de um golpe de Estado e aí recomeça de novo a velha história.”

Che escreveu estas palavras premonitórias em 1962 no momento em que o movimento comunista internacional estava se inclinando ao reformismo que emanava da URSS, dirigida por Kruschev. No Brasil, o PCB advogava a via pacífica para a conquista de um novo regime social e, inclusive, defendia o caráter democrático das forças armadas. Nos anos seguintes se confirmaram, de maneira trágica, as teses defendidas por Guevara: em 1964 um golpe militar derrubou o governo democrático de João Goulart e em 1973 caía Salvador Allende no Chile. Na segunda metade da década de 1970, a maioria dos países da América Latina estava dominada por ditaduras militares apoiadas pelos EUA.

É bom ressaltar que Guevara, em várias passagens de sua obra, procurou não absolutizar a luta armada, particularmente a guerrilha rural, e levantou a necessidade da utilização dos mais variados métodos de luta: pacíficas e nãopacíficas. Os revolucionários, afirmou ele, “não podem prever de antemão todas as variantes táticas a serem utilizadas no processo de sua luta por um programa libertador. A qualidade de um revolucionário se mede por sua capacidade de encontrar táticas adequadas a cada mudança de situação, em ter sempre em mente as diversas táticas possíveis e explorá-las ao máximo. Seria um erro imperdoável descartar, por princípio, a participação nos processos eleitorais. Em determinado momento ela pode significar um avanço no programa revolucionário.”

Apesar dessa afirmação correta, ele mesmo tendeu, em vários momentos, a subestimar a luta institucional e por reformas nos marcos do capitalismo. Referindo-se à política adotada pela maioria dos partidos de esquerda na América Latina, afirmou: “Nos países onde esses erros tão graves são cometidos, o povo mobiliza suas legiões, ano após ano, para conquistas que lhe custam imensos sacrifícios e que não têm o mínimo de valor (grifo nosso). São apenas colinas dominadas pelo fogo serrado da artilharia inimiga. O nome delas é: parlamento, legalidade, greve econômica legal, reivindicação por aumento salarial (…). E o pior de tudo é que para ganhar estas posições tem que intervir no jogo político do Estado burguês e, para obter autorização de entrar neste jogo perigoso, é preciso demonstrar que atuará dentro dos estritos limites da legalidade.”

Guevara, neste trecho específico, não reconhece qualquer importância às lutas realizadas nos marcos da legalidade – e da institucionalidade burguesa–, como momentos necessários no processo de acumulação de forças visando à construção de uma alternativa revolucionária. As eleições e as greves, quando bem utilizadas, podem ser importantes instrumentos na formação política das massas trabalhadoras. Todas as conquistas populares, por menores que sejam, podem ter um valor inestimável quando educam as massas para a necessidade de sua organização e da luta. A própria história da revolução cubana é a comprovação viva desta tese leninista.

A fórmula anterior chegou a um impasse quando se agregou a ela a constatação de que nos países onde existissem governos democráticos, eleitos pelo voto popular, e que nos quais se mantivesse certa aparência de legalidade, “o surgimento do foco guerrilheiro seria impossível por não se terem esgotado todas as possibilidades da luta parlamentar”. Mas, se nas democracias burguesas as táticas guerrilheiras estariam de antemão excluídas, só restaria ali a utilização de métodos não-armados, como participação nas eleições, nos sindicatos, nas greves econômicas ou políticas. Neste caso, a luta armada teria uma função defensiva.

Outro problema na avaliação de Guevara era quanto ao papel desempenhado pelo espaço urbano, considerado essencialmente não revolucionário. A industrialização e a concentração urbana seriam fatores negativos no processo de ruptura com o capitalismo e o imperialismo. Escreveu ele: “Os países nos quais existem altas concentrações populacionais em grandes centros, devido a um processo inicial de industrialização, têm mais dificuldades em preparar a guerrilha. A influência ideológica dos centros urbanos inibe a luta guerrilheira e incentiva as lutas de massas organizadas pacificamente”. O ambiente urbano reforçaria o processo de “institucionalização” das esquerdas, propiciaria a proliferação de ideias reformistas. Por isto, continuou ele, “mesmo levando em consideração países em que o predomínio urbano é muito grande, continuamos achando que o foco central político de luta deve desenvolver-se no campo”. Essa era a mesma opinião dos defensores da Guerra Popular Prolongada de inspiração chinesa, que defendiam o cerco da cidade pelo campo.

Che com Chou En-Lai

O modelo de revolução de Guevara dava muita ênfase ao “foco guerrilheiro”, embora sua visão sobre ele tivesse passado por importantes mudanças ao longo de sua obra. Depois de afirmar que “nem sempre devemos esperar que todas as condições para a revolução já estejam dadas: o foco insurrecional pode criá-las”, ele sente a necessidade de precisar tal afirmação e completa: “naturalmente não pensamos que todas as condições para a revolução são criadas somente pelo impulso que lhe é dado pelo foco guerrilheiro. Sempre teremos que verificar se existem condições mínimas para o estabelecimento e a consolidação do primeiro foco. É importante destacar que a luta guerrilheira é uma luta de massa, é uma luta popular: a guerrilha, enquanto núcleo armado, é a vanguarda combatente do povo, sua grande força assentada na massa da população (…). Por isto temos que recorrer à guerra de guerrilha quando se tem o apoio majoritário da população (…). O guerrilheiro tem que contar com o apoio da população local. É uma condição sine qua non.” Em poucos anos, Che e seus companheiros passariam, na prática, a negar a necessidade da existência de condições objetivas e subjetivas para a eclosão dos movimentos revolucionários, caindo em posições espontaneístas e voluntaristas que teriam para ele trágicas consequências.
A experiência da guerrilha boliviana revelou os equívocos de muitas das concepções defendidas pelos revolucionários cubanos, entre elas a afirmação de que já existiriam as condições objetivas para a eclosão de uma revolução socialista em toda a América Latina, cabendo apenas a ação enérgica de um pequeno grupo de revolucionários para se constituírem as condições subjetivas. Nos seus derradeiros momentos, Guevara escreveu: “Dia de angústia que em certo momento pareceu ser o nosso último dia. (…) O exército está mostrando maior efetividade de ação. E a massa camponesa não nos ajuda em nada e se converte em delatores”. Eram 17 homens, contingente maior que aquele que havia se alojado na Sierra Maestra, mas as condições eram agora completamente adversas. O camponês boliviano não se assemelhava ao camponês cubano, que Che descreveu em seu artigo “Cuba, exceção histórica?”. A realidade boliviana era completamente diferente da existente em Cuba no final da década de 1950.


Che executando trabalho voluntário

Se, de um lado, era correta a compreensão de Che de que a revolução deveria ser continental, que levou a uma valorização do internacionalismo, particularmente da solidariedade hemisférica; de outro, acabou levando à construção de uma tática esquemática e anti-histórica. Os revolucionários cubanos não conseguiram compreender que, apesar da semelhança de muitos de seus problemas, os países latino-americanos possuíam profundas diferenças entre si. As revoluções não poderiam simplesmente pular as fronteiras nacionais. Em novembro de 1967 um documento do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) afirmava: “A revolução será feita em cada país pelo seu próprio povo. O problema nacional é um dos fatores básicos da luta emancipadora nas nações oprimidas pelo imperialismo. Todo país tem suas peculiaridades, sua formação histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes. Todo povo terá que encontrar as formas específicas de abordar a revolução”. A verdadeira revolução não poderia ser importada ou exportada.
Guevara acertou na compreensão de que os Estados Unidos eram o principal inimigo dos povos latino-americanos; no entanto, a tática elaborada, particularmente após 1965, não correspondeu exatamente a esta visão. Ele concluiu que o caráter da revolução em todo o continente já era socialista e havia passado, sem as mediações necessárias, a construir uma tática e estratégia assentadas nessa conclusão imprecisa. Assim, reduziu-se o campo de alianças possíveis no combate ao imperialismo estadunidense e às ditaduras implantadas em quase toda a América Latina.
Esta era uma negação da própria experiência revolucionária cubana. Poucos anos após a revolução cubana, em 1962, Guevara havia escrito: “Não podemos considerar como excepcional o fato de que a burguesia, ou pelo menos boa parte dela, se mostre favorável à guerra revolucionária contra a tirania (…). E, se levarmos em consideração as condições em que se deu a guerra revolucionária e a complexidade das tendências políticas opostas à tirania, não podemos tampouco estranhar a atitude neutra ou pelo menos não diretamente ofensiva de certos elementos latifundiários frente às forças insurrecionais”. Continuou ele: “é compreensível que a burguesia nacional, estrangulada pelo imperialismo e a tirania (…), visse com bons olhos esses jovens rebeldes das montanhas castigando o exército de mercenários, braço armado do imperialismo. Foi assim que forças nãorevolucionárias ajudaram de fato a facilitar o caminho do advento do poder revolucionário.”
Neste trecho ele falava de uma burguesia que se mostrava favorável à “guerra revolucionária contra a tirania” e até da postura neutra de “elementos latifundiários” diante da revolução em curso. Esse fenômeno – que foi muito bem aproveitado por Fidel Castro – ajudou os revolucionários cubanos a chegarem ao poder e, depois de uma série de fases, a implantarem o socialismo.
O documento do PCdoB, polemizando contra aqueles que advogavam a revolução socialista imediata em toda a América Latina, afirmava: “Para lutar consequentemente contra o domínio dos Estados Unidos nos países latino-americanos e em todo o mundo é preciso adotar uma política capaz de mobilizar o máximo de forças contra esse inimigo (…). Quando se coloca, na atual etapa da luta, o socialismo como objetivo imediato, na prática restringe-se o campo das forças revolucionárias e amplia-se o do imperialismo (…). O exemplo de Cuba mostra que não foi com bandeiras socialistas que ali se iniciou e se tornou vitoriosa a revolução”. As bandeiras que unificaram o povo para derrubada de Batista foram, fundamentalmente, democráticas e nacionais. A revolução radicalizou-se e assumiu seu caráter socialista em 1961, após a malograda tentativa imperialista de invasão através de Playa Giron (Baía dos Porcos). Cuba foi um típico caso de revolução em duas etapas.
Na sua última carta endereçada aos seus pais, antes de partir para sua última trincheira na Bolívia, Guevara escreveu: “Outra vez sob meus calcanhares o lombo de Rocinante, retomo o caminho com meu escudo no braço (…). Muitos dirão que sou aventureiro, eu sou de fato, só que de um tipo diferente, daqueles que entregam a pele para demonstrar suas verdades”.Apesar de possíveis erros cometidos, Che era acima de tudo um revolucionário socialista. Para ele, valeria a mesma descrição que Lênin fez a respeito de Rosa de Luxemburgo, utilizando um velho ditado russo: “Às vezes as águias descem e voam entre as aves do quintal, mas as aves do quintal jamais se elevarão até as nuvens”. Essa é a diferença entre o aventureiro pequeno-burguês e um verdadeiro revolucionário.

Che dançando conga com crianças chinesas

OS PROBLEMAS DA TRANSIÇÃO SOCIALISTA

Após a revolução, Guevara assumiu a direção do setor industrial do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA); em 18 de novembro de 1959 foi indicado à presidência do Banco Nacional de Cuba e, por fim, ministro da Indústria de Cuba. Assim, se tornou o principal responsável pela direção dos assuntos econômicos do poder popular e socialista; e justamente ele: um médico que gostava de dizer que jamais estudara seriamente economia. Uma das suas primeiras medidas à frente do Banco de Cuba foi baixar o seu próprio salário de cinco mil para mil e duzentos pesos. O exemplo pessoal era uma arma poderosa na luta ideológica que se travava.
Em 1960, viajou, pela primeira vez, aos países socialistas e com isso assinou inúmeros tratados comerciais. Aproveitou o momento e estudou atentamente essas diferentes experiências, simpatizando-se por algumas delas. Isso lhe custou muitas críticas do governo estadunidense. Fidel Castro ainda não havia decidido seguir abertamente a via do socialismo– afirmava-se defensor do terceiro-mundismo.
O governo revolucionário buscou o caminho da nacionalização das empresas estratégicas e isto atingiu em cheio os interesses do imperialismo. A maioria dos bancos, das refinarias, das empresas importadoras e exportadoras era dos Estados Unidos e foi atingida diretamente pelas medidas nacionalistas. Em 8 de janeiro de 1961 os EUA romperam relações diplomáticas com Cuba e, em 17 de abril, apoiaram a invasão de Playa Giron por mercenários cubanos. Depois desses atos agressivos, Fidel se declarou marxista-leninista e afirmou que a revolução cubana passaria a seguir a via do socialismo. Reforçou-se a aproximação econômica e política com a URSS e os países do Leste Europeu.

Desenvolvimento Industrial e Estímulos Morais

No início da década de 1960 estabeleceu-se uma rica polêmica sobre quais seriam os caminhos para se reestruturar a economia da nova Cuba que optara pelo socialismo. De um lado, ficou Guevara e, de outro, os economistas soviéticos e seus aliados na ilha, os antigos membros do Partido Socialista Popular (comunista).
No seu plano quadrienal de desenvolvimento Guevara previa aumentar o ritmo da industrialização, diversificar a economia, reduzir a importância da monocultura açucareira, estatizar as grandes empresas e limitar as importações. Este foi o modelo adotado pela União Soviética e China, que havia dado bons resultados.


Che executando trabalho voluntário

Os soviéticos, por sua vez, não viam razão para que Cuba abandonasse a monocultura de açúcar, afinal esta era a sua principal atividade econômica. Eles, pelo contrário, se propunham a comprar toda a produção e fornecer as mercadorias industrializadas de que os cubanos necessitavam. Segundo os soviéticos, deveria ser estabelecida uma relação de complementaridade entre a economia cubana e a do Leste Europeu e URSS. A proposta, em curto prazo, parecia muito compensadora aos cubanos. Pensando em longo prazo, as coisas poderiam não ser tão boas assim, pois a economia da ilha seria colocada na dependência do que aconteceria na URSS.
As concepções econômicas de Che poderiam ser encontradas nas palestras que fez logo no início da revolução. Afirmou ele: “todos estes conceitos de soberania política, de soberania nacional são fictícios, se ao lado não existir a independência econômica. (…) Fincamos os pilares da soberania política no dia 1º de janeiro de 1959, mas eles só estarão totalmente consolidados no momento em que conseguirmos a independência econômica absoluta. (…) Ainda não podemos proclamar diante dos túmulos de nossos mártires que Cuba é independente economicamente. Não o pode ser enquanto um simples barco detido nos Estados Unidos provoque a paralisação de uma fábrica em Cuba, enquanto uma ordem qualquer de algum monopólio paralise aqui um centro de trabalho. Cuba será independente quando tiver desenvolvido todos os seus meios, todas as suas riquezas naturais e quando tiver (…) a certeza de que não poderá haver ação unilateral de nenhuma potência estrangeira para impedi-la de manter o ritmo de produção, de manter todas as suas fábricas produzindo o máximo possível dentro da planificação que estamos pondo em prática.” (Soberania Política e independência econômica – 20-03-1960).
Após a célebre decisão de Cuba seguir o caminho do socialismo, este país passou pelas mesmas dificuldades que as demais revoluções vitoriosas: a fuga dos gerentes, dos técnicos, dos engenheiros e até mesmo dos trabalhadores especializados. Este quadro foi agravado pelo estado de desordem em que se encontrava a economia. Era preciso pô-la para funcionar, aumentar a produtividade do trabalho, vencer o absenteísmo e a indolência: formas de resistência à exploração capitalista que acabam se enraizando na consciência social e devem ser superadas após a vitória da revolução socialista.
Visando a vencer estes obstáculos Che lançou um amplo movimento de emulação do trabalho.  Ele criou e liderou os batalhões de voluntários, participando pessoalmente do corte de cana e da construção de moradias. Seguindo seu exemplo, milhares de estudantes, funcionários públicos e intelectuais passaram a realizar atividades produtivas fora do seu tempo normal de trabalho ou de estudo. Guevara queria utilizar a força do exemplo para incentivar os trabalhadores a aumentarem a produção.
Aqui, novamente se estabeleceu uma divergência entre ele e os especialistas soviéticos. Tratava-se de encontrar a melhor forma de incentivar o trabalhador a produzir mais e melhor. Toda a tradição de construção do socialismo na URSS e no Leste Europeu se baseava, fundamentalmente, na concessão de estímulos materiais aos trabalhadores que atingissem ou ultrapassassem as metas impostas pelos órgãos centrais de planejamento. Guevara não negava a necessidade de se dar esses estímulos materiais na primeira fase de construção do socialismo, mas acreditava que o movimento de emulação para produção não devia se assentar principalmente neles.
Escreveu: “não negamos a necessidade objetiva do estímulo material, mas estamos relutantes em utilizá-lo como alavanca impulsora fundamental. Consideramos que, em economia, este tipo de alavanca se torna rapidamente uma categoria autônoma e chega a impor rapidamente sua própria força nas relações entre os homens. Não devemos esquecer que (essa necessidade de estímulos materiais) provém do capitalismo e está destinada a morrer no socialismo”. 
Criticando os defensores do modelo de emulação de tipo soviético, afirmou: para eles, “o estímulo material direto, projetado no futuro e acompanhando a sociedade nas diversas etapas da construção do comunismo, não se contrapõe ao ‘desenvolvimento’ da consciência, enquanto para nós, sim; é por isso que lutamos contra o seu predomínio: porque significa o atraso do desenvolvimento da moral socialista”.
Era preciso ganhar a consciência dos trabalhadores, fortalecendo neles uma ética socialista. O partido revolucionário e seus militantes teriam um grande papel neste processo de reeducação da sociedade. “O grande papel do Partido nas unidades de produção é ser o seu motor interno e utilizar todas as formas de exemplo de seus militantes para que o trabalho produtivo, a capacitação, a participação nos assuntos econômicos das unidades sejam parte integrante da vida dos operários e se transformem num hábito insubstituível.”
Outro aspecto, vinculado ao anterior, que diferenciava o projeto de Guevara das experiências do “socialismo real”, era quanto à igualização dos salários. No regime soviético, as significativas diferenças salariais entre trabalho intelectual e manual, entre trabalho especializado e não especializado, entre função dirigente e subordinada passaram a ser defendidas como intrínsecas a todo o período de transição do socialismo ao comunismo. Na tradição soviética o “igualitarismo” foi apressadamente definido como um desvio pequeno-burguês.
Guevara acreditava que, já no início da transição, o Estado Socialista e o Partido Comunista deveriam tomar medidas no sentido de eliminar as mazelas provindas da sociedade capitalista, a saber: a divisão estanque entre trabalho intelectual e manual; entre funções de mando e subordinadas; o predomínio de incentivos materiais, através de maiores salários e acesso aos bens de consumo – o que, no caso soviético, contribuiu para a formação de uma burocracia afastada das massas trabalhadoras. Ele defendeu que o socialismo, necessariamente, deveria tender sim para a igualização dos salários e das condições de vida. Isto, inclusive, deveria implicar sacrifícios conscientes para algumas camadas de trabalhadores mais privilegiadas, especialmente dos setores médios e da burocracia.
Afirmou ele: “Esta tarefa de distribuição dos bens do país é a mais difícil e a mais penosa; estamos empenhados nela agora para repartir de modo equitativo nossa pobreza, para que ninguém deixe de comer, de se vestir, de receber educação, atendimento médico e também para que ninguém receba demais (…) não deve recair sobre os trabalhadores a desgraça de pertencer a uma indústria de pouca rentabilidade ou a sorte excessiva de estar numa indústria das mais rentáveis”. Continuou, “os trabalhadores que hoje têm salários acima da norma terão seus salários congelados e o trabalhador que ingresse na produção passará a um trabalho similar, não com o salário daquele companheiro que tinha adquirido seu direito anteriormente, mas com o novo salário.”
O trabalho voluntário realizado pela juventude, intelectuais comunistas e membros do governo era uma das muitas medidas visando a valorizar o trabalho manual-produtivo e, em certo sentido, a reduzir o fosso existente entre os dois tipos de trabalho – intelectual e manual. Lênin chegou a apregoar essa forma de trabalho logo após a revolução de outubro: os sábados comunistas.
Apesar da presença de certo voluntarismo, uma vontade de pular etapas – na tentativa de redução do espaço de ação da lei do valor –, ele levantou questões essenciais que devem ser enfrentadas logo nos primeiros dias da transição. Em outras palavras, seria preciso realizar, ao lado do desenvolvimento das forças produtivas, uma verdadeira revolucionarização nas relações de produção – eliminando gradualmente as diferenças entre trabalho intelectual e manual, das funções de execução e de mando, reduzindo as desigualdades salariais e no nível de vida entre as diversas camadas de trabalhadores, e entre elas e os membros do aparato estatal. O socialismo não pode reforçar essas assimetrias como ocorreu na experiência soviética.
Talvez sejam essas teses guevaristas, muitas das quais foram e são aplicadas pelo Estado cubano, que nos permitem entender melhor a incrível capacidade de resistência do poder popular em Cuba durante todos estes anos, apesar do cerco imperialista e da débâcle soviética. É preciso aprender com esta experiência, sem tê-la como “modelo ideal” a ser aplicado extemporaneamente e sem ter em conta as particularidades nacionais.

Che, Fidel, Cienfuegos e Osvaldo Dórticos marcham em Havana

A CONSTRUÇÃO DO HOMEM NOVO

Segundo Guevara, o problema da construção do “homem novo” figurava num lugar de destaque dentro do projeto socialista e deveria ser a principal obra da revolução. O sistema capitalista, no seu processo de produção e de reprodução social, não cria apenas mercadorias e mais-valia, cria também homens incompletos, fragmentados. Sobre este processo escreveu Che: “O exemplar humano, alienado, tem um invisível cordão umbilical que o liga à sociedade (capitalista) em seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos de sua vida, vai modelando seu caminho e seu destino (…). As leis do capitalismo, invisíveis para o comum dos mortais, e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este perceba.”
As particularidades do processo de transição ao socialismo, que pressupõe a permanência do mercado e de suas leis – inclusive a lei do valor – levam a sociedade nova a ainda conviver, por algum tempo, com elementos das ideologias predominantes no capitalismo – a burguesa e pequeno-burguesa. Estas continuam a se reproduzir, ameaçando o futuro da transição, se não forem contidas pela ação firme e consciente do novo poder popular e socialista.
“As taras do passado”, afirmou Che, “se transferem ao presente na consciência individual, e é preciso fazer um trabalho contínuo para erradicá-las (…). A nova sociedade em formação tem que competir muito duramente com o passado (…) pelo próprio caráter deste período de transição com a persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão sentir na organização da produção e, por conseguinte, na consciência”.
Por esse motivo, Che se colocou contra os métodos de emulação que priorizassem as concessões de estímulos materiais – aumento de cotas de consumo, prêmios de produtividade etc. Segundo ele, a necessidade do aumento rápido da produção levou à “tentação de seguir caminhos trilhados do interesse material”, correndo-se o risco de perseguir o sonho irrealizável de buscar construir o socialismo com a ajuda “das armas defeituosas que nos foram legadas pelo capitalismo”; estas fariam um lento e seguro trabalho de sabotagem sobre o desenvolvimento de uma consciência socialista dos trabalhadores. “Daí”, afirmou ele, “ser importante escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral (…). A sociedade em seu conjunto deve se converter em uma gigantesca escola”.
A persistência da ideologia burguesa, engendrada pelas leis de mercado, levam o trabalhador a considerar natural a vinculação direta entre sua produtividade média e seu acesso ao consumo de mais e melhores mercadorias. “Justamente por isso”, afirmou, “a ação do Partido de Vanguarda consiste em levantar ao máximo a bandeira oposta, a do interesse moral, do estímulo moral, a bandeira dos homens que lutam, se sacrificam, e não esperam nada mais do que o reconhecimento por parte de seu companheiros.”. Continuou: “O estímulo moral, a criação de uma nova consciência socialista é o ponto em que devemos nos apoiar, aonde devemos chegar e ao qual devemos dar ênfase (…). O estímulo material é o resquício do passado com o qual se deve contar, mas cuja importância deve diminuir na consciência das pessoas na medida em que o processo avança (…). O estímulo material não fará parte da nova sociedade que está se criando, deverá se extinguir no caminho”.
Segundo Guevara, o homem no socialismo, “apesar da sua aparente homogeneização, é mais completo (…) e sua possibilidade de se expressar e se fazer sentir no aparato social é infinitamente maior.” O socialismo seria o momento de recuperação da integralidade humana, da construção do homem multidimensional, desalienado. O socialismo plenamente realizado representaria a apropriação, pelos homens, das condições de sua produção e reprodução de sua vida.
Este processo teria início com a implantação do planejamento consciente– e democrático– da produção econômica. Assim, o homem tomaria o seu destino nas próprias mãos. Afirmou ele: “é preciso acentuar sua participação consciente, individual e coletiva, em todos os mecanismos de direção e de produção (…). Assim obterá a consciência total de seu ser social, o que equivale à sua realização plena como criatura humana”. E conclui: “o homem realmente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de vender-se como mercadoria”.
Seguindo uma indicação do jovem Marx, ele constatou que o trabalhador “morre diariamente às oito horas em que atua como mercadoria para ressuscitar em sua criação espiritual”. Contudo, no capitalismo, mesmo o lazer e a produção cultural não passam de tentativas de fuga. “A lei do valor não é mero reflexo das relações de produção”, ela perpassa todas as relações humanas, inclusive fora do trabalho. Na sociedade atual, “a angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvula cômodas para a inquietação humana”. Sendo, portanto, úteis para a reprodução do sistema.
Trabalho desalienado é uma categoria importante para Guevara, seria exclusivamente através dele que poderia ser constituído o homem novo. Por isso, a renovação e valorização do trabalho, especialmente o manual-produtivo, deveriam ser uma tarefa central do poder socialista. Este processo passaria pela redução das desigualdades entre trabalho intelectual e manual, entre funções de comando e funções subordinadas. O trabalho manual não poderia ser a sina dos definidos como menos aptos, como ocorre nas sociedades capitalistas. Nelas, a pecha de trabalho desqualificado é sinônimo de baixos salários e precarização das condições de vida, quando comparadas com formas “superiores” de trabalho – o trabalho intelectual e de dirigente do processo produtivo e estatal. O socialismo deveria fundar também uma nova ética do trabalho.
Referindo-se aos jovens cubanos ele afirmou: “Sua educação é cada vez mais completa, não nos esquecemos de sua integração no trabalho desde os primeiros momentos. Nossos bolsistas fazem trabalho físico em suas férias ou simultaneamente ao estudo. O trabalho é um prêmio em certos casos, um instrumento de educação, em outros, nunca um castigo.” O trabalho manual deveria se livrar do estigma de martírio e castigo que, de certa forma, carregou inclusive nas experiências socialistas – que tinha no deslocamento para trabalhos manuais uma forma de castigo para os opositores ao regime. 
A sociedade socialista em construção deveria se livrar também da velha concepção capitalista de que a capacidade de consumo de mercadorias seria a medida de todos os homens. Se o socialismo quiser competir neste terreno estará de antemão derrotado. Não seria possível oferecer um nível de consumo superior ao existente nas sociedades capitalistas avançadas para toda a população, nem em curto e nem em longo prazo. “Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano alguém pode ir passear na praia, nem de quantas maravilhas que vêm do exterior possam ser compradas como os salários atuais. Trata-se, precisamente, de que o indivíduo se sinta mais pleno, com mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade”, afirmava ele.
Outra característica do humanismo socialista, defendido por Che, é o internacionalismo. Ser comunista se confundia com ser internacionalista e ter amor pela humanidade. “Permita-me dizer-lhes”, afirmou ele, “com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível se pensar em um revolucionário autêntico sem esta qualidade (…). Nosso revolucionário de vanguarda tem que idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas e fazê-lo único, indivisível”.
O militante da causa socialista não deve se contentar apenas em realizar as tarefas locais e se bastar com elas. Mesmo as pequenas vitórias cotidianas podem adormecer o espírito transformador e levá-lo ao acomodamento, e isto é a morte da revolução e da possibilidade da realização plena do socialismo. “Se o afã de revolucionário se debilita quando as tarefas mais prementes se realizam em nível local e se esquece do internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força impulsionadora e desaparece numa cômoda modorra, aproveitada por nossos inimigos irreconciliáveis”. Conclui Che: “Não pode existir socialismo se nas consciências não se opera uma mudança que provoque uma nova atitude fraternal diante da humanidade”.
No texto O que deve ser um jovem comunista, Guevara reafirmou suas teses humanistas e internacionalistas: “o que se coloca para todo jovem comunista é ser essencialmente humano, ser tão humano que se aproxime do melhor dos humanos. Purificar o melhor do homem através do trabalho, do estudo, da prática da solidariedade contínua com o povo e com todos os povos do mundo; desenvolver o máximo de sensibilidade, até o ponto de sentir-se angustiado quando em algum canto do mundo um homem é assassinado e até o ponto de sentir-se entusiasmado quando em algum canto do mundo se levanta uma nova bandeira de liberdade”.
Contraditoriamente, a vitória da revolução pode levar à burocratização dos quadros dirigentes do Estado e do Partido, por isso é necessário um constante processo de vigilância e educação ideológico. A burocratização é um instrumento a serviço da contrarrevolução. “Contrarrevolucionário é todo aquele que contraria a moral revolucionária (…) é (também) aquele senhor que, valendo-se de sua influência, consegue uma casa, consegue depois dois carros, viola o racionamento e obtém depois tudo o que o povo não tem (…). Aquele que utiliza suas influências boas ou ruins em proveito pessoal ou dos seus amigos, este é contrarrevolucionário”. Os dirigentes do Partido e do Estado devem ter uma conduta exemplar, este é um fator determinante para se conquistar as massas para a construção do socialismo.
As dificuldades impostas ao processo de construção do “homem novo” são enormes. A sua realização exige vontade férrea e grandes sacrifícios dos dirigentes revolucionários. Não se realizará de uma só vez, conhecerá avanços e recuos. Os métodos serão importantes – por isso é preciso encontrar métodos novos, adequados à nova sociedade socialista que se quer construir. Mas, ela é possível de ser realizada e nela se assentará a possibilidade de realização do sonho socialista – de um homem liberto da exploração, da opressão de toda espécie –, o homem emancipado.
Afirmou Guevara: “Se alguém nos disser que somos quase uns românticos, que somos idealistas inveterados, que estamos pensando em coisas impossíveis e que não se pode conseguir da massa do povo que ela seja quase um arquétipo humano, temos que responder uma e mil vezes que sim, que isso é possível, que estamos no caminho certo, que todo o povo pode avançar, acabar com a mesquinhez humana como está acontecendo em Cuba nestes quatro anos de revolução.”

* Este ensaio foi publicado originalmente no sítio Vermelho em outubro de 2002. 

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

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