A memória é uma dessas ferramentas que o historiador pode transformar em fonte. A responsabilidade da memória, a necessidade de trazer à tona questões que ainda permeiam a vida contemporânea são algumas das questões da História do Tempo Presente. Eric Hobsbawm e Henry Rousso são alguns dos estudiosos que aprofundaram a construção dessa vertente historiográfica.

Há muita dificuldade na construção de uma linha de estudo como essa, pois lidamos com acontecimentos inacabados, na maioria das vezes, com pessoas que ainda estão vivas, que podem descrever o ocorrido, denunciando e esclarecendo partes dos fatos. Esse é o ponto mais delicado, porque o historiador do tempo presente enfrenta uma cobrança que pesquisadores de outras áreas da história desconhecem: a contestação daqueles que passaram pelos episódios pesquisados e que exigem a “sua” verdade dos fatos.

Mas, do ponto de vista da história, a “verdade” pode variar de acordo com as perguntas, os objetivos da pesquisa e os interesses do presente. Nesse sentido, a historiografia exerce um importante papel social de formação das recordações e dos esquecimentos coletivos e individuais. Os discursos podem ser sempre redirecionados, selecionados, distorcidos de acordo com interesses dos que narram e dos que recolhem as narrativas.

Todo historiador ao iniciar seu ofício faz uma seleção do que considera importante ou não para seu trabalho, define o tipo de fonte, quais serão as mais relevantes, define suas perguntas, faz um recorte temporal e espacial e escolhe ferramentas metodológicas e teóricas que utilizará ao longo de sua pesquisa. Para manter o mesmo compromisso no trabalho com a história do tempo presente que temos com a história de um tempo mais remoto, há de se considerar que criamos relações distintas com eventos que a sociedade julga sensíveis e que são muito próximos da nossa realidade.

O historiador do tempo presente lida com a memória viva dos seus contemporâneos e por conta disso está exposto a uma pressão social e política inegável. Mas é importante lembrar Hobsbawm quando diz “uma experiência individual de vida também é uma experiência coletiva”. Por exemplo, grupos que viveram eventos traumáticos como o holocausto e as ditaduras na América Latina, pressionam os historiadores no sentido de referendar seu ponto de vista. Ás vezes parece que o dever de memória aparece como o próprio imperativo da justiça, para que os crimes possam ser julgados, a verdade alcançada e as vítimas retratadas. Assim, o direito à memória transforma-se numa obrigação de lembrança para que as dívidas e feridas de uma sociedade sejam sanadas. O abuso pode ocorrer na medida em que os conceitos de justiça e reparação sejam desvirtuados, os crimes esquecidos ou os erros cometidos.

O período histórico em questão é definido por balizas móveis. Qual deve ser o marco inicial da história de um tempo presente? Para uns, a última grande ruptura, para outros, a época em que vivemos e de que temos lembranças, ou cuja testemunha ainda são vivas, ou ainda, segundo Hobsbawm, o tempo presente é o período durante o qual se produzem eventos que pressionam o historiador a rever a significação que ele dá ao passado. Acrescente-se ainda o fato de o historiador, nesse caso, ser também testemunho e ator de seu tempo. Ele pode, por exemplo, supervalorizar determinados eventos do presente, por não ter recuo, uma distância crítica.

Essa peculiaridade, no entanto, não é necessariamente negativa: o novo lugar do  historiador, do observador e do personagem podem oferecer novos pontos de vista, outras formas de considerar períodos da história, favorecendo novas abordagens. A singularidade do objeto deve nos alertar sobre a necessidade da busca de métodos específicos para temáticas específicas.

O século XX foi especialmente turbulento, as grandes guerras, a Revolução Soviética, o avanço tecnológico, entre outras coisas, mudaram radicalmente a forma de compreender o tempo. Passou a haver uma demanda social crescente pelo conhecimento da história recente, e os historiadores confrontaram-se com a necessidade de refletir sobre o momento vivido e os possíveis cenários resultantes. Então, especialmente depois da Segunda Guerra o estudo do tempo presente foi incorporado ao dia-a-dia do historiador.

Trazendo a discussão para o contexto brasileiro ainda mais recente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) e a Lei de Acesso a Informações Públicas estão na pauta do dia: jornais, revistas, TV, internet e a sociedade civil como um todo, discutem a decisão de apurar crimes cometidos contra os diretos humanos, e podem ser vista como uma busca da história do tempo presente.

A CNV instituída no ano de 2012 tem a finalidade de apurar as graves violações dos direitos humanos ocorridos no período entre 1946 a 1988 (período que inclui a ditadura militar), provocando reavaliações da história a partir de depoimento de pessoas que vivenciaram os acontecimentos, e ainda resgatando e averiguando documentos produzidos na época e que norteiam o assunto.

Tocar nesse assunto é doloroso, assim como foi em tantos outros países que passaram por um período de reparação do arbítrio e demais violências impostas e consentidas pelo Estado. A partir das apurações desta comissão, a reafirmação dos direitos humanos e a luta contra a violência não se restringem à condenação política ou jurídica, mas sim a justiça e a democratização de um tempo obscuro.

