Passados 50 anos do golpe militar, o documento apresentado pela Comissão Nacional da Verdade comprova os crimes do pior regime da história republicana brasileira. E deixa registrado na memória nacional que as atrocidades foram cometidas para sufocar as lutas históricas por mudanças estruturais no país. Uma guerra contra o povo, portanto, para qual as Forças Armadas devem um reconhecimento não somente como instituição, mas sobretudo pelo fato de que muitos criminosos do regime — inclusive mentores e executores do golpe — pertenciam às suas fileiras. Seria uma forma de reconciliação com a consciência democrática brasileira. 

É preciso constatar que nenhuma das promessas que envernizavam a motivação do golpe foi cumprida. Os golpistas diziam que o regime de força combateria a corrupção; o assalto ao Erário foi acintoso. Alegavam que a economia precisava mudar de rumo para fugir da bancarrota; a política econômica do regime resultou no desastre que impulsionou o povo na luta pela democracia. Apelavam para a moralidade administrativa; o que se viu foram mandos e desmandos numa proporção inédita desde a proclamação da República. Prometeram sanear a vida política do país; os crimes perpetrados por eles foram os mais hediondos possíveis. 

Valor inestimável

Tudo isso em nome do combate a um genérico “comunismo”, que ameaçava conspurcar a democracia e liquidar a independência nacional. Para cumprir esse imaginário golpista, os generais da ditadura adotaram o terror, a imposição do medo como método de governo e as ameaças como normas disciplinares. Representando abertamente os interesses de oligarquias e variados grupos econômicos, o regime não vacilou na decisão de blindar o país na órbita dos interesses norte-americano, o mentor ideológico do golpe. Eram tempos de combates anti-imperialistas na América Latina, de lutas por soberanias, de afirmações de convicções libertárias. E a lógica da ditadura era a negação de tudo isso.

Passados quase 30 anos desde a volta da democracia, o Brasil chega a uma conclusão, com este relatório, de que o aprendizado histórico com a avaliação do que representou o regime militar tem valor inestimável. Consolida a concepção segunda a qual a impunidade é inaceitável e registra o avanço inédito das forças democráticas e progressistas no ciclo iniciado com a eleição presidencial de Luis Inácio Lula da Silva, em 2002. Desde então, o progresso do país tem sido visível, inclusive no campo institucional, chegando à criação da Comissão Nacional da Verdade no governo Dilma e à apresentação desse relatório de imenso valor histórico. 

Coronéis e jagunços

Como disse a presidenta, a busca da verdade histórica é uma forma de construir a democracia e zelar pela sua preservação. É, também, uma forma de conhecimento das causas do golpe. Apesar dos avanços significativos, o país ainda abriga enormes feudos — e aqui o sentido não é literal, não se limita ao campo —, controlados por coronéis e jagunços. Poucos países no mundo ostentam uma distinção social tão marcada como a nossa. A elite brasileira espera de seus subordinados uma reverência que, não raro, causa explosões de revoltas. E quando elas ocorrem, a estrutura oligárquica as sufoca em sangue — como ocorreu com o regime de 1964.

O que aconteceu ali foi o encontro dessa acentuada inflexão histórica com os acirramentos da geopolítica mundial. Uma análise mais profunda mostra que a oligarquia brasileira nunca teve um projeto honesto de desenvolver o país tendo como norte o interesse nacional; nunca prezou a liberdade do povo e a democratização da institucionalidade pública. Ela desgosta de um projeto desenvolvimentista e distributivo porque isso significaria alargar o clube de proprietários e, em sua concepção, isso não iria multiplicar a riqueza, mas dividir a já existente.

Pendor autoritário

Por nunca ter apresentado um projeto de nação ao país, a elite brasileira não deixou alternativa às forças que estão na margem oposta do processo histórico senão os combates acirrados. Os governos, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, poucas vezes funcionaram como elemento de equilíbrio nessa dicotomia. Salvo escassos períodos de nossa história, o Brasil sempre foi governado de forma a criar contendores com valores, ideias e metas radicalmente opostas. Governaram de modo a fazer com que o século XIX nunca terminasse por aqui.

O combate histórico ao poder ditatorial — em especial à ditadura militar — temperou as forças democráticas e progressistas. No entanto, pouca coisa mudou na essência do modo como a elite e o povo se veem e se relacionam. É fácil compreender essa imutabilidade se percebermos que há apenas pouco menos de 30 anos rompemos com a mais aguda inflexão desse pendor autoritário. A direita golpista também se amoldou às mudanças — o ideal oligárquico histórico atualmente está materializado sobretudo na sua instrumentalização pelo capital financeiro.

A visão de FHC

Em 1995, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), um legítimo representante do ideal oligárquico, externou seu ponto de vista a respeito da ditadura militar durante a cerimônia de assinatura da lei que reconhecia mortes de desaparecidos político. “Culpado foi o Estado, por permitir a morte na tortura em suas dependências. Culpados foram as tendências fundamentalistas que, ao invés de reconhecer diferenças e procurar convergências, insistiram no maniqueísmo”, discursou ele.

FHC só não explicou como poderia se fazer tudo isso à frente de tropas, fuzis e canhões. “Conclamo a nação a virar esta página da história e olhar o futuro com a convicção de que episódios semelhantes nunca mais se repetirão”, disse o então presidente. Como se sabe, muitas bandeiras que mobilizaram a resistência democrática à ditadura militar estão aguardando solução. Portanto, essa não é uma página que pode ser virada ao sabor dos interesses da oligarquia. Quanto a não repetir esses “episódios”, isso não depende de governos como foram os de FHC. Depende da luta militante para que as liberdades democráticas conquistadas avancem no sentido de mudanças profundas na estrutura social brasileira.