A Comissão Nacional da Verdade brasileira chega atrasada, em torno de 30 anos após o final da ditadura militar. De forma geral, os países do cone sul fizeram esse tipo de comissões logo após os primeiros momentos da transição democrática. A Argentina, por exemplo, instituiu uma Comissão Nacional sobre Desaparecimentos de Pessoas (Conaderp) ainda em 1983, tendo sido um dos primeiros atos do presidente Raul Alfosín depois de sua posse. O Chile criou a Comissão da Verdade e da Reconciliação em 1990, por ato do presidente Patrício Aylwin Azócar, logo após o final da ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet. Hoje esses países estão julgando e condenando seus torturadores, enquanto o Estado brasileiro ainda está tentando construir a sua verdade sobre o período, muitas vezes necessitando pedir licença para acessar a documentação da época, mesmo com a Lei de Acesso a Informação em vigor desde 2012. Esse tipo de comparação denuncia de forma gritante o atraso brasileiro em relação aos nossos vizinhos e que as tarefas que ainda temos que cumprir para aprofundar nossa democracia ainda estão na ordem do dia.

Desde já, a instituição da Comissão da Verdade é importante na medida em que fortalece o debate em torno dos crimes ocorridos na ditadura militar. Apesar de não ter o direito de punir, talvez o mais importante nesse momento seja esclarecer algumas questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos políticos.

É verdade que a comissão brasileira foi constituída e negociada num processo marcado por uma série de tensões, típicas da transição controlada que nosso país passou, mas sem dúvida ela foi produto de uma conjuntura mais favorável e de uma intensa mobilização de setores da sociedade interessados em desvendar esse período da política brasileira. Essa mobilização transcende o trabalho e os limites da própria Comissão.

É fato que nem todas as limitações existentes podem ser consideradas como de responsabilidade exclusiva da própria Comissão, os maiores bloqueios ao avanço desse tipo de trabalho em nosso país derivam da presença de setores refratários ao seu trabalho em postos chave do Estado, como demonstrou o relatório parcial de um ano de investigações ao apontar a dificuldade de acesso da documentação de alguns órgãos de repressão.

Mesmo assim, essa é uma comissão que interessa ao historiador por vários motivos: primeiro, aos historiadores que trabalham diretamente com esse período, a criação de uma Comissão Nacional da Verdade pode trazer novas informações para seus trabalhos de pesquisa, liberação de novas fontes e, por consequência, acesso a elementos antes desconhecidos, segundo, aos historiadores que tratam de outros temas e períodos, a Comissão e o documento trazem categorias que envolvem diretamente seu ofício, como o  debate do direito à verdade, do direito à memória, além de diversos fatos históricos importantes para a sociedade, por último, como cidadão brasileiro o historiador também têm o direito de ter acesso à verdade sobre os acontecimentos que ocorreram durante o regime militar.

Com a divulgação de possíveis documentos inéditos, temas ainda não explorados vão surgir, e nada pode ser mais estimulante para um historiador. Porém, é preciso refletir criticamente sobre o envolvimento desses profissionais nessa nova empreitada. A Associação Nacional dos Professores de História (Anpuh) entende que a entidade deve participar diretamente do debate. Por outro lado, outros profissionais de história enxergam um conflito teórico, metodológico e ético entre essa participação e o ofício do historiador, que seria colocado como uma espécie de juiz do passado.

Tanto o trabalho da Comissão da Verdade, quanto o trabalho do historiador podem ajudar no luto e na memória da sociedade. Se existe uma ferida não curada e pessoas reivindicando o direito à verdade, e os fatos não foram devidamente esclarecidos o trabalho de luto não foi concluído. Fatos abalaram de tal maneira nossa sociedade que não podem simplesmente ser relegados ao esquecimento sem serem devidamente discutidos. Nossa própria identidade é desrespeitada quando não existe a cicatrização de uma ferida e um trabalho social com nossas memórias.

Assim, sem deixar de fazer o embate político com as pastas militares para ter acesso pleno aos arquivos da ditadura e avançar na apuração das violências, uma das maiores tarefas que a Comissão Nacional da Verdade tem é romper com um revanchismo às vezes presente, assumindo claramente o papel de dar voz as vítimas, e dando continuidade ao trabalho já realizado pelos familiares.

O prazo para a entrega do relatório final à presidenta Dilma Roussef é dezembro desse ano, mas já pode-se concluir que o relatório não encerra o esforço de esclarecimento de fatos ocorridos da ditadura militar. Outro ponto que já é consenso entre os pesquisadores da comissão é de que as prisões e a tortura faziam parte de uma política de Estado implantada no Brasil em períodos de regimes autoritários. E esse é o principal foco da comissão hoje, investigar e esclarecer os casos dos desaparecidos políticos e a violação dos direitos humanos
Por último, a sociedade brasileira deve participar dos debates sobre esse assunto. Vivemos um momento especial em que a questão das violações dos direitos humanos, principalmente os que foram cometidos durante o regime ditatorial está mais latente. Temos visto um crescente aumento no número de comissões da verdade, estaduais, municipais, em universidades, nos sindicatos e em outras organizações dos movimentos sociais, que podem ajudar muito a desvendar tudo isso que já dissemos nesse texto, elas guardam potencial enorme de aglutinação e divulgação dos trabalhos da CNV e podem cada vez mais legitimar o movimento por verdade, memória e justiça no país, pois há muito ainda o que fazer.

Raisa Luisa de Assis Marques é historiadora, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade Salgado de Oliveira (Universo); é também pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade da União Nacional dos Estudantes (UNE) e Diretora de Memória do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ).